sábado, 19 de janeiro de 2008

Olimpíadas 2016: "Nós lucramos, vocês pagam a conta"


Uma vez mais, os responsáveis pela candidatura olímpica do Rio de Janeiro para 2016 vêm a público anunciar as inexcedíveis vantagens dessa empresa para todos os cidadãos cariocas.

Matéria paga da Fetranspor n’O Globo de 18 de janeiro destaca a declaração do Sr. Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, segundo quem “estes investimentos deixarão um legado extraordinário e duradouro para o Rio de Janeiro, integrando a cidade e melhorando a qualidade de vida de seus moradores”. A matéria, no caso, diz respeito à implantação do ônibus articulado tipo “Transmilênio” na ligação Penha-Barra da Tijuca, hoje publicamente conhecida como “Corredor T5 [Transversal 5]”.

Ironicamente, nessa mesma edição, o prefeito César Maia declara, em face da crise de insatisfação dos cariocas com a aumento do IPTU e o abandono da cidade, que, se houver boicote, terá de cortar investimentos como o Túnel da Grota Funda (que encurta a distância entre a Barra da Tijuca e as novas áreas de expansão imobiliária a Oeste) e a implantação do T5, tão caros aos dedicados esforços cidadãos do Sr. Nuzman.

A desfaçatez desses senhores não tem limite. Se a democracia em nosso país estivesse florescendo, em vez de dormitar na modorra auto-complacente do “governo mais extraordinário da nossa historia”, eles estariam respondendo judicialmente pela propaganda enganosa de igual teor massivamente difundida por ocasião da candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Pan-Americanos de 2007.

De todas as maravilhas anunciadas como legado do Pan, restou um parque desportivo de viabilidade econômica duvidosa – exceto na hipótese de vingar a nova candidatura olímpica – pela mera razão de que o esporte brasileiro, deserdado em todos os níveis da estrutura educacional e dependente de um mercado de eventos vertical e ditatorialmente comandado pela televisão e seus anunciantes, não tem capacidade de amortizá-los.

A conquista do Panamericano colocou a população carioca e brasileira (porque o grosso do dinheiro saiu, no final das contas, do governo federal), num beco sem saída que se amplifica em espiral. Primeiro, se os Jogos viessem a custar mais do que o inicialmente orçado pela prefeitura (diz-se que custou dez vezes mais), o governo federal teria de bancar a diferença “para não desmoralizar o país “; agora, se não conquistarmos o direito de organizar uma Olimpíada, digamos, nos próximos 20 anos, e com ela a obrigação de empatar mais uma montanha de dinheiro público, teremos de assistir ao apodrecimento do capital que já investimos nessa magnífica coleção de equipamentos esportivos já em virtual desuso.

Como quase todo brasileiro, amo os esportes, as competições de qualidade e as Olimpíadas. Mas penso que os cadernos de encargos desses mega-eventos da indústria do entretenimento escarnecem das populações de todo o mundo – e dos países pobres (como a República Dominicana) e ditos emergentes (como o Brasil e a África do Sul) em particular. Não consta, por exemplo, desses cadernos de encargos, nada que premie o uso parcimonioso dos recursos públicos na produção dos Jogos ou que o condicione a mecanismos comprovados de ressarcimento. Instituições financeiras como o Banco Mundial, tão ciosas do equilíbrio das contas públicas dos países endividados, não parecem nem um pouco preocupadas quando se trata da injeção de rios de dinheiro público de retorno altamente duvidoso nos negócios da indústria global do entretenimento.

Os sucessos esportivos servem para fazer esquecer contas nebulosas, como a de quem pagou o quê e quem ganhou o quê na construção e destinação da Vila Panamericana – onde a prefeitura, entre outras coisas, multiplicou em muitas vezes a edificabilidade do terreno (privado) e implantou infra-estrutura sem recuperar um tostão da valorização acrescida. Tudo em nome dos benefícios do Panamericano para a cidade e o país.

Seria muito interessante que alguma ONG se dispusesse a reconstruir publicamente a contabilidade dos Jogos Panamericanos como empreendimento ‘público-privado’, apurando detalhadamente receitas e despesas - quem investiu, e quanto, desde o comecinho da candidatura, e quem lucrou e quanto. E deixaríamos para a sobremesa a discussão das fabulosas externalidades e intangíveis apregoados aos quatro ventos pelos mercadores do negócio olímpico.

Essa iniciativa deveria, aliás, ser dos próprios governos - federal, estadual e municipal – se tivessem um compromisso sério com a transparência. Publicar a contabilidade detalhada do empreendimento olímpico – na vitória ou na derrota – seria um interessante exercício de democracia e responsabilidade para com as finanças públicas na era das PPP, muito diferente da nuvem de poeira que a grande imprensa andou jogando nos olhos do público ao publicar fragmentos de polêmica entre prefeitura e o governo federal sobre o verdadeiro custo dos Jogos Panamericanos. Por que não publicam ambos os seus números, e permitem ao público conhecer e intervir na maneira como estão fazendo as contas?

O grande legado da doutrina do planejamento municipal dito estratégico de meados da década de 1990 – baseado na mobilização de agentes “com capacidade de formar opinião e investir” – foi na verdade, aplainar o terreno para um aumento sem precedente do nível de secretividade na gestão dos assuntos públicos. Nas Olimpíadas, como no Carnaval (ver artigo de Teresa Bergher na mesma edição d’O Globo de 18-01-2008), e nos transportes públicos (onde “política de integração”, por exemplo, são os acordos operacionais e tarifários que interessam às concessionárias) hoje na administração pública o mais importante é o segredo comercial. Às vezes a cidadania se impõe, ajudada pelo esforço e pelo espírito público de agentes responsáveis, como exemplificado nos casos do Museu Guggenheim e da Marina da Glória. Mas creio que ainda estamos em ampla desvantagem no placar.


2008-01-19