https://rbeur.anpur.org.br/rbeur/article/view/6136Ao dizer, na Introdução ao artigo aqui comentado, que a “dispersão [urbana], por mais desconcertante e transformadora que seja, não significa o fim da cidade, mas apenas uma de suas (várias) transformações históricas”, Pescatori e Faria nos convidam a refletir sobre um de nossos mais caros e arraigados hábitos mentais: o dualismo centro-periferia.
Não seriam, portanto, como parecem sugerir os autores, a compactação central e a dispersão periférica apenas formas relativas e interdependentes, historicamente construídas e permanentemente diferenciadas, da aglomeração urbana moderna e contemporânea?
"do ideário de dispersão difundido por meio da ação de empresas de reconhecida importância na historiografia do Urbanismo: a Compañía Madrileña de Urbanización (CMU), empresa urbanizadora fundada pelo madrilenho Arturo Soria y Mata para implementar sua ideia de ciudad lineal, proposta pela primeira vez em 1882; as empresas Garden City Pioneer Company e First Garden City Ltd, fundadas, respectivamente, para levantar fundos e gerenciar a construção de Letchworth, primeira cidade-jardim construída, cujo esquema teórico foi concebido em 1898 por Ebenezer Howard; e a empresa City of São Paulo Improvements and Freehold Company Ltd, conhecida como Cia. City, responsável pela implementação dos primeiros bairros-jardim de São Paulo, a partir de 1915."[2]
“O estudo de Navacués nos permite apreciar a realização de Soria "dos pés para a cabeça", isto é, como projeto de urbanização antes que como utopia, mais exatamente especulação, urbanística, ambiguidade que a define, quem sabe ao lado da cidade-jardim howardiana, como híbrido histórico: pode-se discutir se é o programa de reforma social que para poder sair à luz se adapta às exigências da nascente indústria da suburbanização ou se é esta que, ainda debutante, se apresenta aqui e ali em trajes de colônia semi-rural destinada ao aperfeiçoamento físico e moral das classes laboriosas.” [6]
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Não surpreende, a essa altura, que a Cia City seja introduzida aos leitores não como a empresa que promoveu o primeiro ciclo de dispersão urbana de São Paulo, mas como a empresa que "auxiliou no ideário da dispersão urbana" da capital.
A riquíssima descrição de seu "intricado modus operandi, com o desenvolvimento de estratégias de negócios baseadas em relações de influência direta sobre o poder público com vistas a beneficiar-se, acomodar seus interesses e ampliar os lucros" contrasta com a inexistência de fatos que comprovem a existência ou formação de um "ideário da dispersão", por oposição a ideários alternativos, no âmbito da companhia, de seu corpo dirigente, de seus projetistas e de seus empreendimentos.Nenhum registro material é apresentado para demonstrar que essa empresa que fez de Barry Parker seu "lobista", tirando "proveito de sua fama internacional como arquiteto e sócio de Raymond Unwin [no projeto de Letchworth Garden City] para aproximar-se de funcionários da Prefeitura de São Paulo e influenciá-los no que se refere à realização de seus projetos urbanísticos", também "se apresenta como vertente do ideário de dispersão urbana que emergiu da crítica à cidade compacta e densa". Em que âmbito se deram essas discussões? Quais foram os seus protagonistas?
A síntese dessa ambiguidade é o parágrafo seguinte:
A atuação da City no início do século XX produziu uma expansão urbana bastante característica, voltada para as elites de São Paulo, reinterpretando o ideário da cidade-jardim para a realidade brasileira. A empresa foi definitiva na difusão desse ideário como proposta de urbanização, ainda que restrita à escala do bairro. E, mesmo nessa escala, apresentam-se princípios de dispersão urbana, especialmente no que tange aos padrões da urbanização residencial unifamiliar, de baixa densidade e de expansão da malha urbana. [7]
Não tenho dúvidas de que a migração, em inícios do século XX, de segmentos da sociedade paulistana para a periferia da capital foi alimentada, no que tange às expectativas dessas famílias, por um ideário mesclado de higienismo e elitismo: baixa densidade, ar puro, espaços verdes, privacidade. A todo processo social subjazem crenças, nas quais, em nosso caso, tem papel importante a fama internacional das cidades-jardim e dos subúrbios-jardim.
Mas as crenças não nascem de si mesmas, como revelações: a crença nas vantagens de morar num bairro-jardim tem um conjunto de pré-condições, a primeira delas a existência de capitais urbanizadores capazes de adquirir terras, loteá-las, urbanizá-las, financiar a aquisição de lotes e residências e, o que é decisivo para o negócio, propagandear as vantagens da vida suburbana. Esses capitais não são portadores de um ideário urbanístico de dispersão escolhido dentre outros ideários urbanísticos possíveis, nascidos nas universidades e na imaginação dos reformadores sociais, mas agentes econômicos catalisadores de um processo de dispersão impulsionado por uma combinação de circunstâncias socialmente dadas, alheias à vontade de cada agente individual e das distintas escolas de Urbanismo: crescimento demográfico, aumento da riqueza coletiva, provimento de serviços públicos e consequente expansão da área urbanizável, desejo de ascensão social espacialmente compartilhada, expectativa de construção do patrimônio familiar etc.
