terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Amanhã canicular

Deu n’O Globo online
26-12-2016, por Ludmilla de Lima e Isabella Cardoso

“Sensação térmica chega a 44,9 graus nesta segunda no Rio”
Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Não posso julgar o Museu do Amanhã como museu nem como arquitetura, no primeiro caso porque ignoro por completo o que ele contém, no segundo porque da edificação só conheço a estrutura aparente, o invólucro.

Superadas essas lacunas, a maior dificuldade será livrar-me da rejeição apriorística: o museu porque não há chance de vir a simpatizar com o método da Fundação Roberto Marinho para a sondagem do Amanhã, a arquitetura por acreditar que o foco no Espetáculo tende a produzir edificações destinadas ao culto midiático, carentes de flexibilidade e condenadas à obsolescência precoce.

Estou convencido, no entanto, desde já, de que a opção de urbanismo adscrita ao seu partido arquitetônico é um equívoco consumado, com claros prejuízos para o esforço (involuntariamente) aplicado pela coletividade ao resgate, para desfrute público, do trecho da orla marítima da Baía de Guanabara compreendido entre a Praça XV e o futuro Aquário - muito apropriadamente batizado Orla Conde. 

Tal conclusão não foi sacada do olho clínico do urbanista, que já vai turvado pela catarata da inatividade. Ela nasceu de uma prosaica experiência cidadã compartilhada com milhares de transguanabarinos que decidiram aproveitar os feriados olímpicos para conhecer as novidades urbanísticas do nosso Centro Histórico Metropolitano: a Praça XV livre do Elevado, a nova esplanada da Candelária, o passeio do Arsenal de Marinha, as novas vistas do Morro de São Bento e da Ilha das Cobras, o VLT, os armazéns portuários convertidos em equipamentos culturais, o eletrizante Mural das Etnias e, por fim, a nova Praça Mauá com suas várias atrações: o Terminal Marítimo, o Píer, o MAR, A Noite e o Amanhã. 

Vejamos. 

A caminhada da Praça XV à Praça Mauá se faz, mesmo num dia de sol de inverno, sob um calor escaldante. Não me deixam mentir as futebolistas brasileiras e suecas que, naquele meio-dia em especial, disputavam a poucos metros dali a semifinal do torneio olímpico feminino. Ao passo que elas se arrastavam no gramado do Maracanã à espera do intervalo para se abrigar na penumbra dos vestiários, eu, extasiado com as vistas nunca vistas, me arrastava na Orla Conde ansiando chegar à Praça Mauá para uma parada estratégica que servisse à contemplação do reencontro da cidade com o mar e à recarga das baterias para a segunda parte do passeio. 

Ocorre que a nova Praça Mauá, como tantas praças do urbanismo cívico contemporâneo, é um deserto, e o Píer um banco de pedra e cimento onde jaz, encalhado, o Nautilus do Capitão Calatrava. Ali chegando, a única decisão sensata ao alcance do esfalfado caminhante é seguir caminho, contornando pela beira do cais o despótico objeto - um inexpugnável casco de ferro encimado por grupos de barbatanas móveis e parcialmente orlado, num recuo ao nível do chão, por um avarandado inútil, espremido entre um longo espelho d’água à guisa de fosso e uma cortina de portas de vidro permanentemente fechadas e protegidas por guardas de segurança. 

O que deveria ser para os visitantes ocasionais da Orla um oásis amigo destinado ao refrigério, e para os não ocasionais um lugar de convergência cidadã, revela-se o mais inóspito dos lugares, uma causticante passarela de inspeção do portento arquitetônico-tecnológico presenteado pelas potências do capital monopolista ao cidadão mesmerizado. 

Nunca, como naquele fatídico domingo olímpico, ansiei tanto por uma sombra generosa, culturalmente significativa e carregada de possibilidades lúdicas. Nunca dei tanto valor ao rés-do-chão suavemente abobadado do MAM, ao vão livre brutalista do MASP, à marquise amebiforme do Ibirapuera, ao sóbrio e elegante pilotis do MEC!

Concluí que a engenhoca dos Irmãos  Marinho não foi, definitivamente, a melhor opção arquitetônica para aquele parte da cidade, mas ficou bem a propósito em tempos de desequilíbrio climático: o Amanhã que ela se dedica a sondar será, pelo andar da carruagem, tórrido como um meio-dia de sol na nova Praça Mauá. 

2016-12-27