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terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Apontamentos: Cruz-Muñoz 2021 e a metropolização latino-americana

Estes apontamentos são parte de um processo de estudo compartilhado. À beira do urbanismo está à disposição dos autores cujo trabalho aqui se comenta para suas considerações.

CRUZ-MUÑOZ F, “Patrones de expansión urbana de las megaurbes latinoamericanas en el nuevo milênio”. EURE Vol 47, no. 140 (2021)
https://www.eure.cl/index.php/eure/article/view/EURE.47.140.02/1365  


Ótima proposta de comparar o processo de urbanização recente nas quatro maiores metrópoles da América Latina, mas não sei se bem resolvida dos pontos de vista técnico e  conceitual. Chama a atenção, por exemplo, a imensa disparidade - não explicada - de proporção de moradias periféricas sem serviços (Tabela 4) em São Paulo (0,08) e Rio (0,81) vs Buenos Aires (14,5) e Cidade (30,0) do México. Por si só essa disparidade deveria implicar uma diferença profunda de padrões de expansão urbana entre esses pares de cidades, dificilmente enquadráveis na mesma categoria analítica.
 
Direto ao ponto, considero exageradamente esquemático o conceito de “urbanização neoliberal” por oposição a “urbanização desenvolvimentista” ou “urbanização regulada e gerida pelo Estado”, tanto quanto a ideia de que “a visão do Estado a respeito da gestão urbana se transformou, passando de racionalista a empresarial”.

É evidente aqui a ressonância da proposição de ABRAMO:

Este predo­minio del mercado como mecanismo de coordinación de las decisiones de uso del suelo constituye un rasgo característico de la ciudad neoliberal, en contraste con el periodo del fordismo urbano, cuando el papel del mercado en la producción de las materialidades urbanas estaba fuertemente mediado por el Estado a través de la definición tanto de las reglas de uso del suelo como de las características de tales materialidades. La crisis del fordismo urbano implica, por tanto, el “retorno del mercado” como elemento determinante en la producción de la ciudad neoliberal. [1]

Não creio ser correto dizer que “as políticas neoliberais trastocan (perturbam, desorganizam, desestruturam) a urbanização, AGORA atrelada a uma lógica de mercado em que o setor imobiliário adquire um papel cada vez mais importante” (destaque meu). 

Penso que a urbanização brasileira, e a latino-americana também, está “atrelada à lógica do mercado” desde pelo menos o último quarto do século XIX; que desde então essa “lógica” desestrutura e reestrutura a urbanização no ritmo de suas necessidades; e que os setores imobiliário e de transportes jamais deixaram de ser os atores principais e maiores beneficiários de nossas “políticas urbanas”, independentemente de particularidades nacionais, flutuações cíclicas, compromissos, recuos e até eventuais revezes impostos por programas públicos de moradia, integração de transportes, preservação do patrimônio, conservação ambiental e recuperação de mais-valias. 

O fato de as instituições de planejamento urbano, habitação e transportes incluídos, terem perdido força e prestígio no século XXI não significa absolutamente que antes estivessem ‘no controle’ do desenvolvimento das cidades. Cabia-lhes fundamentalmente, como cabe ainda hoje, interpretar e traduzir em planos, projetos, obras públicas e regulações o ‘status’ da disputa histórica entre os interesses gerais e particulares envolvidos no processo de urbanização. Serem eles próprios forças vivas na formação desse equilíbrio não outorga aos quadros técnicos dessas instituições possibilidades ilimitadas, nem muito menos, mesmo em ciclos históricos favoráveis ao exercício da profissão de planejador. 

É inquestionável a exacerbação, a partir dos anos 1990, das tendências anárquicas da urbanização de mercado - metropolização imparável, fabulosas deseconomias urbanas, segregação espacial, explosão do preço da terra, fragmentação territorial, informalidade, espoliação de direitos, naturalização da precariedade, emergência de Estados paralelos etc. Mas a ideia de que o mundo anterior à desregulamentação neoliberal era um mundo "racional" em que o Estado tinha a primazia na condução do desenvolvimento é, ao meu juízo, equivocada, no plano da economia como no do urbanismo.

A "metrópole neoliberal" não é uma forma pura, sequer inteiramente nova, da urbanização de mercado. Todas essas tendências foram gestadas, nasceram ou já estavam presentes, em maior ou menor grau, na “cidade desenvolvimentista”, para usar um termo chancelado pelo autor. Por outro lado, essa mesma “urbanização neoliberal” não é capaz de livrar-se do passado “fordista” que carrega dentro de si. Dois exemplos desse entrelaçamento de ciclos e suas contradições ocorrem-me de imediato. 

