Do estudo da formação da estrutura espacial urbana de Porto Alegre, publicado em À beira do urbanismo sob o título “Porto Alegre cidade radiocêntrica 2”, [1] deduzi que o ‘centro urbano’ é um objeto de existência relativamente recente, produto de transformações datadas, no Brasil - como também propõe Abreu [2] - do período compreendido entre os anos 1870 e 1930.
Até então, nas regiões urbanas que hoje chamamos ‘Centro’ existiam no Brasil as ‘cidades’ mercantis-escravistas, ditas ‘metrópoles’ quando se tratava de uma sede político-administrativa, espacialmente organizadas, porém, segundo a dinâmica e as necessidades de uma monarquia feudal-senhorial enriquecida pelo comércio de longa distância e, logo, pela monocultura colonial escravista e pela extração aurífera; cidades portuárias originalmente instaladas em sítios de acessibilidade restrita por motivos de proteção e defesa, que só muito mais tarde iriam transitar para uma nova espacialidade baseada na compra-venda generalizada - portanto na circulação livre e desimpedida - de mercadorias, serviços e força de trabalho.
A hipótese de ser o que hoje chamamos de ‘centro urbano’ um fenômeno sócio-histórico relacionado e concomitante, ainda que de maneira desigual, à expansão capitalista global no transcurso do século XIX, deu origem a duas linhas de investigação estreitamente relacionadas, cujos progressos, limitados e incertos como é de se imaginar fora do ambiente acadêmico, vêm sendo paulatinamente registrados neste blog.
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A primeira linha, de cunho teórico e epistemológico e objeto de uma página própria neste mesmo blog, leva o título autoexplicativo “A revolução da centralidade - por uma teoria histórico-estrutural da espacialidade urbana capitalista”. Nela eu postulo que a cidade capitalista não é a mera ‘continuação modernizada’ da cidade feudal e de sua forma transitória, a cidade mercantilista. É um tipo radicalmente distinto de cidade, que descrevo como um torvelinho de efeitos de aglomeração gerados, antes de tudo, pela necessidade imperiosa, característica da formação social capitalista, de redução da distância-custo entre as principais categorias de agentes envolvidos na compra-venda generalizada de mercadorias, serviços e força de trabalho: as famílias para aumentar as chances de emprego e maximizar o poder de consumo dos rendimentos do trabalho, as firmas para baratear o custo da mão de obra e maximizar as vendas, portanto os lucros, do comércio e da indústria.
Dentre todos os efeitos de aglomeração gerados, no transcurso do tempo, pela busca incessante da redução das distâncias entre os agentes da cidade-mercado, o mais generalizado e historicamente estável, e por isso mais importante, é a dinâmica expansiva tendencialmente radioconcêntrica e desigual da urbanização - muitas vezes referida como 'modelo centro-periferia' -, que pode ser dita a lei fundamental da organização espacial urbana capitalista. Manifestação espacial historicamente mais desenvolvida da dinâmica expansiva do próprio capital, o crescimento simultaneamente 'central' e 'axial' [3] da metrópole moderna opera, independentemente de qualquer plano e da vontade dos indivíduos que o criaram e reproduzem no seu dia-a-dia [4], como um mecanismo de economia socioespacial a seu serviço.
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A segunda linha de investigação, intitulada “Urbanização capitalista no Brasil 1870-1930 - o nascimento das metrópoles”, tem o caráter de estudo de caso - mais exatamente seis casos brasileiros - destinado a pôr à prova a validade geral da conclusão sacada do estudo de Porto Alegre no âmbito nacional. Ainda que também uma homenagem ao precocemente falecido mestre, a escolha das mesmas seis metrópoles brasileiras estudadas por Flávio Villaça em sua obra magna Espaço Intra-urbano no Brasil, de 1998, tem um caráter assumidamente prático: o livro de Villaça contém a mais ampla, bem documentada e competentemente desenvolvida investigação urbanística e geográfica até hoje produzida sobre as metrópoles brasileiras.
A página do blog que traz esse título reúne postagens que abordam o surgimento em nosso país de um tipo de cidade radicalmente distinto de todas as que haviam existido até então: a metrópole capitalista.
