por Antônio Augusto Veríssimo, arquiteto e urbanista
O texto a seguir, de autoria do arquiteto Antônio Augusto Veríssimo, analisa os pressupostos utilizados pelo arquiteto Sérgio Magalhães para a produção de artigo, recentemente publicado em O Globo, com críticas ao programa governamental Minha Casa Minha Vida. Para elaborar esta análise, o autor se apoia nos conceitos da economia urbana sobre a formação do preço do solo, na trajetória recente das políticas habitacionais no continente latino-americano e em distintas experiências internacionais de combate ao déficit habitacional.
O artigo do arquiteto Sérgio Magalhães publicado em O Globo pode ser acessado pelo link
http://oglobo.globo.com/opiniao/minha-casa-no-pais-do-carro-zero-8223777
O Arquiteto Sérgio Magalhães publicou, no Jornal O Globo em 27/04/2013, artigo em que questiona a capacidade do Programa Minha Casa Minha Vida de dar respostas adequadas ao tema da habitação popular no Brasil. Ao modelo adotado pelo Governo Federal, contrapõe a proposta de implantação de um amplo programa de crédito à demanda que dê total liberdade de escolha às famílias, liberando-as do dirigismo e da tutela estatal. Para exemplificar o que considera um paradoxo, citou a facilidade com que se consegue hoje crédito farto e barato para a aquisição de um carro zero de livre escolha do consumidor. O artigo nos leva a acreditar que a simples disponibilidade de crédito para habitação daria conta de suprir a demanda que hoje busca na autoconstrução em favelas e loteamentos irregulares a solução para sua habitação.
O autor parece não levar em conta questões fundamentais para este tipo de análise: em primeiro lugar, as famílias que buscam resolver seu acesso a uma unidade habitacional em assentamentos irregulares não pertencem à mesma classe social dos demandantes por carro zero. Em segundo, o processo de produção da “mercadoria” habitação se dá em condições muito distintas do processo de produção de outros bens de consumo industrializados, como um automóvel, por exemplo.
Para ser ter uma ideia do descompasso entre as distintas demandas, vale lembrar que o déficit habitacional brasileiro é de 5,5 milhões de domicílios, sendo que cerca de 90% deste total está situado na faixa de renda familiar de 0 a 3 salários mínimos, faixa amplamente composta por população com acesso precário ao mercado de trabalho, que vive de ganhos eventuais, atividades à margem do mercado formal, ou de programas de transferência de renda. A maior parte, segundo os critérios das instituições financeiras, não é sujeito de crédito, não tendo, portanto, acesso ao mercado imobiliário formal; suas alternativas habitacionais, até poucos anos, se limitavam àquelas oferecidas pelo mercado informal (favelas, loteamentos irregulares, cortiços) ou ocupações em áreas de risco, edifícios abandonados, etc.)
Por outro lado, a produção da habitação não se dá da mesma forma que a de outros bens de consumo produzidos industrialmente. Além de seu ciclo produtivo ser muito longo, comparativamente a outros bens, e de seu alto valor agregado, existe uma condicionante fundamental que é a sua absoluta dependência de um insumo muito particular que é a terra urbanizada.
A terra não é um insumo como o aço, a madeira ou o plástico, que podem ser produzidos industrialmente em larga escala e estar disponíveis para transformação em outros bens em qualquer parte do território. A terra, especialmente quando urbanizada e bem localizada, é escassa e relativamente irreproduzível. Por esta condição, seu preço no mercado é principalmente valorado não pela quantidade de material e trabalho nela adicionada, e sim por seus atributos de localização em relação a outros bens imóveis na cidade. Por ser um bem escasso, o seu preço se forma como em um leilão, sem manter uma relação direta com a composição dos custos envolvidos na sua produção. Sendo assim, a simples concessão de crédito, sem um devido investimento em produção de novas áreas urbanizadas ou a revitalização para adensamento de áreas degradadas ou subutilizadas, só faria aumentar o preço da terra inviabilizando ainda mais o acesso dos mais pobres a uma habitação digna.
Também não parece adequado afirmar que os programas habitacionais seguem a mesma cartilha desde os anos 40. Nas políticas tradicionais, entidades estatais cumpriam um importante papel na produção, desenhavam programas e projetos, atuavam como urbanistas e como construtores, especialmente com recursos do orçamento público. Funcionavam como provedores de habitações sociais para as famílias de baixa renda e faziam as vezes de entidades financeiras disponibilizando crédito para as famílias.
