quinta-feira, 25 de outubro de 2007

TPC vs. TDC: Onde está a diferença?

A professora Fernanda Furtado postou em 16-10 um breve e oportuno comentário ao texto “Transmilênios e recuperação da valorização do solo urbano”*, anteriormente publicado neste blog:
Pedro, não ficou claro para mim qual a real diferença entre a TDC [Transferência do Direito de Construir] e a TPC [Transferência de Potencial Construtivo] que você propõe. Nos dois casos, me parece que se está legitimando que um potencial construtivo ainda não realizado possa ser entendido como direito de construir do proprietário. Algo que vai contra a sua nota sobre o ponto.
Explico-me.

A tradição jurídica brasileira não reconhece ao proprietário de um terreno como coisa sua, como bem disponível, o potencial construtivo aplicável conforme a Lei de Uso e Ocupação do Solo. É prerrogativa da municipalidade manter, aumentar ou reduzir o potencial construtivo, bem como alterar os usos permitidos, sempre que um novo plano urbanístico é aprovado, sem incorrer em obrigações (“direitos adquiridos”) para com os proprietários de terrenos urbanos. É bom que seja assim e que continue assim. Não advogo a privatização do potencial construtivo ainda não realizado.

Mas o limite dessa autonomia da limitação do direito de construir é, no Brasil, a extinção da possibilidade de aproveitamento econômico do imóvel. Neste caso, é acionado o instituto da desapropriação, que deve ser paga pelo valor de mercado. E como sabemos, o valor de mercado de um terreno é função da combinação uso-aproveitamento mais rentável que ele pode ter. Portanto, sempre que a Municipalidade desapropria um imóvel pelo valor de mercado, o "potencial construtivo ainda não realizado [é] entendido como direito de construir do proprietário" e pago como se tratasse de uma compra-venda entre particulares. Dito de outra forma, muito antes de a Transferência de Potencial entrar em cena, o potencial construtivo não realizado é patrimonializado... pela desapropriação por utilidade pública paga pelo valor de mercado.

Na verdade, a técnica urbanística da Transferência de Potencial, ou do Direito de Construir, sempre opera no marco daquilo que o direito de propriedade determina como passível de indenização por parte do poder público. E é aqui que surge o problema. E que se faz necessária a distinção.

A TPC onerosa, tal como eu a entendo, opera no espaço da regra já estabelecida pelo instituto da desapropriação. Ao se iniciar um projeto que depende de desapropriações, a patrimonialização do potencial construtivo desses terrenos é inevitável, um dado do problema, e seu custo um custo do projeto como outro qualquer. O que a TPC pode fazer é transferir o custo direto (desembolso do Tesouro) das desapropriações para o mercado imobiliário (compradores de imóveis adicionais construídos, com o potencial transferido, em outros lugares do perímetro de projeto). A TPC equivale, pois, à Outorga Onerosa de um estoque de potencial construtivo já estabelecido na Lei Urbanística, ou no Plano Local , para cobertura das despesas do projeto com as respectivas desapropriações.

Como a TPC "recupera" a sobre-valorização no solo de destino para pagar o valor estabelecido para a indenização do solo de origem, o seu poder será tanto maior quanto menor for o espaço jurídico da obrigação de indenizar. Se as desapropriações por utilidade pública passassem a ser pagas pelo "valor de mercado sem projeto", o poder da TPC aumentaria consideravelmente; se passassem a ser pagas pelo valor da terra rural, a TPC se tornaria uma ferramenta de alta potência - e seria, é claro, acusada pelos proprietários de servir à especulação pública.

