sexta-feira, 9 de julho de 2021

Milagre só amanhã

Outras Palavras / Cidades em Transe 02-07-20221, por Gerson Neto
https://outraspalavras.net/cidadesemtranse/um-convite-para-desmercantilizar-as-cidades/

Um convite para desmercantilizar as cidades

“Segundo Everaldo Pastore, um grande urbanista de Goiás, o Plano Diretor é um acordo entre vários atores da cidade para buscar equilíbrio entre os vários interesses que coexistem na cidade. (..) “A participação popular é uma exigência legal para o planejamento urbano, mas é também um obstáculo para o avanço das pretensões dos atores que buscam mercantilizar a cidade. (..) Conhecer o Plano Diretor é essencial para fazer um debate qualificado e garantir o melhor acordo, com as escolhas certas, para que a cidade possa ser cada vez mais bela, justa, viva, sustentável, saudável e feliz.”

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Este artigo de Gerson Neto professa uma visão que me parece, no mínimo, um tanto edulcorada da disputa pelas localizações urbanas, ou pelos recursos e regramentos  públicos que tornam certas localizações mais desejáveis do que outras, e das possibilidades dos Planos Diretores na resolução desses conflitos. 

O “acordo entre vários atores da cidade para buscar equilíbrio entre os vários interesses que coexistem na cidade” é essencialmente problemático porque os “vários interesses” são tão tremendamente desiguais na sua capacidade de se impor que não há equilíbrio possível. 

“Desmercantilizar” as cidades é um ideal que compartilho, mas que está absolutamente fora da alçada de qualquer Plano Diretor de urbanismo. Não conheço nenhum que conteste a urbanização de mercado como mecanismo natural, e preferencial, de construção da cidade. Conquistas sociais são possíveis, mas elas geralmente ocorrem às expensas do Estado, vale dizer do 'fundo comum', ou arrancadas a duras penas como ínfimas porcentagens das rendas fundiárias privadas geradas nos empreendimentos imobiliários ou recolhidas pela propriedade do solo edificado. "Desmercantilizar a cidade", bem entendido, é privar a cidade capitalista de sua natureza; é construir outra cidade, rigorosamente baseada no princípio da função social da propriedade.

Por fim, nenhum acordo pode tornar “cada vez mais bela, justa, viva, sustentável, saudável e feliz" uma cidade que, para imensos contingentes que nela habitam, nada tem de justa, de sustentável e de saudável – quanto a ser bela, viva e feliz, fica por conta da subjetividade de cada um. 

Planos diretores são indispensáveis e devem ter um explícito viés compensatório dos desequilíbrios socioespaciais. Milagres, contudo, são como fiado no armazém da esquina: "só amanhã".

2021-07-09