quarta-feira, 15 de março de 2023

Apontamentos: HURD 1903 - crescimento urbano axial e central

Última edição em 02-05-2023

HURD R M, "Excerpts on axial and central growth", extraído de Principles of City Land Values, New York: Record and Guide 1903, por JORGENSEN P.
https://docs.google.com/document/d/15g10RjkDmqBxl9onF5OPYvHBRrmGiE1A6McoKzBeSeE/edit?usp=sharing


Montagem: Àbeiradourbanismo
O que aqui apresento aos leitores é uma compilação de seções e passagens de Richard Hurd (Principles of City Land Values, 1903) sobre sua concepção de “crescimento urbano axial e central”.

Para além da imensa riqueza de observações históricas, geográficas, urbanísticas e até arquitetônicas que este profundo estudioso do parque imobiliário das grandes cidades estadunidenses de inícios do século XX tem a oferecer, e que justifica por si só a leitura atenta do material aqui reunido, o postulado de que o crescimento das cidades se dá necessariamente sob aquelas duas formas combinadas é, provavelmente, a mais instigante e profícua contribuição de Hurd ao estudo da organização espacial urbana.

Vejo-o como uma promissora pista para avançar no entendimento da relação entre “centro” e “periferia”, ou da estrutura tendencialmente radioconcêntrica da cidade moderna e contemporânea, cronicamente obscurecida pela noção intuitiva e geralmente aceita de que a cidade se expande a partir de um centro axiomaticamente estabelecido. 

Em sua obra magna de 1998 Espaço Intra-Urbano no Brasil [1] (Cap. 10, Os centros principais), Villlaça observou a impossibilidade lógica e histórica de um centro que pré-existe à sua própria periferia, e vice-versa, contradição que se apresenta já em 1925 na descrição feita por Burgess daquele que veio a ser conhecido como “o modelo de estrutura urbana em círculos concêntricos”:

Esta figura é uma representação ideal da tendência que tem toda cidade de se expandir radialmente a partir de seu distrito central de negócios – no esquema, ‘The Loop’ (I). [2] 

O problema reaparece, na década de 1960, no modelo alonso-thuneniano da economia espacial, tal como apontado pelo professor Correia da Silva, da Universidade do Porto, num trabalho de doutoramento do ano de 2004 intitulado “Space in Economics — A Historical Perspective”:

A relevância contemporânea do modelo de Von Thunen reside na sua adaptação à economia urbana, que permitiu o estudo da renda urbana e suburbana e da localização das famílias e atividades econômicas nas cidades. (..) A característica fundamental da economia urbana refletida no modelo é a necessidade que têm as famílias de ir ao centro para trabalhar usando um sistema radial de transportes. (..) Um defeito [fault] dessa abordagem é pressupor [it assumes] algo que está por ser explicado [we want to explain]: a existência do centro comercial urbano [urban central market].[3]

Com uma redundância que talvez não seja casual, Batty assim expressa, em recente artigo aqui divulgado sobre as cidades lineares, a fórmula geral de Burgess nos termos da economia espacial alonso-thuneniana:

“As cidades tendem a crescer ao redor de algum centro, em zonas concêntricas de uso do solo ordenadas de acordo com sua capacidade de pagar aluguel [ofertar renda], ligadas ao núcleo por meio de rotas radiais bem definidas que convergem para o centro”.[4]

Em contraste, e ainda que não se pretenda uma teoria da configuração radial-concêntrica da cidade moderna, o crescimento urbano simultaneamente “axial” e “central” a partir do ponto de origem postulado e descrito por Hurd em 1903 estabelece uma clara relação de reciprocidade e interdependência espacial, não valorada por ele em termos monetários mas inegavelmente econômica, entre o comércio de varejo e os residentes urbanos que dele dependem para se prover de bens e serviços. Trata-se, para os varejistas, antes de mais nada, de se agrupar no “lugar que mais convém aos clientes” para "assegurar-lhes que não deixarão de encontrar aquilo de que precisam".

O ponto de vista das firmas de varejo, neste caso, aponta para o que veio mais tarde a ser batizado na teoria econômica como “economia de aglomeração”, porém com um conteúdo distinto. Não se trata de externalidades positivas da concentração geográfica para as firmas individualmente consideradas, mas de benefícios coletivos diretos para o comércio de varejo agrupado no lugar mais conveniente ao conjunto das famílias do assentamento urbano: "os lojistas não se aglomeram para transacionar uns com os outros, mas para poupar aos seus potenciais fregueses os inconvenientes [custos diretos e indiretos] de buscar o que precisam em lojas dispersas pela cidade. O fato de uma loja atrair o freguês e outra fazer a venda tende a ser compensado, no longo prazo, pelo intercâmbio de fregueses”.