O problema com a TDC tal como definida no Estatuto da Cidade é que, ao invés de reduzir ou pelo menos ater-se ao espaço das regras dadas para a desapropriação, ela amplia perigosamente o espaço da obrigação de indenizar criando uma espécie de interesse público em fazê-lo. A TDC permite e incentiva que as Municipalidades indenizem, com "Títulos de Potencial Construtivo" (portanto pelo valor de mercado do terreno), proprietários de imóveis afetados por limitações ao direito de construir que não necessariamente eliminam a possibilidade de seu aproveitamento econômico, portanto não obrigam a Municipalidade a desapropriar (Art. 35, ... exercer em outro local... o direito de construir... quando o referido imóvel for considerado necessário para fins de...; Inciso II – preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural).

Assim, a interessante técnica urbanística da Transferência de Potencial se transforma em “cavalo de Tróia” de uma nova interpretação (patrimonialista) da relação entre a limitação do direito de construir e o pagamento de indenizações. A TDC é o veículo de uma nova modalidade de “incentivo” à preservação urbanístico-ambiental que já não é fiscal, mas parenta (muito) próxima da desapropriação por utilidade pública – porém (!!!) mantendo-se o proprietário não apenas na posse do imóvel como no usufruto do aproveitamento econômico que ele pode proporcionar: rentáveis lojas de souvenirs em centros históricos, agências bancárias em imóveis tombados pelo Patrimônio Histórico, resorts turísticos em áreas naturais protegidas... Nos termos do Estatuto da Cidade, a TDC pode funcionar como o Gênio da Lâmpada que concede ao Aladim proprietário o seu maior desejo: vender o imóvel e continuar sendo o seu dono. A meu ver, cria-se assim não apenas uma nova indústria urbanística da preservação ambiental (a "viúva" paga, e bem) como abre-se a porta para a privatização total do “direito de construir”.

A maneira mais simples e idônea de eliminar essa "liberalidade" é, a meu juízo, o Estatuto da Cidade estabelecer que a Transferência do Direito de Construir (que seria melhor chamar de Transferência do Potencial Construtivo) só possa ser aplicada a situações que impliquem em obrigação pública de indenizar ou em desapropriações por utilidade pública. Já não basta o absurdo de o Estado ser obrigado a desapropriar pelo valor de mercado (isto é, pela valorização esperada)?

Espero que tenha conseguido ao menos esclarecer o meu ponto de vista. Prossigamos o debate, que para isso está este blog. Em breve os leitores terão um link para um texto mais amplo que estou escrevendo sobre o tema. E eles próprios, sempre que quiserem, poderão ter seus textos publicados a partir deste blog.

2007-10-25

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Transmilênios e recuperação da valorização do solo urbano


Dentre as muitas aplicações da recuperação (pública) da valorização do solo urbano, uma das mais relevantes para as cidades brasileiras e latino-americanas é, sem dúvida, a aquisição de solo para a implantação de sistemas de transporte público de superfície.

O transporte urbano é um dos muitos caminhos que podem levar um urbanista ao tema da recuperação da valorização imobiliária. No meu caso, influiu decisivamente a convicção de que, devido à limitada capacidade de endividamento público no país, a construção de verdadeiras redes integradas de transporte urbano em nossas grandes cidades só poderia se dar mediante uma combinação equilibrada de segmentos básicos de Metrô no coração da cidade e corredores de alta densidade, trens urbanos modernizados, BRTs nos corredores radiais de expansão urbana e avenidas de ligação dos subcentros e ônibus “alimentadores” nas pontas da rede. Vale dizer, os BRTs podem ser a chave da integração de todo o sistema.