Contudo, a transição da urbanização feudal-mercantilista para a urbanização de mercado é - ouso dizer - um aspecto tão importante quanto pouco estudado dessa revolução, haja vista o caráter axiomático e a-histórico da centralidade urbana capitalista naquele que é, desde a década de 1960, o paradigma científico da moderna organização espacial urbana: o modelo alonso-thuneniano da distribuição espacial dos usos e densidades baseada no princípio preemptivo da maior oferta de renda por m2 de terreno.
A relevância contemporânea do modelo de Von Thunen reside na sua adaptação à economia urbana, que permitiu o estudo da renda urbana e suburbana e da localização das famílias e atividades econômicas nas cidades. (..) A característica fundamental da economia urbana refletida no modelo é a necessidade que têm as famílias de ir ao centro para trabalhar usando um sistema radial de transportes. (..) Uma falha dessa abordagem é pressupor algo que está por ser explicado: a existência do centro comercial urbano. [5]
O fato das metrópoles capitalistas terem surgido, aqui e em toda parte, como ‘desenvolvimento’, ou ‘modernização’, de cidades pré-existentes não invalida a hipótese de que estejamos lidando com um objeto qualitativamente distinto: o amadurecimento das relações de produção capitalistas foi um furacão civilizacional que tudo subordinou à sua dinâmica e suas necessidades. Dadas as circunstâncias adequadas à acumulação do capital, onde já havia cidades ele as revolucionou; onde não havia, ele as criou.
Consideremos, a título de exemplo, uma comparação. Embora o bonde de tração elétrica tenha chegado a Salvador, pela mão do capital estrangeiro, apenas três anos antes de São Paulo (1897 e 1900, respectivamente), a sede do Governo-Geral do Brasil colonial de 1549 a 1763 era, em 1959, na visão de Santos, “a metrópole de uma economia agrícola comercial antiga que ainda hoje subsiste; (..) embora penetrada pelas novas formas de vida, devidas à sua participação aos modos de vida do mundo industrial, [Salvador] mostra, ainda, na paisagem, [muito mais claramente do que as capitais do Sudeste] aspectos materiais de outros períodos” [6]. São Paulo, por seu turno, um “núcleo provinciano de segunda categoria antes de 1870” [7] e uma “cidade insignificante até fins do século XIX” [8], já nos anos 1930-40 era referida em relatos de visitantes estrangeiros como a Chicago brasileira / sul-americana / tropical por conta de suas fábricas, arranha-céus, anúncios luminosos, ruas e calçadas congestionadas, residências suburbanas luxuosas e um enorme contingente de imigrantes europeus e asiáticos. [9]
A despeito de suas notáveis diferenças internas - de estatuto político-administrativo, de base econômica e de ritmo de crescimento - é significativo que as seis maiores cidades brasileiras do Segundo Império e Primeira República tenham iniciado a operação de seus sistemas de bondes urbanos de tração elétrica não muito depois de suas congêneres europeias, mais exatamente entre 1892 e 1914 [10], não por acaso o terço médio do período descrito por Abreu como aquele "em que os processos capitalistas modernos firmaram-se solidamente nas cidades brasileiras”.
A metamorfose das urbes mercantis-escravistas brasileiras em metrópoles capitalistas - tão rápida à escala do tempo histórico quanto radical à vista de suas próprias tradições - pode ser dita completa, no sentido de pronta para novos ciclos de transformações quantitativas, quando as cidades-sedes da Colônia e Primeiro Império se convertem em Centros das novas metrópoles radiadas da República Velha. Como dito no já citado estudo sobre Porto Alegre:
Daí em diante nossas grandes cidades passam a ser, nas palavras de Herce Vallejo, "produtos em si mesmas", complexos de mercadorias imobiliárias e serviços urbanos cuja construção e operação se tornaram um campo de negócios de vital importância para o desenvolvimento econômico do país e para a multiplicação dos capitais aqui investidos. [12]
A despeito de suas notáveis diferenças internas - de estatuto político-administrativo, de base econômica e de ritmo de crescimento - é significativo que as seis maiores cidades brasileiras do Segundo Império e Primeira República tenham iniciado a operação de seus sistemas de bondes urbanos de tração elétrica não muito depois de suas congêneres europeias, mais exatamente entre 1892 e 1914 [10], não por acaso o terço médio do período descrito por Abreu como aquele "em que os processos capitalistas modernos firmaram-se solidamente nas cidades brasileiras”.