Significa que as famílias precisam residir o mais próximo possível do comércio tanto quanto as firmas precisam se estabelecer à menor distância agregada possível das famílias.

O assentamento dos residentes ao longo dos eixos radiais e suas adjacências, sempre o mais próximo possível do centro da rede, e a aglomeração dos varejistas no assentamento original e segmentos radiais contíguos aparecem, portanto, como manifestações economicamente interrelacionadas do mesmo fenômeno quintessencialmente urbano da aglomeração em geral. Toda a cidade é aglomeração.

Vale recuperar aqui a noção hurdiana de “crescimento urbano simultaneamente axial e central, em todas as direções a partir do ponto de origemnão do centro da cidade, que ainda está por se formar. A formação do centro urbano como desdobramento histórico do assentamento resulta de um processo de “contínua especialização nos negócios e diferenciação nas classes sociais”, que começa com “a separação de comércio e residência”, originalmente unidos em edificações de altos e baixos agrupadas junto aos elementos primordiais: embarcadouros, encruzilhadas, travessias fluviais etc. Ao passo que “mesmo nos menores povoados é vantajoso para as poucas lojas existentes estar aglomeradas”, as novas residências buscam a periferia imediata do assentamento, "onde os preços do solo são mais baixos", porém à menor distância possível dos comércios “para que os lojistas possam se deslocar a pé até o trabalho”. "Com o crescimento da cidade, a tendência é a concentração dos negócios no núcleo comercial e a dispersão periférica das residências ao longo dos eixos radiais. Toda expansão periférica será acompanhada de uma correspondente adaptação do centro de negócios."

Esses fragmentos reunidos compõem uma razoável descrição de como se dá o processo de especialização espacial pelo qual as residências formam a(s) periferia(s) urbanas e os negócios o centro e os subcentros. 

Aqueles dois tipos interrelacionados de economia de aglomeração poderiam, consequentemente, ser ditos primários, de natureza 100% social, explicativos da configuração geral e da dinâmica expansiva das cidades modernas, ao passo que as economias de aglomeração descritas e estudadas no âmbito da economia neoclássica, como os benefícios privados do agrupamento de fábricas em distritos especializados, do varejo em shopping centers e dos bancos no centro financeiro, seriam formas específicas que poderíamos considerar secundárias, ou derivadas. A metrópole capitalista não surgiu da fábrica, do shopping center, nem da Bolsa: tipicamente, ela expandiu e reconstruiu, de acordo com suas necessidades, a própria "cidade moderna", definida por Park como sendo, antes de tudo, um “lugar de trocas, que nasceu e cresceu ao redor do mercado”. [5]

A propósito, cabe registrar aqui a forma como Borrero Ochoa (2018), com base em Camagni, descreve a relação entre o "princípio da aglomeração" e o desenvolvimento das cidades: 

“O princípio da aglomeração nasce nas aldeias rurais e povoados que vivem dos camponeses ou agricultores da região. (..) aos domingos, dia de descanso, o comércio e praças de mercado desses povoados se abrem para que os habitantes rurais venham comprar alimentos, insumos agrícolas e buscar serviços de saúde ou mecânica automotriz. (..) Assim se desenvolve uma cidade a partir de um pequeno povoado dotado de certa dinâmica econômica. [6]

A hipótese de uma relação quantitativa, vale dizer monetária, entre aqueles dois tipos interdependentes de economias de aglomeração teria, naturalmente, de levar em conta a parte dos rendimentos das famílias e do lucro das firmas de varejo que a propriedade da terra reclama como renda de aluguel, aquela tanto maior quanto menor a distância ao núcleo varejista, portanto inversamente proporcional ao custo de deslocamento, e esta tanto maior quanto menor a distância agregada ao conjunto das famílias residentes, vale dizer mais próximo do centro geométrico da rede. Não tenho a pretensão de desenvolvê-la. Basta-me aqui referir que a redução do poder de consumo dos residentes por aumento de distância ao centro comercial, e consequente gasto de transporte, além de imediatamente dedutível dos efeitos de curto prazo das políticas contemporâneas de “tarifa zero” nos transportes urbanos, é uma restrição logicamente inquestionável da teoria dos lugares centrais de Christaller (1933):

"Assim, um consumidor que tenha de se deslocar a um lugar central para adquirir um bem terá menos dinheiro disponível do que um que viva no próprio lugar central, porque tem de pagar o custo do transporte. Ficará, assim, sujeito a comprar menos. Este efeito de fricção da distancia, causado pelo custo do transporte (pressuposto 1) provoca o decréscimo da procura com a distância ao lugar central." [7]

O postulado hurdiano do “crescimento urbano em todas as direções, simultaneamente axial e central”, parece reforçar a hipótese, avançada em artigo já publicado neste blog, [8] de que a estrutura da grande cidade moderna é um arranjo sócio-espacial derivado da disputa incessante entre consumidores e fornecedores por vantagens individuais de localização, sim, de tal maneira, porém, que à economia coletiva do “crescimento residencial axial regulado pelo princípio da [máxima] acessibilidade”, que traduzo como mínimo custo generalizado de deslocamento ao(s) aglomerados(s) comercial(is), corresponde, descontado o montante pago em aluguéis, o benefício coletivo do “crescimento central dos negócios regulado pelo princípio da [máxima] contiguidade [proximity]", que se traduz em menor distância agregada ao conjunto das famílias.

