quarta-feira, 27 de abril de 2022

Apontamentos: SILVA 2004 e a centralidade perdida


CORREIA DA SILVA J O, “4.2.1 Urban Rents and Land Use” (excerto de “History of Spatial Economic Theory”, pp 47-48), em BACKHOUSE R, History of Economic Thought, Programa de Doutoramento em Economia, Faculdade de Economia do Porto, Universidade do Porto S/DATA
https://docs.google.com/document/d/1zbj2l8KUv4gQHpDrLZg0fLoA7P7cjSI3yQV-xMmgVdw/edit?usp=sharing

Montagem: Àbeiradourbanismo
Chama a atenção nesse excerto que seu autor, depois de observar que os modelos espaciais da tradição de Von Thunen têm o defeito de assumir como dado algo que está por ser esclarecido, no caso a formação do centro urbano, afirme que isso não é tão importante porque, afinal, não se pode esperar que os modelos expliquem tudo! E como para provar que a gênese do centro urbano é problema de pouca monta, recorda que muitas cidades não só não têm um centro único perfeitamente definido como podem ter vários, como Los Angeles, cujas 16 “cidades periféricas eclipsam seus dois centros”.

O problema aqui é que a policentralidade não nega nem esvazia a centralidade, fenômeno basilar da organização do espaço: ao contrário, o manifesta e reafirma em condições particulares, ou certo estágio, de desenvolvimento.  Nessa questão estou com VILLAÇA, para quem, “nas regiões metropolitanas em geral, inclusive nas norte-americanas, continua a haver um centro principal, o tradicional, seja o de Chicago, de São Francisco ou de Nova Iorque, que é mais desenvolvido que os demais e por isso pode, e deve, ser chamado de ‘principal’”. E tenho dúvidas de que, como diz Gottdiener 1985 e parece admitir o próprio Villaça, a polinucleação “tenha como uma de suas consequências ou manifestações o enfraquecimento dos centros principais como aglutinadores do espaço metropolitano”. [1] 

A tendência à dispersão, nos países ricos - não por acaso corriqueiramente chamados de "centrais" -, de subcentros e cidades satélites ao redor dos grandes polos metropolitanos do século XX, resulta precisamente da concentração da riqueza nacional e global em suas áreas de influência, levando a que se expandam a ponto de formar conglomerados urbanos como a Grande Londres (quase diria a Inglaterra inteira), a Grande Paris e a Grande Tóquio, o triângulo Ruhr-Bruxelas-Amsterdam e seu análogo Houston-Dallas-San Antonio, os corredores Boston-Washington D.C, Quebec-Toronto, Osaka-Kioto e Xangai-Nanquim etc. Ao invés de "enfraquecimento", a polinucleação poderia significar a integração das grandes cidades em estruturas múltiplas ainda mais centralizadoras dos fluxos de riqueza global.

Retornando à metrópole, penso que o "modelo americano" não exprime leis de organização espacial urbana distintas das que vigoram no resto do mundo. As diferenças de rendimento determinam, desde os primórdios da urbanização de mercado, tanto a forma geral da distribuição sócio-espacial, que é a ocupação residencial das áreas centrais e pericentrais pelas famílias mais desafogadas e a periferização do conjunto inversamente proporcional aos rendimentos, quanto suas manifestações particulares, como a formação de enclaves periféricos de elevados rendimentos (jardins e alphavilles) e centrais de trabalhadores precarizados (cortiços e estalagens) - configuração antagônica à forma geral da distribuição sócio-espacial, mas compatível com a lei fundamental da economia do espaço (rendas fundiárias decrescentes com a distância às centralidades).[2]

Vejo o “modelo americano” vigente, pode-se dizer, há quase um século, como situação-limite da forma geral centro-periferia nas especialíssimas circunstâncias históricas, geográficas e culturais de sua expansão capitalista, que inverte, relativamente à Europa Ocidental, Japão e países intermediários como Brasil, México e Argentina, o foco do poder de preempção locacional das camadas sociais aptas a aceder à moradia pela via do mercado. Dentre essas circunstâncias, cito: (1) uma classe média excepcionalmente numerosa, que inclui a totalidade da pequena burguesia e um enorme contingente de trabalhadores urbanos com significativos excedentes de rendimentos sobre as necessidades básicas; (2) um imaginário social que conserva a propriedade privada da terra de fronteira como ideal de liberdade individual e realização familiar; (3) uma numerosa coleção de cidades expandindo-se sobre terras de baixíssimo preço por m2; (4) o Estado provedor de uma vasta estrutura de acessibilidade automotiva movida a gasolina barata; (5) um setor bancário descentralizado e apto a oferecer crédito em massa a baixíssimo custo para o financiamento de automóveis e moradias; (6) uma formidável base industrial capaz de produzir tudo isso em tempo recorde.

De volta ao início, parece-me tão correto Villaça em dizer que o caráter polinucleado da metrópole estadunidense contemporânea é, em Gottdiener, "uma simples observação empírica, não uma teoria" [3] quanto Silva em sugerir - ainda que de passagem - que a gênese do centro urbano principal, ou histórico, da metrópole capitalista ainda está por ser explicada no domínio da economia espacial thuneniana. 

____
[1] VILLAÇA Flavio, Espaço Intra-Urbano no Brasil. FAPESP São Paulo 2001, p. 245.

[2] “(..) Lo que las compañías navieras descubrieron en el siglo xix, con su explotación de los pasajeros de proa, ya lo habían descubierto mucho antes los propietarios de terrenos: las ganancias máximas no se obtenían facilitando comodidades de primera clase para los que podían pagarlas a buen precio, sino hacinando en tugurios a aquellos cuyos peniques eran más escasos que las libras para un rico. (..)” MUMFORD L [1961], La Ciudad em la Historia. Logroño: Pepitas de Calabaza Ed 2012, p. 695

[3] VILLAÇA Flavio, op.cit., p. 38

2022-04-27