domingo, 7 de dezembro de 2025

Smolka 1983: a cidade mercantil brasileira

SMOLKA M, “Estruturas Intra-Urbanas e Segregação Social no Espaço: elementos para uma discussão da cidade na teoria econômica”. [Excerto] PNPE, Série Fac-Símile no. 13, Rio de Janeiro, Nov 1983, pp. 24-26 e 53-54. [Transcrição PJ] 
https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/7655/1/N.%2031%20v.%201-min.pdf

Obs. Este texto, disponível na Internet e aqui parcialmente transcrito dada a sua relevância para o estudo da formação das metrópoles brasileiras, é aberto por uma Nota do Autor que adverte: 


“Com a maturação dos termos aqui discutidos, e sobretudo após as críticas construtivas recebidas a esta primeira versão do estudo (concluído em agosto de 1982) tornou-se oportuno, e talvez necessário mesmo,  efetuar algumas modificações antes de sua liberação para circulação na forma impressa. Lamentavelmente (..) ainda não foi possível incorporar tais alterações, [que] referem-se a (..)”



Salvador, Bahia.

Ilustração de Carlos Julião, 1779 (detalhe).

Gabinete de Estudos Arqueológicos

da Engenharia Militar, Lisboa. 


2. A cidade mercantil

Em princípio, (nesta fase) a dinâmica da acumulação comercial apresenta pouca influência sobre a estruturação interna urbana. Isto se deve em primeiro lugar ao fato de que nesta fase (*) ainda não são suficientemente afetadas as relações sociais de produção.


De fato neste estágio observa-se apenas o surgimento de uma classe de comerciantes e de uma divisão de trabalho com respeito à atividade artesanal manufatureira, e uma dinamização da produção de mercadorias, i,e. de bens produzidos para a troca. No entanto, a produção em si está entregue a múltiplos e pequenos estabelecimentos, em geral conduzidos pela conjugação dos meios de produção nas mãos do próprio trabalhador.

Nesse sentido o locus da produção e o locus da moradia tendem a confundir-se, superpor-se em espaços simultânea e alternadamente da produção e da moradia, dispersos de forma mais ou menos aleatória sobre o espaço geográfico. Em outras palavras, a separação entre o local de trabalho e de residência é ainda restrita dada a pouca concentração dos meios de produção nas mãos de capitalistas. As condições de produção e mesmo de circulação estão ainda bem descentralizadas.


A aceleração da acumulação comercial associada à extensão da atividade de trocas e mercados regionais cada vez mais amplos é paulatinamente reforçada por uma crescente divisão do trabalho. Esta divisão se manifesta tanto na esfera da produção na forma de uma especialização funcional em atividades operando em escala crescente quanto na própria esfera da circulação através de atividades de grande porte como portos, armazéns de estocagem e, concomitantemente a separação entre atacadistas e varejistas.


Com isto assiste-se aos primórdios de uma separação funcional de uso do solo urbano - bem verdade ainda pouco desenvolvida - com a distinção entre áreas nitidamente atacadistas das áreas varejistas. Os poucos assalariados emergentes tendo que residir próximo aos locais de trabalho em virtude do tipo de regime de trabalho prevalecente.


Eram ainda poucos os empregadores que operavam em escala suficiente para criar zonas distintas marcadas por suficiente força gravitacional sobre áreas circunvizinhas.


Assim, muito embora alguma divisão funcional urbana já tenha surgido, esta ainda não atinge, propriamente, a atividade de produção limitando-se apenas à concentração de certas facilidades voltadas à eficiência ou expediência comercial, e também a centralização de certas atividades culturais e administrativas, associadas ao domínio emergente a burguesia sobre a vida urbana.


A segregação social era ainda bem reduzida apesar de que com a crescente desigualdade de renda e riqueza oriunda de vantagens de intermediação entre compradores e vendedores acentuam-se diferenças entre as moradias dos bem sucedidos comerciantes e aqueles da população em geral. A riqueza obtida de ganhos mercantis era ainda vista com certa suspeita, sendo frequentemente alvo de maledicência e indignação.


