ENGELS F, “As grandes cidades” (2a parte - Manchester). Em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra pp 87-116. São Paulo: Boitempo 2008
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(..) Mas já dissemos o bastante sobre essas cidades menores. Todas têm suas peculiaridades; nelas, porém, os operários vivem como em Manchester. Por isso, limitei-me a descrever o aspecto particular de sua estrutura; de fato, todas as observações gerais sobre a situação das moradias operárias de Manchester cabem perfeitamente à totalidade das cidades vizinhas. Passemos, pois, ao grande centro.
Manchester é construída de um modo tão peculiar que podemos residir nela durante anos, ou entrar e sair diariamente dela, sem jamais ver um bairro operário ou até mesmo encontrar um operário – isso se nos limitarmos a cuidar de nossos negócios ou a passear. A razão é que – seja por um acordo inconsciente e tácito, seja por uma consciente e expressa intenção – os bairros operários estão rigorosamente separados das partes da cidade reservadas à classe média ou, quando essa separação não foi possível, dissimulados sob o manto da caridade.
Manchester tem, em seu centro, um bairro comercial bastante grande, com cerca de uma milha e meia de comprimento e outro tanto de largura, composto quase exclusivamente por escritórios e armazéns (warehouses). Nele praticamente não existem moradias e, por isso, à noite, fica vazio e deserto – apenas a guarda noturna, com suas lanternas, circula pelas ruas estreitas e sombrias. Nessa zona há algumas ruas grandes, que concentram o tráfego, e o térreo das edificações é ocupado por lojas luxuosas; aí se encontram uns poucos pavimentos superiores habitados e nela reina, até alta noite, uma certa animação. Excetuada essa zona comercial, toda a Manchester propriamente dita – ao lado de Salford e Hulme, uma parte significativa de Pendleton e de Chorlton, dois terços de Ardwick e igual parcela de Cheetham Hill e de Broughton – não é mais que um único bairro operário que, com uma largura média de uma milha e meia, circunda como um anel a área comercial. A alta e a média burguesia moram fora desse anel. A alta burguesia habita vivendas de luxo, ajardinadas, mais longe, em Chorlton e Ardwick ou então nas colinas de Cheetham Hill, Broughton e Pendleton, por onde corre o sadio ar do campo, em grandes e confortáveis casas, servidas, a cada quinze ou trinta minutos, por ônibus que se dirigem ao centro da cidade. A média burguesia vive em ruas boas, mais próximas dos bairros operários, sobretudo em Chorlton e nas áreas mais baixas de Cheetham Hill. O curioso é que esses ricos representantes da aristocracia do dinheiro podem atravessar os bairros operários, utilizando o caminho mais curto para chegar aos seus escritórios no centro da cidade, sem se aperceber que estão cercados, por todos os lados, pela mais sórdida miséria.
De fato, as principais ruas que, partindo da Bolsa, deixam a cidade em todas as direções, estão ocupadas, dos dois lados, por lojas da pequena e da média burguesias, que têm todo o interesse em mantê-las com aspecto limpo e decoroso. É verdade que tais lojas se relacionam de algum modo com os bairros que estão em suas traseiras e, naturalmente, são mais elegantes e cuidadas no bairro comercial e junto das áreas burguesas do que nas zonas em que têm de ocultar as sórdidas casas operárias; todavia, sempre dão conta de esconder dos ricos senhores e de suas madames, de estômago forte e nervos frágeis, a miséria e a sujeira que são o complemento de seu luxo e de sua riqueza. É o que acontece, por exemplo, com a Deansgate, que parte em linha reta da igreja velha para o sul; no princípio, é ladeada por boas lojas e fábricas; seguem-se lojas de segunda categoria e algumas cervejarias; mais ao sul, quando deixa o bairro comercial, tem pelos lados negócios mais pobres, que, à medida que se avança, tornam-se sujos e intercalados por tabernas; enfim, na extremidade sul, a aparência das lojas não permite qualquer dúvida sobre seus fregueses: operários, só operários. O mesmo se passa com a Market Street, que sai da Bolsa em direção ao sudeste: de início, encontramos lojas de primeira categoria e, nos andares superiores, escritórios e armazéns; depois (Piccadilly), belos hotéis e entrepostos; mais adiante ainda (London Road), junto ao Medlock, fábricas, lojas e tabernas para a pequena burguesia e para os operários; mais próximo de Ardwick Green, casas da média e alta burguesia e, a partir daí, grandes jardins e enormes residências dos mais ricos industriais e comerciantes. Assim, conhecendo a cidade, é possível, pelo aspecto dos trechos das ruas principais, deduzir o tipo de bairro contíguo; mas, dessas ruas, é extremamente difícil contemplar de fato os bairros operários. Sei perfeitamente que essa disposição urbana hipócrita é mais ou menos comum a todas as grandes cidades; também sei que os comerciantes varejistas, pela própria natureza de seu negócio, devem ocupar as ruas principais; sei igualmente que nessas ruas, em toda parte, encontram-se edificações mais bonitas que feias e que o valor dos terrenos que as rodeiam é superior ao daqueles dos bairros periféricos; entretanto, em lugar nenhum como em Manchester verifiquei tanta sistematicidade para manter a classe operária afastada das ruas principais, tanto cuidado para esconder delicadamente aquilo que possa ofender os olhos ou os nervos da burguesia. E, no entanto, em Manchester, a urbanização, menos ainda que em qualquer outra cidade, não resultou de um planejamento ou de ordenações policiais: operou-se segundo o acaso. É por isso que, quando penso na classe média afirmando às pressas que os operários se comportam de maneira adequada, sempre tenho a impressão que os industriais liberais de Manchester, as grandes personalidades liberais (big whigs), tiveram sua parte nessa organização urbana tão cheia de pudor.
Acrescento que os estabelecimentos industriais situam-se quase todos à margem dos três rios ou dos vários canais que se ramificam pela cidade e passo diretamente à descrição dos bairros operários propriamente ditos. (..)