quarta-feira, 13 de abril de 2022

Solo urbano: escassez e planejamento

Deu no Financial Times
16-05-2021, por Martin Wolf

The idea that we have no land left for houses is absurd. We should base policy on demand, not “need”. New houses being built in Bristol. All developed land, plus gardens, plus indoor recreation covers a mere 15.3% of land in England. Farming accounts for 63% of land use. 



A matéria já é um pouco antiga, mas o tema absolutamente atual.

Liberais invariavelmente acusam o sistema de planejamento de agente de escassez de solo urbanizável / edificável, responsável, consequentemente, pelo alto preço da moradia. Sua solução, também invariavelmente, é liberar a oferta permitindo que os empreendedores construam o que quiserem, onde quiserem, quando quiserem. Aqui, o autor reclama:

“(..) market signals are telling us that the public wants more land in residential use, which is vastly more valuable to them than in its main current use, agriculture; 63 per cent of land is currently farmed, while all developed land, plus gardens, plus outdoor recreation, is a mere 15.3 per cent. (..)”

O pulo do gato dessa discussão é que na cidade moderna não existe "terra", mas terra-localização. E esta, 
além de desigualmente urbanizada, é constitutivamente escassa por ser o solo irreprodutível e limitadamente edificável e por ser a cidade uma estrutura cêntrica, mono- ou poli-, mas necessariamente cêntrica, em que, regra geral, menor distância agregada representa menores gastos de deslocamento para os residentes e maiores ganhos de aglomeração para as empresas. Daí provêm os gradientes de preço do solo, sujeitos, sem dúvida, a exacerbação por todo tipo de peculiaridades, como a topografia, e pressões especulativas extraordinárias, como a demanda turística. 

A alegação recorrente de que as restrições normativas "encarecem o solo por limitar a oferta" é uma falácia que esconde a natureza segmentada do mercado imobiliário e o papel preponderante dos proprietários - via de regra os próprios incorporadores - na limitação da oferta de terrenos. Terrenos no Centro urbano só excepcionalmente são destinados, pela via do mercado, a imóveis residenciais de "baixo padrão"; indiferente à imensa procura dos demandantes de poucos recursos por residências nessa parte da cidade, o proprietário do solo tende a retê-lo à espera da oportunidade de cedê-lo ao empreendimento mais rentável que fareje no horizonte, que em economia da urbanização atende pelo nome de "maior e melhor uso" - comercial-financeiro ou, no melhor dos casos, residencial rotativo de área mínima, alta densidade e elevado preço por m2.

O mesmo vale para outras áreas da cidade. Bairros pericentrais com boas condições de acessibilidade ao centro comercial e de negócios podem passar anos "reservados" para o uso residencial de segmentos populacionais mais abastados, independentemente da pressão de demanda de segmentos menos "aptos" em termos de oferta de renda.

Vale dizer, na cidade tal como a herdamos e reproduzimos sempre haverá escassez relativa de terra-localização e grandes diferenças de preço, tanto maiores quanto mais desigualmente distribuído for o rendimento da famílias. Nunca é demais lembrar: no mercado de solo urbano, leva quem paga mais. 

Isso sem falar que o liberal, quando fala em escassez de moradias, não está se referindo ao déficit habitacional, vale dizer à escassez absoluta, mas às condições de produção de habitações de mercado em áreas centrais e pericentrais das grandes cidades, cujos preços mínimos - aqueles abaixo dos quais o incorporador não encontra rentabilidade para investir - excluem a priori, no Brasil, cerca de 80% das famílias, boa parte das quais, inapta também à moradia de aluguel nos bairros periféricos, terá de recorrer aos cortiços e favelas centrais e pericentrais, à autoconstrução em áreas de risco e, eventualmente, à moradia social patrocinada pelo Estado.

Para que a redução das restrições edilícias reduzisse, de fato, a periferização e a precariedade habitacional, supostamente pelo mecanismo da filtragem (efeito cascata da mudança das famílias mais abonadas para imóveis novos), seria preciso que as incorporadoras construíssem uma quantidade muito maior de unidades do que as necessárias para satisfazer o aumento vegetativo e, eventualmente, migratório da demanda solvável - aquela que pode pagar, pelo menos, o preço do imóvel novo mais barato que os incorporadores se interessam em ofertar. 

Em suma, a reivindicação da “liberação da oferta” do "jugo" das restrições normativas não visa a produção de habitações para quem precisa, mas concentrar a produção imobiliária destinada a cada segmento do mercado comprador em uma quantidade menor de terrenos - para aumentar a rentabilidade de cada empreendimento

No que tange à escassez do solo-localização e à distribuição sócio-espacial dos demandantes, portanto, o planejadorseja criando uma cidade nova seja intervindo na existente, não é muito mais do que um árbitro de pequenas causas. Confrontado com as insaciáveis ambições competitivas dos urbanizadores de mercado, ele lança mão de normas restritivas do uso e ocupação do solo para, na medida de possível, frear a expansão excessiva da rede urbana, ajustar a densidade construída à capacidade das infraestruturas e à oferta de transportes públicos, definir parâmetros edilícios compatíveis com a arquitetura e o ambiente locais, proteger espaços públicos e bens naturais, preservar o patrimônio histórico e cultural, garantir eventuais direitos de quem não tem meios de competir com o "maior e melhor uso" do terreno que ocupa ou precisa ocupar, e até defender o preço das propriedades - caso clássico das vastas zonas residenciais unifamiliares dos subúrbios estadunidenses, em nome do patrimônio privado constituído e à custa da oferta de solo-localização!    

Todas essas medidas geram, por certo, escassez adicional de bens imobiliários, aumentando às vezes perceptivelmente os preços das localizações para onde se dirige a demanda reprimida e em medida muito pequena a média geral de preços na cidade, que em situações de crescimento econômico normal já é ascendente por si mesma.
Pode-se divergir desta ou daquela norma - em geral os liberais se agitam quando seus interesses imediatos são afetados -, mas convenhamos: este é o preço a pagar por um mínimo de convivência civilizada e estabilidade social, em benefício das próprias camadas abastadas, aliás.

O planejador urbano é, portanto, quando muito um administrador da escassez localizada; não é, definitivamente, o criador da escassez em geral nem tem o poder de reduzi-la significativamente, que dirá eliminá-la. 

A escassez de solo-localização está no DNA da grande cidade contemporânea. 

2022-04-13