Longe de "reinterpretar o ideário da cidade-jardim para a realidade brasileira", a City recriou, para as condições de S. Paulo, o produto imobiliário subúrbio-jardim, objeto, na Inglaterra, de uma rumorosa ruptura de Unwin e Parker com a doutrina descentralizadora de Howard [6b]. O bairro-jardim paulistano foi a resposta das companhias urbanizadoras ao fato de que S. Paulo não tinha, àquela altura, escala nem estrutura de transporte que justificassem o conceito de "subúrbio-jardim". A cidade-jardim, por sua vez, não foi sequer cogitada pelo simples fato de que as famílias interessadas na aquisição de novas moradias periféricas estavam ainda obrigadas à viagem diária ao centro de negócios da capital.
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A essa altura, creio ser necessário abordar a relação, crucial na construção do artigo, entre descentralização e dispersão. Começo por uma relevante diferença de opinião entre os autores e Hall a propósito dos desígnios de Ebenezer Howard.
Para Pescatori e Faria, Howard "defende veementemente a urbanização de baixa densidade como solução para os problemas da cidade daquele período". Hall contesta tal visão, que seria a da maioria dos críticos de Howard, afirmando que a cidade-jardim howardiana "comporta densidades como a do centro de Londres" e que não se pode "confundi-la com subúrbios-jardim como Hampstead e suas numerosas imitações". O objetivo howardiano de - nas palavras dos autores - "deter a migração campo-cidade" por meio de uma “cidade-campo” que “assegure a combinação perfeita de todas as vantagens da mais intensa e ativa vida urbana com toda a beleza e prazeres do campo na mais perfeita harmonia” não implica, para Hall, "confinar as pessoas em povoados rurais isolados", mas oferecer-lhes "conurbações planejadas de centenas de milhares, e até mesmo milhões, de habitantes. [8]
Descontado o viés da fervorosa admiração de Hall pelas ideias de Howard, sua interpretação é que a doutrina howardiana não postula absolutamente a "dispersão", que ambos associam à expansão da fronteira metropolitana pela via das novas urbanizações periféricas, como os subúrbios-jardim, mas a "descentralização" urbana na forma do plano de "polinucleamento integrado" batizado Social City na edição de 1898.
Pescatori e Faria têm outra visão:
Embora me pareça razoável postular que, no limite, a descentralização é uma forma de dispersão e que o polinucleamento não produzido pelo próprio mercado implica certo grau de dispersão econômica e cultural - haja vista o papel insubstituível atribuído aos grandes centros pelas agências de desenvolvimento econômico -, em termos estritamente espaciais e de política urbana a construção de cidades novas nos espaços intermédios das grandes metrópoles, como fez o Estado britânico no pós II Guerra, se distingue claramente do estímulo, por ação (infraestrutura e serviços) ou omissão (legislação permissiva), à suburbanização, vale dizer à expansão da mancha urbana por agregação de parcelamentos periféricos. Do contrário não faria sentido existir tal distinção. Ao passo que a suburbanização procede do movimento "natural", vale dizer da natureza lucrativa, do capital urbanizador, as cidades novas são, com as notáveis exceções de Letchworth, Welwyn e um punhado de cidades industriais construídas na Europa e EUA, empreendimentos impensáveis fora da alçada do Estado planejador e promotor.O polinucleamento integrado, ou seja, a composição de núcleos urbanos separados fisicamente, mas interligados econômica, social e culturalmente, é uma organização dispersa na essência, baseada na noção de que a cidade não deve crescer infinitamente; ela deve ser limitada e, conforme a necessidade, outro núcleo deve ser construído. [9]
(..) As for designers of cities (..) we know a lot about the big names (..). But cities are given shape by all sorts of people (..). There are two reasons, beyond the obvious restraint of length, why this chronicle would not be germane to our story, except perhaps intermittently. First of all, attention to the “designers” tends to favor new cities like Palmanova or Canberra, and ideal cities that were never built. I am interested, rather, in real cities - their creation and subsequent behavior. I focus on the theory or urban design, or on abstract urban schemes that are there to prove a point or propose a utopia, only when there is a tangible relation to the practices of actual town-making. More importantly, many cities come about without benefit of designers, or once designed, set about instantly to adapt themselves to the ritual of everyday life and the vagaries of history. [*]
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NOTAS
[1] BURGESS E W, “The Growth of the City: An Introduction to a Research Project", em BURGESS, E W e PARK R E, The City: Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment, The University of Chicago Press, 1984: Chicago e Londres
https://kupdf.net/download/park-burgess-the-citypdf_5a46e89ae2b6f5a6028b1d54_pdf
[2] PESCATORI C e FARIA R, “Dispersão urbana e empresas urbanizadoras na cidade industrial: a atuação da Compañia Madrileña de Urbanización, da Garden City Pioneer Company, da First Garden City Ltda. e da Cia City.” Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, [S. l.], v. 22, 2020, p.4.
[3] HALL P, Cities of Tomorrow [1988], Blackwell, Londres 1996, p.48-9.
[4] HALL P, op. cit. p.48.
[5] HALL P, op. cit. p.2.
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/01.006/3240
[7] PESCATORI C e FARIA R, op. cit, p.19.
[8] HALL P, op. cit. pp. 87, 93.
[9] PESCATORI C e FARIA R, op. cit, p.11.
[10] PESCATORI C e FARIA R, op. cit, p.13.
[11] “The Big Plans That Built New York City”. Bloomberg, 02-02-2022, por John Suricohttps://www.bloomberg.com/news/features/2022-02-02/how-new-york-s-master-planners-shaped-a-metropolis
[14] WIKIPEDIA, “New Towns Act” Edit 28-03-2023
https://en.wikipedia.org/wiki/New_Towns_Acts
[15] KOSTOF S, The City Shaped, “Introduction”. London: Thames and Hudson 1991, p. 12