quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Da cidade feudal à cidade capitalista (1)

Fonte: Ver nota 13
O capitalismo nas cidades é tema recorrente em trabalhos das ciências e disciplinas que adotam uma dimensão especificamente urbana. Cabe, no entanto, perguntar: desde que momento, ou conjunto de circunstâncias, no longo e atribulado processo de dissolução das instituições feudais podemos falar de ‘cidades capitalistas’? Existem ‘cidades capitalistas’ por oposição a ‘cidades feudais’?


A sociedade feudal baseava-se na renda agrícola - em espécie ou tempo de trabalho nas terras do senhor e, mais tarde, também em dinheiro - imposta pela aristocracia guerreira sucessora do colonato romano e das comunidades germânicas, à guisa de proteção, aos camponeses que ocupavam e cultivavam a terra com seus instrumentos de trabalho. A produção agrícola excedente às estritas necessidades dos servos rurais, apropriada pela nobiliarquia fundiária, era a base da riqueza na sociedade feudal.

A sociedade capitalista, por sua vez, baseia-se na produção generalizada de mercadorias por trabalhadores livres para vender, em troca de um salário, a sua força de trabalho aos proprietários das instalações, instrumentos e insumos da produção. Aqui, o mais-trabalho assalariado, vale dizer o valor das mercadorias produzidas que exceda os custos totais de produção incluídos os salários, apropriado pelos capitalistas como lucro, é a base da riqueza. 

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Com o ressurgimento das cidades na Europa do século XII - para uns o resultado da riqueza gerada pelo comércio de longa distância, para outros da riqueza criada pelo lento, mas efetivo, desenvolvimento da agricultura feudal entre os séculos VI e XI [1] -, a renda agrícola foi estendida ao âmbito urbano, para o qual se transferira a produção de utensílios e ferramentas até então limitada ao âmbito dos castelos e monastérios.

A renda urbana contradizia o fundamento da sociedade feudal, porque os artesãos que formavam a espinha dorsal da economia urbana produziam, tal como os futuros capitalistas, para a troca no mercado - por outros utensílios, por artigos importados e, principalmente, por produtos agrícolas, com maior ou menor interveniência da moeda. 

Mas renda urbana não implicava, absolutamente, relações capitalistas de produção, que supõem o encontro de detentores de riquezas previamente acumuladas com trabalhadores livres da servidão rural, mas expropriados de suas terras e ferramentas, portanto compelidos a vender sua força de trabalho para continuar vivendo. E não só: capitalismo supõe também certa escala de produção, comércio e consumo, portanto a ampla circulação da moeda, sem o quê a parte do lucro não consumida e não entesourada não se transforma em reinvestimento continuado e consequente acumulação. E por essa época, é bom lembrar, a imensa maioria da população habitava os campos, cultivando-os de sol a sol em condições de pobreza quase absoluta. 

Por muito tempo mais os artesãos urbanos, ainda que empregando certa quantidade de jornaleiros recém-libertos ou evadidos da servidão rural, cuidaram mais que tudo de proteger seus privilégios de mercado por intermédio de guildas autorizadas pelos grandes feudatários ou pela própria coroa. O mesmo vale para os mercadores, cuja riqueza, proveniente da venda à nobreza feudal de bens de luxo trazidos o mais das vezes do Oriente, era comumente investida na aquisição de feudos. [2]

À exceção de uma ínfima minoria de senhores rurais e mercadores ricos residentes nas cidades, a renda do solo urbano, que a espelho da própria hierarquia feudal consistia em um vasto sistema de 'sublocações' [3], só podia provir dos módicos ganhos da produção artesanal, dos serviços pessoais, do incipiente comércio de varejo e dos parcos rendimentos de algum trabalho assalariado, às expensas do poder de consumo das famílias - como seria o caso, muito mais tarde e em muito maior escala, dos proletários das primeira cidades industriais capitalistas da Inglaterra -, portanto da acumulação de quaisquer capitais investidos na produção e no comércio.

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Um registro do ano de 1455, notavelmente extenso, das rendas devidas aos senhorios e à municipalidade [4] no burgo medieval de Gloucester, classificado por Hilton como pequeno núcleo mercantil e manufatureiro das Midlands inglesas [5], foi extensivamente analisado por Langton num texto de 1977 intitulado "Late Medieval Gloucester: Some Data from a Rental of 1455” [6].