Das vantagens recíprocas, indicadas por Hurd, da localização relativa das famílias e firmas na cidade em expansão, vale dizer do crescimento urbano simultaneamente “axial” e “central”, podemos derivar a hipótese de que a configuração tendencialmente radial-concêntrica das cidades modernas resulta de um princípio de economia de aglomeração generalizado e socialmente construído, algo como o yin-yang da cidade capitalista, em que o “crescimento axial” é a forma de aglomeração própria dos residentes, que minimiza os custos coletivos de deslocamento, e o “crescimento central” a forma de aglomeração própria das firmas, que converte a economia coletiva das famílias em lucros comerciais (e industriais), primeiro sob a forma elementar da maximização das vendas de varejo e, logo, sob a forma complexa da maximização da mão de obra disponível ao mínimo custo de transportes, vale dizer do barateamento relativo da força de trabalho.

fundamento da configuração tendencialmente radio-concêntrica da cidade capitalista madura não é, portanto, a renda do solo, mas o próprio processo de produção-distribuição-consumo de bens e serviços. As famílias se aglomeram o mais próximo possível dos fornecedores e empregadores, e estes o mais próximo possível do conjunto das famílias, para obter o maior benefício, respectivamente, de seu trabalho e de seu capital - sujeitando-se, por conseguinte, a pagar mais aluguel. Espécie de imposto privado sobre o privilégio de ocupar as localizações urbanas mais centrais e proveitosas, a renda, ou preço, da terra urbana opera, como eficazmente demonstrado pelo modelo alonso-thuneniano da distribuição dos distintos usos, como dispositivo de medição e regulagem de sua escassez constitutiva. 

Dado que a produção de riqueza na formação social capitalista supõe, e é tanto maior quanto maior for o consumo de mercadorias, materiais e imateriais, segue-se que a aglomeração radial-periférica dos residentes urbanos ao redor da aglomeração central dos varejistas e prestadores de serviços ou, mais simplesmente, a configuração tendencialmente radioconcêntrica das cidades em expansão, é, em si mesma, um dispositivo espacial facilitador e acelerador do processo de acumulação do capital em geral, uma máquina de economia social a seu serviço, sobre a qual irá se desdobrar, diversificar e expandir - a ponto de produzir o seu contrário, vultosas deseconomias sociais - a organização espacial intrinsecamente desigual da grande metrópole contemporânea. 
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NOTAS

[1] VILLAÇA Flavio, Espaço Intra-Urbano no Brasil. FAPESP São Paulo 2001

[2] BURGESS E W, “The Growth of the City: An Introduction to a Research Project", em PARK R E, BURGESS E W e MCKENZIE R D, The City: Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment, The University of Chicago Press, 1984: Chicago e Londres, p. 50.
http://shora.tabriz.ir/Uploads/83/cms/user/File/657/E_Book/Urban%20Studies/park%20burgess%20the%20city.pdf

[3] CORREIA da SILVA J (2004), "Space in Economics — A Historical Perspective".
https://www.fep.up.pt/docentes/joao/material/space.pdf

[4] BATTY M, "The Linear City: illustrating the logic of spatial equilibrium". Comput.Urban Sci. 2, 8 (2022)
https://link.springer.com/article/10.1007/s43762-022-00036-z

[5] PARK R E, “The City: Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment”, em  PARK R E, BURGESS E W e MCKENZIE R D, The City. The University of Chicago Press, 1984: Chicago e Londres, p.12.
http://shora.tabriz.ir/Uploads/83/cms/user/File/657/E_Book/Urban%20Studies/park%20burgess%20the%20city.pdf

[6] BORRERO OCHOA O, Economía Urbana y Plusvalia del Suelo. Bogotá: Bhandar Editores 2018, p. 65.

[7] [BRADFORD M G e KENT W A, Geografia Humana e Suas Aplicações (Tradução do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Supervisão de Raquel Soeiro de Brito e Paula Bordalo Lema)

[8] JORGENSEN P, “Distância, aglomeração, centralidade: uma hipótese”. À beira do urbanismo  (blog) 08-03-2021

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Sobre este mesmo tema, leia também neste blog: “Distância, aglomeração, centralidade: uma hipótese” (08-03-2021)

2023-03-15