No Brasil, a influência do neoliberalismo nas políticas urbanas pode ser tida como fator importante para a baixa eficácia, muito aquém das expectativas, das legislações urbanísticas distributivistas (recuperação da renda da terra urbana) criadas na esteira da Constituinte de 1988 e sacramentadas no Estatuto da Cidade de 2001. Contudo, os institutos legais criados sobrevivem, com raízes institucionais razoavelmente sólidas em algumas capitais e importantes redes de quadros técnicos municipais, estaduais e federais plenamente atuantes em sua defesa, difusão e aplicação. 

Já o programa habitacional Minha Casa Minha Vida, um inegável sucesso quantitativo criado por um governo progressista em plena época neoliberal (2009), não por acaso saudado pela construção civil como "a salvação do setor", [2] é amplamente criticado nos meios acadêmicos e profissionais, e com razão, por ter reproduzido em larga escala a dinâmica da urbanização "desenvolvimentista", isto é, o desterro das famílias de menor rendimento para as periferias mais distantes e sub-urbanizadas. [3]

O tema merece, portanto, um exame mais acurado, se não no plano técnico, com certeza do ponto de vista da interpretação histórica. 

PS: A boa prática acadêmica de referenciar os conceitos adotados, ou levados em conta, em uma exposição, pode se transformar num embaraço. São tantas e tão frequentes as referências neste texto, linha a linha, que o marco conceitual do autor vira uma colcha de retalhos.

___
[*] ABRAMO P, “La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latino-americanas”, EURE vol 38 no 114 mayo 2012 pp. 35-69
http://www.eure.cl/index.php/eure/article/view/68/556

[2] "Minha Casa, Minha Vida é a ‘salvação’ do setor". O Tempo 09-07-2014, por Thaís Pimentel.
https://www.otempo.com.br/economia/minha-casa-minha-vida-e-a-salvacao-do-setor-1.879386

[3] Ver por exemplo, neste blog, “Habitação, Emprego e Mobilidade: subsídios para o debate sobre a localização da HIS na cidade do Rio de Janeiro”. À beira do urbanismo 12-02-2012, por Antônio Augusto Veríssimo - Arq/Urb.
http://abeiradourbanismo.blogspot.com/2012/02/habitacao-emprego-e-mobilidade.html


Acesse o artigo de CRUZ-MUÑOZ pelo link
https://www.eure.cl/index.php/eure/article/view/EURE.47.140.02/1365

2021-02-16


domingo, 24 de novembro de 2019

Laranja agradecida

FolhaNit 23-11-2019

Integração Entre Ônibus e Barca Terá Desconto de R$ 4 a Partir de Dezembro

A partir de dezembro, o passageiro que pegar um ônibus municipal (R$ 4,05) e depois a barca (R$ 6,30) poderá pagar R$ 6,35 pela viagem nos dois modais, ao invés dos R$ 10,35 atuais, um desconto de R$ 4.

(..) O projeto faz parte do Plano Municipal de Mobilidade Urbana Sustentável, que será apresentado no próximo dia 26, e tem o objetivo de incentivar o uso do transporte público. Rodrigo Neves explicou que enviará à Câmara nas próximas semanas o pedido de autorização legislativa para implantar um projeto que pretende subsidiar o desconto nas tarifas e que a integração com o Estado é para que o benefício funcione no mesmo sistema do Bilhete Único.


Moradores de outras cidades que têm o Bilhete Único metropolitano estadual e fizerem a integração de ônibus municipal em Niterói com as barcas também serão beneficiados. Witzel enfatizou a importância de mais uma parceria com a Prefeitura e comemorou a iniciativa do Município. “Estamos trabalhando pelo bem da população.” (..)
*
A medida, indiscutivelmente, é ótima para os usuários afetados. O subsídio é inevitável porque não há como compensar os custos crescentes dos transportes de metrópoles globalizadas com tarifas pagas por salários latino-americanos.

Mas convenhamos.

Primeiro retalha-se o sistema metropolitano de transportes para entregar cada pedaço a uma concessionária em prejuízo da racionalidade do sistema, com aumento geral de custos a serem repassados às tarifas. Em seguida, põem-se os municípios a competir pela concessão de subsídios!

Será absurdo pensar que estamos assim transferindo recursos dos royalties do petróleo às concessionárias, ficando a população na posição de laranja agradecida aos papais-noéis de plantão? Ou devemos nos limitar a aplaudir o prefeito de Niterói por saber tirar partido da nossa riqueza relativa para melhorar ainda mais a nossa posição?

Imaginemos a situação do morador de São Gonçalo, onde a renda per capita 2010 era R$ 669,30, pagando 4 reais a mais pelo seu deslocamento ao Centro do Rio de Janeiro que o morador de Niterói, onde a renda média 2010 era R$ 2009,29. Caberá a Niterói, a São Gonçalo ou ao Estado do Rio arcar com a ineficiência de criar-se uma nova gambiarra no sistema para compensar tamanha iniquidade?

2019-11-24