A metamorfose das urbes mercantis-escravistas brasileiras em metrópoles capitalistas - tão rápida à escala do tempo histórico quanto radical à vista de suas próprias tradições - pode ser dita completa, no sentido de pronta para novos ciclos de transformações quantitativas, quando as cidades-sedes da Colônia e Primeiro Império se convertem em Centros das novas metrópoles radiadas da República Velha. Como dito no já citado estudo sobre Porto Alegre:
É a indústria da urbanização, ou urbanização de mercado, que dá conteúdo e forma à urbe radiocêntrica. É ela que converte as chácaras semi-rurais em bairros residenciais, os antigos caminhos rurais em vetores radiais de expansão, os aldeamentos satélites estrategicamente situados em embriões de futuros subcentros e, finalmente, a própria “cidade” em “centro”! - uma mudança geográfica radical e meteórica na escala temporal da modernidade urbana, portadora de uma percepção coletiva do espaço inteiramente renovada ainda que pouco acessível aos hábitos mentais das antigas gerações: sua transposição para a linguagem corrente levaria ainda algumas décadas para se completar. [11]
Daí em diante nossas grandes cidades passam a ser, nas palavras de Herce Vallejo, "produtos em si mesmas", complexos de mercadorias imobiliárias e serviços urbanos cuja construção e operação se tornaram um campo de negócios de vital importância para o desenvolvimento econômico do país e para a multiplicação dos capitais aqui investidos. [12]
2025-11-05
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NOTAS
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2020/05/porto-alegre-cidade-radiocentrica-2_30.html
[2] ABREU M, “Cidade brasileira: 1870-1930”
https://pt.scribd.com/document/162723437/62
[3] HURD R M, Principles of City Land Values. New York: Record and Guide, 1903.
https://archive.org/.../principlesofcity.../page/n4/mode/1up
[4] “(..) a história faz-se de tal modo que o resultado final provém sempre de conflitos de muitas vontades individuais, em que cada uma delas, por sua vez, é feita aquilo que é por um conjunto de condições de vida particulares; (..) o resultado pode (..) ser encarado como o produto de um poder que, como um todo, actua sem consciência e sem vontade”. ENGELS F, “Carta a Josepf Bloch” 21.09.1890.
https://www.marxists.org/portugues/marx/1890/09/22-1.htm
[5] CORREIA DA SILVA J , “Space in Economics – A Historic Perspective”, em Backhouse R, History of Economic Thought, Programa de Doutoramento em Economia, Faculdade de Economia do Porto, Universidade do Porto
https://www.fep.up.pt/docentes/joao/material/space.pdf
[6] SANTOS M (1959), O Centro da Cidade do Salvador 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Salvador: Edufba, 2008, p. 199
https://pt.scribd.com/doc/83594926/O-Centro-Da-Cidade-de-Salvador
[7] CAMPOS, Candido Malta. Os rumos da cidade – urbanismo e modernização em São Paulo. São Paulo: Editora Senac, 2002
[8] PRADO JR C (1953), A cidade de São Paulo - Geografia e História. São Paulo: Editora Brasiliense 2012, p. 76
https://www.fep.up.pt/docentes/joao/material/space.pdf
[6] SANTOS M (1959), O Centro da Cidade do Salvador 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Salvador: Edufba, 2008, p. 199
https://pt.scribd.com/doc/83594926/O-Centro-Da-Cidade-de-Salvador
[7] CAMPOS, Candido Malta. Os rumos da cidade – urbanismo e modernização em São Paulo. São Paulo: Editora Senac, 2002
[8] PRADO JR C (1953), A cidade de São Paulo - Geografia e História. São Paulo: Editora Brasiliense 2012, p. 76
[9] PETRONE P (1955), “A cidade de São Paulo no século XX: São Paulo transforma-se em metrópole industrial”. Revista de História v. 6, n. 21/22 jan-jun 1955, pp. 127-170
[10] Rio de Janeiro 1892, Salvador 1897, São Paulo 1900, Belo Horizonte 1902, Porto Alegre 1908, Recife 1914
[11] "Porto Alegre cidade radiocêntrica (2)". À beira do urbanismo (blog), 21-05-2020, por Pedro Jorgensen
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2020/05/porto-alegre-cidade-radiocentrica-2_30.html
[12] HERCE VALLEJO M, "Las infraestructuras en la construcción de la ciudad capitalista". Café de las Ciudades Abril 2021.
https://cafedelasciudades.com.ar/sitio/contenidos/ver/459/las-infraestructuras-en-la-construccion-de-la-ciudad-capitalista.html