Dentre muitos aspectos relevantes do trabalho, chamo a atenção para o fato de que as poucas as 'lojas' existentes eram meras tendas, instaladas junto aos muros das igrejas que ocupavam boa parte do ‘centro’ urbano - vale dizer o cruzamento das vias ortogonais herdadas do passado romano onde se erguia, por essa época, o cruzeiro denominado High Cross.

Batizadas Westgate, Eastgate, Northgate e Southgate, as ruas principais parecem testemunhar o fato, assinalado por Mumford, de que a centralidade econômica medieval se expressou junto às portas das cidades [7] antes de tender a ocupar - como observado por Langton com base no mapeamento dos usos do solo em Gloucester - os lugares mais acessíveis das redes urbanas, onde se realizavam, muitas vezes no pátio da igreja principal, as feiras periódicas destinadas ao intercâmbio entre a produção rural e urbana. [8]

Em 1455, a maior parte do comércio local era ainda uma função anexa aos edifícios onde residiam e trabalhavam os artesãos, em geral situados ao longo das vias principais, razão pela qual eram esses os imóveis que pagavam, quase sempre às instituições religiosas, mas também a um ou outro mercador enriquecido, as maiores rendas do burgo - ao contrario das lojas, que pagavam rendas irrisórias. 

Evidências de parcelamentos de lotes e edificações erguidas para fins de arrendamento não indicam absolutamente a existência, àquela altura, de nada que se possa assimilar à produção capitalista: a indústria da construção era tão artesanal e pouco produtiva quanto as da lã, metal, couro etc. 

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Dos mesmo registros de Gloucester 1455 analisados por Langton, bem como de Cartas e escrituras do século XIII oriundas dos burgos ingleses de Coventry, Worcester, Warwick e Stratfod, Hilton concluíra, ainda em 1967, que não havia nesse material indicações de um significativo acúmulo de propriedade fundiária urbana até o século XIII, e que a relativa concentração observada nos séculos XIV e XIV não se deu primordialmente em benefício de burgueses, mas de clérigos e instituições católicas. [9] [10]

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Mesmo com a ressalva de Hilton, de que “havia na Europa medieval cidades de todos os tipos e tamanhos - de grandes centros industriais, bancários e mercantis a pequenos mercados regionais e locais - das quais não devemos esperar respostas similares sobre a propriedade imobiliária urbana”, eu deduzo do exposto até aqui que não procede a tese central do célebre texto do geógrafo estadunidense J E Vance Jr (1925-1999) publicado em 1971 sob o título “Land assignment in pre-capitalist, capitalist and post-capitalist cities”[11], qual seja, a de que “o uso da renda fundiária urbana para fins de enriquecimento pessoal” nas cidades do baixo medievo é o marco distintivo do que chama de “morfogênese” da cidade capitalista. Um artigo especifico lhe será dedicado em breve neste blog. 

A continuação da série “Da cidade feudal à capitalista” terá como contexto os processos de proto-industrialização ocorridos na Europa entre os séculos XIII e XVIII. Sua principal referência será o texto “La ciudad en el proceso de protoindustrialización europea”, do historiador alemão Peter Kriedte [12].

2024-11-20 

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NOTAS

[1] Para Le Goff, "The towns were born not only out of the reawakening of trade, but also out of the growth of agriculture in the west, which was beginning to supply urban centres with a better supply of food and manpower." [LE GOFF J, Medieval Civilisation, pp. 73–74

[2] “Braudel suggests that families rarely remained in trade for more than three generations before buying their way into the old ruling class”. [HARMAN C, “From feudalism to capitalism”. International Socialism Winter 1989, pp. 35–87.