Mas o que é BRT?, há de se perguntar o leitor. BRT (Bus Rapid Transit) é a sigla que, na comunidade internacional da engenharia de transportes (fortemente dominada pela nomenclatura anglo-saxã) designa o sistema que Curitiba lançou há mais de 40 anos e Bogotá recém popularizou na América Latina com o nome de Transmilênio. Para uma visão abrangente das imensas vantagens do BRT, recomendo ao leitor clicar no link abaixo (“BRT-Artigo”) e ler a versão integral de matéria sobre o tema publicada n’O Globo de 26 de julho último, de autoria do engenheiro Ronaldo Balassiano, professor do Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Transportes da COPPE-UFRJ e incansável divulgador desse sistema.*
 

BRTs demandam avenidas capazes de acomodá-los adequadamente, em termos operacionais e urbanísticos. Foi, portanto, na busca de um método para resolver a crônica estagnação do sistema urbanístico de servidões de recuo para alargamento a longo prazo da grandes avenidas do Rio de Janeiro, em especial nas zonas norte e suburbana da cidade, que cheguei ao mundo fascinante, e até então insuspeitado para mim, da recuperação da valorização da terra.

O método em questão é aquele que prefiro chamar de Transferência (onerosa) de Potencial Construtivo (TPC)**. Em 2002, a equipe da Gerência de Operações Urbanas da Secretaria Municipal de Urbanismo do Rio de Janeiro ensaiou a sua aplicação no “Corredor Barão de Mesquita” (Centro-Pça. da Bandeira-Grajaú-Méier, ver Figura), estruturador histórico de uma sub-região urbana com mais de 360 mil residentes. 

A Transferência (onerosa) de Potencial Construtivo não implica a criação de potencial construtivo adicional. É mero manejo espacial do estoque vigente dentro de um perímetro de projeto, dos lotes afetados para outras localizações, conforme legislação específica. A TPC generaliza, via mercado imobiliário, o antigo princípio urbanístico da permuta das áreas afetadas por projetos viários pelo direito de aplicação privada do potencial construtivo correspondente no próprio lote. Com características próprias, este princípio tem sido aplicado na cidade de Porto Alegre desde a década de 1970, culminando na recente implantação da III Perimetral.*** 

A TPC não recupera para a municipalidade a valorização histórica do solo, mas promove a permuta, dentro de um horizonte temporal razoável, do acréscimo de renda fundiária que acompanha o aumento do lucro imobiliário nos empreendimentos adquirentes de potencial construtivo excedente – sem o qual não haveria, evidentemente, interesse dos promotores em sua aquisição – pelo solo de origem do potencial, necessário à implantação do projeto público. Mediante transações bilaterais ou leilões do estoque de potencial das áreas afetadas, a TPC “conduz” o mercado a realizar um objetivo público pré-fixado. Por isso, poderia talvez ser mais exatamente definida como instrumento de “otimização social” da valorização do solo. 

No financiamento de sistemas de transporte de superfície que demandam desapropriações, esse mecanismo deve ser visto como não alternativo, mas complementar à tradicional (embora raramente aplicada no Brasil) Contribuição de Melhoria, hoje em uso, por exemplo, na expansão do Metrô de Buenos Aires. Numa próxima postagem sobre o tema, tentarei mostrar, com poucos números e mapas, a urgência de os setores públicos competentes do Rio de Janeiro estudarem a aplicação da Transferência de Potencial Construtivo para a implantação de um BRT (Transmilênio, ou outro nome da preferência dos cariocas) no chamado Corredor “T-5” (Penha-Madureira-Barra da Tijuca).

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NOTAS
http://www.pet.coppe.ufrj.br/professores/ronaldo/index.html  
** Por oposição a Transferência do “Direito de Construir” (TDC), que, como discutirei em outra postagem, é hoje um instrumento que legitima o pagamento de compensações públicas - indevidas - a proprietários de imóveis urbanos afetados por limitações ao direito de construir que absolutamente NÂO lhes retiram a possibilidade de aproveitamento econômico.
*** Aos interessados, recomendo a leitura da Tese de Mestrado da Arq. Isabela Bacellar Guimarães (UFF, 2007), Transferência do Direito de Construir: questões e conflitos na aplicação do instrumento do Estatuto da Cidade, que contém um excelente depoimento da Arq. Néia Nuzon, da Secretaria Municipal de Fazenda de Porto Alegre.




2007-10-09