quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Duas ou três coisas que sei dela (a Outorga Onerosa do Direito de Construir): a natureza residual do valor da terra

No primeiro artigo da série Outorga Onerosa do Direito de Construir, postado em 23-5-2011, eu a defini como “contrapartida [cobrada pelo município] no licenciamento de construções que intensifiquem o uso do solo além de certo limiar, sobrecarregando as infraestruturas e promovendo a sobrevalorização da terra”. Disse, também, que esse tema é um “excelente veículo para o debate sobre a formação e repartição da renda do solo urbano”. Prossigamos, pois.

Para entender como funciona a OODC é preciso ter em mente a natureza residual do valor da terra.

A terra, insumo sine qua non da produção de habitações e outros produtos imobiliários, é um bem natural e irreprodutível. E como não se trata, neste caso, da terra bruta, mas de terra urbanizada e bem localizada em relação aos demais recursos urbanos (comércio, serviços, amenidades), estamos falando de um insumo irremediavelmente escasso, um bem de “oferta fixa”.

Assim sendo, o seu preço, que em nenhum caso pode ser estipulado com base em custos de produção e margens de lucro, dado que a terra não se produz, tampouco resulta de ajustes sucessivos entre quantidades demandadas e ofertadas, dado que a terra não se reproduz, é produto de um processo de alocação determinado pelas ofertas (de renda) sucessivamente mais altas – um vasto leilão social sem leiloeiro.

Quanto vale, então, um terreno urbano?

Os avaliadores de imóveis chamam de método direto de avaliação de um terreno aquele que se baseia na pesquisa de preços já praticados (método comparativo de mercado): um imóvel vale tanto quanto outros já negociados na região, que possam ser considerados similares, por si sós ou mediante técnicas de “homogeneização”, ou ainda, mais modernamente, que possam ser ajustados a uma curva de regressão matemática. Com isto, permanece aberta a questão: como se formou o preço desses outros imóveis? Como estimar, por outro lado, o preço de um terreno urbano isolado em um contexto de raras transações?

A resposta se obtém pelos métodos que os avaliadores chamam de indiretos, baseados no princípio da renda que os terrenos, ou imóveis, são capazes de gerar. Esses métodos têm a virtude de explicar como se formam os preços da terra urbana. 

Em se tratando da incorporação imobiliária de terrenos situados em áreas urbanizadas, o método mais utilizado é aquele chamado de residual dedutivo, que estabelece o preço máximo admissível de transação de um terreno. 

A figura abaixo representa a estrutura geral do método residual dedutivo de avaliação de terrenos urbanos, "espelho" da estrutura do empreendimento imobiliário mais rentável (questão crucial à qual teremos de retornar) que o terreno é capaz de abrigar num momento dado, composta de receita, custos, retorno de capital e, finalmente, renda da terra.


É nesse método, o mesmo utilizado pelos incorporadores para estimar a viabilidade e lucratividade de seus empreendimentos, que nos basearemos para construir um modelo explicativo do significado econômico da edificabilidade dos terrenos urbanos e, consequentemente, da Outorga Onerosa do Direito de Construir.

O máximo valor de transação admissível do terreno onde será construído o edifício da figura é dado pela subtração, à receita total que ele irá gerar com a venda das unidades (Valor Geral de Vendas ou, simplesmente, VGV), dos custos totais do empreendimento e do custo, ou retorno, de capital (geralmente expresso como proporção do VGV). Na indústria da incorporação costuma-se designar o retorno de capital pelo termo Taxa Mínima de Atratividade (TMA), que é a taxa mínima de retorno do capital abaixo da qual o empreendimento não é economicamente viável, ou interessante, do ponto de vista do empreendedor. 

O resto, ou resíduo, da subtração acima descrita constitui, precisamente, a renda da terra gerada por este empreendimento. O valor residual apurado é o máximo preço que qualquer incorporador pagará pelo terreno. Comprando o terreno por um preço acima do valor residual, o incorporador estaria renunciando ao retorno mínimo admissível do seu investimento de capital. Inversamente – e este é o fator crítico da indústria da incorporação –, comprando o terreno por um preço abaixo do valor residual o incorporador estará obtendo um lucro extraordinário em forma de renda da terra.

O preço de transação de um terreno destinado à incorporação equivale, pois, a um termo de repartição, entre o proprietário original e o proprietário "intermediário", vale dizer o incorporador, conforme os respectivos níveis de informação e capacidade de negociação, do valor residual total do empreendimento, que não é outra coisa que o somatório das rendas que pagarão por ele os proprietários futuros, isto é, os compradores finais dos produtos imobiliários.

A questão é: se o valor residual do terreno que repartem entre si o proprietário e o incorporador não provém de outro atributo que a urbanização e as vantagens locacionais dos bens imóveis que ele poderá receber no espaço urbanizado, nada mais justo - e economicamente necessário! - que ao menos uma parte desse residuo seja capturado pela coletividade, representada pelo poder municipal, para financiar a própria urbanização. 

A Outorga Onerosa do Direito de Construir é uma das formas pelas quais a coletividade pode participar da repartição da renda da terra na indústria da incorporação imobiliária, tema que discutiremos com maior detalhe  em uma proxima postagem.  

2011-11-02