Daí surgirem os primeiros conflitos entre a necessidade de ostentação, expressa visualmente nas moradias de luxo, e a reação da vizinhança, estabelecendo-se a partir daí a necessidade de certa separação social no espaço.


Isto é facilitado pelo surgimento, já nesta época, de rudimentares planos urbanos destinados a melhor adequar a cidade às necessidades concretas da atividade mercantil bem como ao pensamento racionalista burguês que ora se impunha.


Em suma, a cidade comercial correspondente aos primórdios da formação do sistema capitalista e concomitantemente à própria formação do Estado nacional ainda não apresentava traços marcantes de segregação social. O local de trabalho e de residência se confundiam num contexto de elevada densidade urbana.


Entretanto, com a dinamização da acumulação mercantil, estabelecem-se certos padrões de diferenciação funcional de áreas urbanas, destacando-se as áreas destinadas à facilidades vinculadas ao comércio atacadista. Ao mesmo tempo que a consolidação de uma burguesia comercial, enquanto classe, é acompanhada de ostentação material como símbolo de sucesso empresarial provocando algumas reações que se expressavam também ao nível de vizinhança. Aos bem-sucedidos comerciantes juntavam-se ainda outras parcelas da burguesia vinculadas a atividades como de administração pública, na busca de locais de residência diferenciados da população em geral.

____

(*) Não se trata aqui de uma fase propriamente capitalista, já que o capital não teria ainda adentrado a produção no entanto. 


(..)


3. Da Cidade Comercial à Primeira Fase da Industrialização


3.1 A Consolidação da Cidade Comercial


Com a assinatura do Tratado de Methuen (1703) e o consequente privilégio inglês sobre o comércio brasileiro, dinamiza-se a atividade importadora especialmente de manufaturados ingleses, além  de estimular certa diversificação na exploração primária exportadora que aqui se praticava. Com isto diversifica-se também a estrutura social das cidades, com o surgimento de comerciantes, financistas, transportadores etc., associados às novas funções adquiridas pelos núcleos urbanos pré-existentes. Estes agora “(em) lugar de constituírem apenas pontos obrigatórios  de passagem das mercadorias exportadas e importadas (..) passam a ser centros importantes de redistribuição de mercadorias entre diferentes regiões da mesma colônia” (Singer, 1973, p. 103). Vale dizer, elas adquirem um caráter mais comercial, que “entrava em contradição com o seu caráter de cidade de conquista, i.e. de prolongamento instrumental de um poder metropolitano que se tornava cada vez mais externo até ficar estrangeiro”.


Para Singer “(esta) contradição era inevitável e estava fadada a eclodir mais cedo ou mais tarde; à cidade de conquista cabia exportar sem contrapartida o máximo possível do excedente colonial, ao passo que á cidade comercial convinha vendê-lo pelo melhor preço maximizando o retorno. Desta maneira a cidade comercial se fez porta-voz de todos os interesses que almejavam transformar o excedente comercializável em excedente comercial e em aliança com eles enfrentou e venceu a cidade de conquista”. (Ibid, p. 105)


Do ponto de vista da estrutura interna da cidade estas transformações pouco afetaram o padrão de uso do solo pré-existente; apenas intensificaram as tendências já exibidas pela cidade colonial. Entretanto, o relativo enriquecimento proporcionado pela dinamização das funções comerciais destas cidades, vai permitir a realização de uns poucos melhoramentos físico-urbanísticos (calçamento, etc..), o que vai se acentuar na medida em que os grandes proprietários fundiários passam a despender maior parte do tempo nelas. Esta última talvez seja a característica mais marcante desta nova fase comercial. A cidade passa a adquirir melhores condições para a sustentação de vida permanente na medida que atraía maior parcela da renda gerada no campo na forma de gastos em serviços urbanos.


2025-12-07