CRUZ-MUÑOZ F, “Patrones de expansión urbana de las megaurbes latinoamericanas en el nuevo milênio”. EURE Vol 47, no. 140 (2021)
https://www.eure.cl/index.php/eure/article/view/EURE.47.140.02/1365
Ótima proposta de comparar o processo de urbanização recente nas quatro maiores metrópoles da América Latina, mas não sei se bem resolvida dos pontos de vista técnico e conceitual. Chama a atenção, por exemplo, a imensa disparidade - não explicada - de proporção de moradias periféricas sem serviços (Tabela 4) em São Paulo (0,08) e Rio (0,81) vs Buenos Aires (14,5) e Cidade (30,0) do México. Por si só essa disparidade deveria implicar uma diferença profunda de padrões de expansão urbana entre esses pares de cidades, dificilmente enquadráveis na mesma categoria analítica.
Direto ao ponto, considero exageradamente esquemático o conceito de “urbanização neoliberal” por oposição a “urbanização desenvolvimentista” ou “urbanização regulada e gerida pelo Estado”, tanto quanto a ideia de que “a visão do Estado a respeito da gestão urbana se transformou, passando de racionalista a empresarial”.
É evidente aqui a ressonância da proposição de ABRAMO:
Este predominio del mercado como mecanismo de coordinación de las decisiones de uso del suelo constituye un rasgo característico de la ciudad neoliberal, en contraste con el periodo del fordismo urbano, cuando el papel del mercado en la producción de las materialidades urbanas estaba fuertemente mediado por el Estado a través de la definición tanto de las reglas de uso del suelo como de las características de tales materialidades. La crisis del fordismo urbano implica, por tanto, el “retorno del mercado” como elemento determinante en la producción de la ciudad neoliberal. [1]
Não creio ser correto dizer que “as políticas neoliberais trastocan (perturbam, desorganizam, desestruturam) a urbanização, AGORA atrelada a uma lógica de mercado em que o setor imobiliário adquire um papel cada vez mais importante” (destaque meu).
Penso que a urbanização brasileira, e a latino-americana também, está “atrelada à lógica do mercado” desde pelo menos o último quarto do século XIX; que desde então essa “lógica” desestrutura e reestrutura a urbanização no ritmo de suas necessidades; e que os setores imobiliário e de transportes jamais deixaram de ser os atores principais e maiores beneficiários de nossas “políticas urbanas”, independentemente de particularidades nacionais, flutuações cíclicas, compromissos, recuos e até eventuais revezes impostos por programas públicos de moradia, integração de transportes, preservação do patrimônio, conservação ambiental e recuperação de mais-valias.
O fato de as instituições de planejamento urbano, habitação e transportes incluídos, terem perdido força e prestígio no século XXI não significa absolutamente que antes estivessem ‘no controle’ do desenvolvimento das cidades. Cabia-lhes fundamentalmente, como cabe ainda hoje, interpretar e traduzir em planos, projetos, obras públicas e regulações o ‘status’ da disputa histórica entre os interesses gerais e particulares envolvidos no processo de urbanização. Serem
eles próprios forças vivas na formação desse equilíbrio não outorga aos quadros
técnicos dessas instituições possibilidades ilimitadas, nem muito menos, mesmo em ciclos históricos favoráveis ao exercício da profissão de planejador.
É inquestionável a exacerbação, a partir dos anos 1990, das
tendências anárquicas da urbanização de mercado - metropolização imparável,
fabulosas deseconomias urbanas, segregação espacial, explosão do preço da
terra, fragmentação territorial, informalidade, espoliação de direitos,
naturalização da precariedade, emergência de Estados paralelos etc. Mas a ideia
de que o mundo anterior à desregulamentação neoliberal era um mundo
"racional" em que o Estado tinha a primazia na condução do desenvolvimento
é, ao meu juízo, equivocada, no plano da economia como no do urbanismo.
A "metrópole neoliberal" não é uma forma pura, sequer inteiramente
nova, da urbanização de mercado. Todas essas tendências foram gestadas,
nasceram ou já estavam presentes, em maior ou menor grau, na “cidade
desenvolvimentista”, para usar um termo chancelado pelo autor. Por outro
lado, essa mesma “urbanização neoliberal” não é capaz de livrar-se do passado “fordista”
que carrega dentro de si. Dois exemplos desse entrelaçamento de ciclos e suas contradições ocorrem-me de imediato.
No Brasil, a influência do neoliberalismo nas políticas urbanas
pode ser tida como fator importante para a baixa eficácia, muito aquém das
expectativas, das legislações urbanísticas distributivistas (recuperação da
renda da terra urbana) criadas na esteira da Constituinte de 1988 e
sacramentadas no Estatuto da Cidade de 2001. Contudo, os institutos legais criados
sobrevivem, com raízes institucionais razoavelmente sólidas em algumas capitais
e importantes redes de quadros técnicos municipais, estaduais e federais plenamente
atuantes em sua defesa, difusão e aplicação.
Já o programa habitacional Minha Casa Minha
Vida, um inegável sucesso quantitativo criado por um governo progressista em
plena época neoliberal (2009), não por acaso saudado pela construção civil como "a salvação do setor", [2] é amplamente criticado nos meios acadêmicos e profissionais, e com razão, por ter
reproduzido em larga escala a dinâmica da urbanização "desenvolvimentista",
isto é, o desterro das famílias de menor rendimento para as periferias mais
distantes e sub-urbanizadas. [3]
O tema merece, portanto, um exame mais acurado, se não no plano técnico, com certeza do ponto de vista da interpretação histórica.
PS: A boa prática acadêmica de referenciar os conceitos adotados, ou levados em conta, em uma exposição, pode se transformar num embaraço. São tantas e tão frequentes as referências neste texto, linha a linha, que o marco conceitual do autor vira uma colcha de retalhos.
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