A partir dos anos 60, no rastro das reformas econômicas orientadas ao mercado e ao setor privado na América Latina por influência da “Escola de Chicago”, foram redefinidos os papeis dos setores públicos e privados na produção habitacional. O setor público assumiu o papel de gestor de um sistema de subsídios diretos à demanda e o privado a responsabilidade pela construção de habitações de interesse social, proporcionando crédito e financiamento em condições de mercado. No entanto, mesmo naqueles países onde a cartilha neoliberal foi seguida à risca, como é o caso do Chile, o sistema de crédito + subsídio não conseguiu alcançar os setores de mais baixa renda, sendo necessária a intervenção estatal com a contratação direta pelo estado de unidades habitacionais.
O Brasil, com o Programa Minha Casa Minha Vida, foi na mesma direção e segue este modelo híbrido que combina a produção de unidades habitacionais contratadas diretamente pelo Estado (vendidas a baixíssimo preço, ou mesmo doadas, para a faixa de 0 a 3 SM), com a produção de mercado para as faixas de 3 a 6 e 6 a 10 SM viabilizada pela concessão de crédito com taxas de juros diferenciadas para a oferta e subsídio direto à demanda.
Assim como no caso chileno, este modelo se mostrou muito eficiente para o alcance de metas quantitativas, geração de empregos e impulso da cadeia produtiva da construção civil; mas, por outro lado, apresentou problemas de natureza urbanística, arquitetônica e social, especialmente no estoque produzido para os estratos de mais baixa renda. Teve ainda um forte impacto sobre o mercado fundiário, provocando um acelerado aumento do preço da terra que exigiu recorrentes aumentos nos valores dos subsídios governamentais ofertados.
As políticas habitacionais latino-americanas, via de regra, têm como fundamento o princípio de que cada família deve ser proprietária de sua habitação (“fazer do Chile um país de proprietários” era um slogan da ditadura Pinochet), na compreensão de que a casa própria desempenha um papel ideológico que transforma o trabalhador em “aliado da ordem”, não havendo incentivos em nossos países para a oferta legal de imóveis de aluguel. No mercado informal, no entanto, especialmente nas favelas, é crescente a oferta de unidades para aluguel; solução mais adequada para imigrantes recém-chegados em busca de trabalho e para jovens em início de suas vidas, fora a casa materna.
Há países que apostam em outras estratégias para garantir moradia para essa demanda não atendida pelo mercado imobiliário formal. Europa e América do Norte têm, na produção de unidades para aluguel, fortemente subsidiada e dirigida pelo Estado, a principal ferramenta para a solução do déficit habitacional. Mais recentemente, nestes mesmos países, e como política de Estado, muito se tem investido no fomento à produção de empreendimentos de renda mista que abrigam, sem diferenciação na aparência ou na qualidade da construção, famílias de distintas classes de renda no seu interior - uma política que tem produzido resultados muito positivos.
Na própria América Latina surgem iniciativas muito promissoras, como no caso colombiano, que apontam para a utilização articulada de instrumentos de política urbana que viabilizam, sem custo para a coletividade, a produção de solo urbanizado destinado a habitação social e de mercado integrada a espaços produtivos, culturais, educativos e de lazer, bem servidos por transporte e infraestrutura.
Políticas habitacionais baseadas na concessão de crédito e subsídios à demanda para aquisição de habitação de mercado são eficientes quando endereçadas a trabalhadores minimamente integrados ao mercado de trabalho formal, capazes de comprovação de renda regular, mas possuem limitações que as impedem de prover moradia adequada para as faixas de mais baixa renda da população. Um exemplo recente é o caso da Costa Rica. Este país, que historicamente mantinha taxas reduzidas de déficit habitacional (comparativamente aos demais da região centro-americana), assiste hoje a um rápido crescimento dos assentamentos informais no seu território, provocado por um crescimento dos níveis de pobreza de sua população e pela absorção de mão de obra imigrante com inserção precária no mercado de trabalho e sem acesso aos mecanismos de crédito oficiais.
A questão do déficit de moradias é complexa e não será equacionada sem uma adequada compreensão de suas condicionantes econômicas, sociais, políticas e culturais. Além disso, as especificidades do mercado imobiliário o distingue dos demais ramos de produção de bens de consumo; por este motivo, políticas que visam a garantia de uma habitação segura para as famílias de mais baixa renda deverão seguir caminhos distintos daqueles utilizados para se viabilizar o acesso a outros bens de consumo industrializados, como um carro zero, por exemplo.
Exemplos exitosos existem e estão disponíveis para serem conhecidos, avaliados e, se for o caso, adaptados à nossa realidade. O que não podemos é ficar presos a modelos únicos que desconsideram a diversidades das situações envolvidas.
Antônio Augusto Veríssimo, Maio de 2013