segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Cidade da música: Prêt-à-porter de tafetá – João Bosco e Aldir Blanc, 1984


João Bosco* 
Presume-se que o matreiro saci tenha surgido entre os indígenas da região das Missões, no sul do Brasil, e sido mais tarde adotado pelos africanos do Norte e Nordeste na forma de um negrinho de uma perna só, com pito e carapuça.  

De passagem por Minas, onde o Brasil dá a volta e se encontra consigo mesmo, o saci parece ter estado em Ponte Nova, onde entre uma e outra traquinagem teria se enrustido na alma de João Bosco Mucci, menino com nome de santo que cantava nas missas da paróquia.

Digo isto porque, embora a crítica douta enfatize, em João Bosco, a influência do samba de breque, do jazz e da bossa nova, eu há muito me pergunto se o gênio que habita essa pele é o da MPB culta da velha capital ou aquele outro que viaja pelo interior do Brasil em redemoinhos de vento, assoviando para assustar os bois no pasto, distrair as cozinheiras e extraviar os viajantes.

Reza a lenda que para capturar o saci e fazê-lo obedecer ao seu dono é necessário jogar sobre ele uma peneira, arrancar-lhe a carapuça e prendê-lo dentro de uma garrafa.
Aldir Blanc**


Se pensasse como hoje trinta anos atrás, quando o admirei por “Dois pra lá dois pra cá” e “Caça à raposa”, eu diria que o moleque saci de Ponte Nova fora capturado pelo carioca confessadamente saudosista e meio vermelho Aldir Blanc para vestir a sua poderosa lírica suburbana com a musicalidade cafuza que ele trazia dentro de si.Talvez até seja verdade. Neste caso, porém, o gênio cativo acabou solto na vida – meio alforriado, meio fugido. 

Compreendendo melhor que ninguém a alma irrequieta do saci, eu imagino, Aldir o ajudou a sair por aí em busca do verso perfeito que lhe permitisse extravasar das harmonias e melodias suburbanas voltando às toadas, batidas e vozes das profundezas das Geraes. Aquele que canta “Quilombo”, “Odilê Odilá” e “Zona de Fronteira”, sozinho com seu violão, como se tivesse ao seu redor toda a negrada reunida no terreiro, só pode ser o Moleque Saci liberto da garrafa incorporando Clementina de Jesus.

Este aqui, no entanto, é João Bosco em plena folia carnavalesca, no melhor estilo Aldir Blanc – uma esbórnia de francesas, franceses e francesismos que faria chorar de emoção o divino Rabelais. Para fazer boa figura e ficar mais charmant, o saci da ex-capital trocou a carapuça pelo béret.

Mas, afinal, o que tem tudo isso a ver com a cidade? – há de se perguntar o leitor.

Paquetá! A formosa ilha aparece perfeitamente à vontade nesse samba-desenredo rimando com Cocotá, rebolá, sambá, patuá, ou là là, tamanduá, zanzibá, saravá, Praça Mauá e, é claro, tafetá. 

Não nos iludamos: não há nada mais carioca e perfeitamente suburbano do que Paquetá. Elevada por D. João VI à categoria de colônia de férias, e até de residência, da nobreza do Rio de Janeiro e transformada em 1829 numa espécie de Elba tupiniquim – retiro forçado de onde o recém-ex-exilado José Bonifácio, o Patriarca da Independência, estaria, segundo seus inimigos, comandando uma conspiração republicana –, a ilha é hoje lugar de gente pacata aonde os proletários e remediados das nossas comunidades urbanas costumam levar suas famílias e namoradas em passeios de fim de semana.
Foto Elisa Amorim

Fonte: blog Rafael Oliveira
 
www.rafaeloliveira-rj.blogspot.com
Um paradoxo do nosso tempo: não fosse a poluição do ar e da água e a paisagem petroleira – terminais, navios, rebocadores, plataformas em manutenção –, Paquetá seria uma ilha exclusiva, propriedade de dois ou três endinheirados, onde jamais se poderiam ver, como me relatou uma querida admiradora da ilha, meninos sabe Deus de que freguesia se esbaldando na praia a gritar: “Água limpa! Água limpa!”


Às leitoras e leitores ávidos por um preguiçoso programa de fim de semana, eu recomendo uma visita à bucólica Praia da Moreninha, à Chácara dos Coqueiros, ao Cemitério dos Pássaros, à Ponte da Saudade, ao Poço de São Roque e ao baobá Maria Gorda. E, depois de tantas emoções, voltar à pousada para manger(!) toi beaucoup... - não sem antes, é claro, agradecer ao Conselheiro Blanc, fazer uma prece a São João Bosco e queimar uma erva pro Moleque Saci - ...jusq'au bout!

Para quem não sabe onde fica 


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* http://musicariabrasil.blogspot.com.br/2012/07/joao-bosco-40-anos-depois.html
** http://www.brasilcultura.com.br/sociologia/aldir-blanc-declara-voto-voto-dilma/

2011-12-19