Matéria paga da Fetranspor n’O Globo de 18 de janeiro destaca a
declaração do Sr. Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, segundo
quem “estes investimentos deixarão um legado extraordinário e duradouro para o
Rio de Janeiro, integrando a cidade e melhorando a qualidade de vida de seus
moradores”. A matéria, no caso, diz respeito à implantação do ônibus articulado
tipo “Transmilênio” na ligação Penha-Barra da Tijuca, hoje publicamente
conhecida como “Corredor T5 [Transversal 5]”.
Ironicamente, nessa mesma edição, o prefeito César Maia declara,
em face da crise de insatisfação dos cariocas com a aumento do IPTU e o
abandono da cidade, que, se houver boicote, terá de cortar investimentos como o
Túnel da Grota Funda (que encurta a distância entre a Barra da Tijuca e as
novas áreas de expansão imobiliária a Oeste) e a implantação do T5, tão caros
aos dedicados esforços cidadãos do Sr. Nuzman.
A desfaçatez desses senhores não tem limite. Se a democracia em
nosso país estivesse florescendo, em vez de dormitar na modorra
auto-complacente do “governo mais extraordinário da nossa historia”, eles
estariam respondendo judicialmente pela propaganda enganosa de igual teor
massivamente difundida por ocasião da candidatura do Rio de Janeiro a sede dos
Jogos Pan-Americanos de 2007.
De todas as maravilhas anunciadas como legado do Pan, restou um
parque desportivo de viabilidade econômica duvidosa – exceto na hipótese de
vingar a nova candidatura olímpica – pela mera razão de que o esporte
brasileiro, deserdado em todos os níveis da estrutura educacional e dependente
de um mercado de eventos vertical e ditatorialmente comandado pela televisão e
seus anunciantes, não tem capacidade de amortizá-los.
A conquista do Panamericano colocou a população carioca e
brasileira (porque o grosso do dinheiro saiu, no final das contas, do governo
federal), num beco sem saída que se amplifica em espiral. Primeiro, se os Jogos
viessem a custar mais do que o inicialmente orçado pela prefeitura (diz-se que
custou dez vezes mais), o governo federal teria de bancar a diferença “para não
desmoralizar o país “; agora, se não conquistarmos o direito de organizar uma
Olimpíada, digamos, nos próximos 20 anos, e com ela a obrigação de empatar mais
uma montanha de dinheiro público, teremos de assistir ao apodrecimento do
capital que já investimos nessa magnífica coleção de equipamentos esportivos já
em virtual desuso.
Como quase todo brasileiro, amo os esportes, as competições de
qualidade e as Olimpíadas. Mas penso que os cadernos de encargos desses
mega-eventos da indústria do entretenimento escarnecem das populações de todo o
mundo – e dos países pobres (como a República Dominicana) e ditos emergentes
(como o Brasil e a África do Sul) em particular. Não consta, por exemplo,
desses cadernos de encargos, nada que premie o uso parcimonioso dos recursos
públicos na produção dos Jogos ou que o condicione a mecanismos comprovados de
ressarcimento. Instituições financeiras como o Banco Mundial, tão ciosas do
equilíbrio das contas públicas dos países endividados, não parecem nem um pouco
preocupadas quando se trata da injeção de rios de dinheiro público de retorno
altamente duvidoso nos negócios da indústria global do entretenimento.
Os sucessos esportivos servem para fazer esquecer contas
nebulosas, como a de quem pagou o quê e quem ganhou o quê na construção e
destinação da Vila Panamericana – onde a prefeitura, entre outras coisas,
multiplicou em muitas vezes a edificabilidade do terreno (privado) e implantou
infra-estrutura sem recuperar um tostão da valorização acrescida. Tudo em nome
dos benefícios do Panamericano para a cidade e o país.
Seria muito interessante que alguma ONG se dispusesse a
reconstruir publicamente a contabilidade dos Jogos Panamericanos como
empreendimento ‘público-privado’, apurando detalhadamente receitas e despesas -
quem investiu, e quanto, desde o comecinho da candidatura, e quem lucrou e
quanto. E deixaríamos para a sobremesa a discussão das fabulosas externalidades
e intangíveis apregoados aos quatro ventos pelos mercadores do negócio
olímpico.
Essa iniciativa deveria, aliás, ser dos próprios governos -
federal, estadual e municipal – se tivessem um compromisso sério com a
transparência. Publicar a contabilidade detalhada do empreendimento olímpico –
na vitória ou na derrota – seria um interessante exercício de democracia e
responsabilidade para com as finanças públicas na era das PPP, muito diferente
da nuvem de poeira que a grande imprensa andou jogando nos olhos do público ao
publicar fragmentos de polêmica entre prefeitura e o governo federal sobre o
verdadeiro custo dos Jogos Panamericanos. Por que não publicam ambos os seus
números, e permitem ao público conhecer e intervir na maneira como estão
fazendo as contas?
O grande legado da doutrina do planejamento municipal dito
estratégico de meados da década de 1990 – baseado na mobilização de agentes
“com capacidade de formar opinião e investir” – foi na verdade, aplainar o
terreno para um aumento sem precedente do nível de secretividade na gestão dos
assuntos públicos. Nas Olimpíadas, como no Carnaval (ver artigo de Teresa
Bergher na mesma edição d’O Globo de 18-01-2008), e nos transportes públicos
(onde “política de integração”, por exemplo, são os acordos operacionais e
tarifários que interessam às concessionárias) hoje na administração pública o
mais importante é o segredo comercial. Às vezes a cidadania se impõe, ajudada
pelo esforço e pelo espírito público de agentes responsáveis, como
exemplificado nos casos do Museu Guggenheim e da Marina da Glória. Mas creio
que ainda estamos em ampla desvantagem no placar.