[3] "Thomas Payn, a Warwick burgess who bore the ephemeral title of ‘mayor’, held a dozen burgages for low rents from the Earl of Warwick and from a number of ecclesiastical landlords, as well as three of which he was principal landlord. His rent income from his sublettings was nearly four times as great as the rent he had to pay out." [HILTON 1967, ver nota 3][Itálico PJ]

[4] Landgavels eram rendas devidas à Coroa cujo pagamento, quando da cessão da terra a algum senhor, passava a ser feito às autoridades municipais. Podemos, talvez, interpretá-lo como um remoto precursor, na Inglaterra, do imposto municipal sobre a propriedade do solo. Talvez por isso, não apenas seus valores eram substancialmente menores do que as rendas 'privadas' de aluguel das terras e edificações, como sua incidência era espacialmente distribuída de um modo muito diferente - como deixa claro o mapa produzido por Langton. Em suas própruias palavras: "Payment was made in perpetuity to the original lord of the soil, generally to the King in ancient boroughs on the royal demesne, perhaps together with a number of other lesser lords, as in Gloucester. When a borough was farmed out by the king his landgavel and all other receipts to which he was due as lord were made over to the town authorities. It is these payments which are so meticulously recorded in the rental, which does not contain landgavels paid to other lords who maintained a tenurial interest in the city. [Itálicos PJ]

[5] HILTON R H, ‘Some problems of urban real property in the middle ages”. In Socialism, capitalism and economic growth; essays presented to Maurice Dobb. Cambridge: Cambridge University Press, 1967.
https://archive.org/details/socialismcapital0000fein/page/326/mode/2up?q=some+problems+of+urban

[6] LANGTON John, “Late Medieval Gloucester: Some Data from a Rental of 1455”. Transactions of the Institute of British Geographers Vol. 2, No. 3, Change in the Town (1977), pp. 259-277. The Royal Geographical Society (with the Institute of British Geographers).

[7] "No es posible dejar de considerar la muralla sin señalar la función especial de la puerta de la ciudad; que, mucho más que una mera abertura, era un «lugar de encuentro de dos mundos» el urbano y el rural, el conocido y el extraño. La puerta principal ofrecía el primer saludo al mercader, al peregrino o al caminante común; era a la vez aduana, oficina de pasaportes y punto de control de la inmigración, así como arco del triunfo, cuyos torreones y torres rivalizaban a menudo, por ejemplo en Lubeca, con los de la catedral o el ayuntamiento. (..) era por lo común cerca de las puertas donde se edificaban los almacenes y donde se congregaban las posadas y las tabernas, mientras que los artesanos y mercaderes instalaban sus tiendas en las calles contiguas. Así, la puerta produjo, sin normas especiales de distribución en zonas, los barrios económicos de la ciudad; y como no había solamente una puerta, la naturaleza misma del tráfico procedente de diferentes regiones tendió a descentralizar y diferenciar las zonas comerciales. Como consecuencia de esta disposición orgánica de las funciones, la zona interior de la ciudad no estaba recargada por tráfico alguno, pues solo circulaba el generado por sus propias necesidades." (..) [MUMFORD L (1961), La Ciudad en la Historia, Capítulo X. Logroño (Esp): Pepitas de calabaza Ed., 2012, pp. 503-24

[8] "Cuando se descubre que la plaza del mercado se extiende frente a la catedral, o que se abre una cuña o un cuadrado en las cercanías, no se les debe asignar a estos datos el mismo valor que tienen hoy: el mercado era ocasional, en tanto que los servicios de la iglesia eran constantes y regulares. Al igual que en el caso del crecimiento inicial de la ciudad, el mercado se asienta cerca de la iglesia porque es allí donde los habitantes se reúnen más a menudo." [MUMFORD L (1961), op. cit. pp. 503-24]

[9] "Thirteenth-century evidence from Stratford, Worcester and Gloucester, mostly charters and deeds, gives no indication there of big accumulations of real property. This thirteenth-century evidence is too scanty to be conclusive, but what there is leads in the same direction. The more abundant fourteenth and fifteenth-century evidence suggests something of a trend towards a greater concentration of real property holdings, but mostly in the hands of institutions". [HILTON 1967, olp. cit.]

[10] Sintomaticamente, o tradutor e editor desse material os descreveu, em 1890, como 'register or rental of all the rents and possessions of lands and tenements of abbots, priors, nuns, and of the stewards and other burgesses and lords within the Borough of Gloucester was compiled in 1455 by Brother Robert Cole, canon of Llanthony priory and 'the Renter there'. [Ver Nota 5 em LANGTON op. cit.] [Itálicos PJ]

[11] VANCE Jr J E (1971), "“Land assignment in pre-capitalist, capitalist and post-capitalist cities”. Economic Geography 47,101-20.

[12] KRIEDTE P, “La ciudad en el proceso de protoindustrialización europea". Manuscrits: Revista d’història moderna No. 4-5, 1987, pp. 171-208