Chamou-me a atenção que o autor tenha descrito a Cidade Nova como um lugar situado "entre o Centro e as zonas rurais da Tijuca e São Cristóvão". A pergunta inevitável é: no início do século XIX, quando Tijuca e São Cristóvão eram 'zonas rurais', existia 'o Centro'?
“Naquela mesma tarde em que o deixamos na sua casa de Botafogo, terminado o jantar, mandou aprontar o tílburi e voltou à cidade. Seu aparecimento àquela hora na Rua do Ouvidor causou estranheza: um leão de raça, como ele, não passeia ao escurecer, sobretudo no centro do comércio, onde só ficam os que trabalham.” [2]
"Uma verdadeira patuscada esse passeio à cidade! (..) Ninguém tomou bonde; e por toda a viagem discutiram e altercaram em grande troça, comentando com gargalhadas e chalaças gordas o que iam encontrando, a chamar a atenção das ruas por onde desfilava a ruidosa farândola. [3]
“De manhã tinha o relógio parado. Chegando à cidade, desci a Rua do Ouvidor, até a da Quitanda (..)” [4]
As duas primeiras décadas do século XX marcam, no Brasil, o nascimento das metrópoles capitalistas, cujo traço distintivo é a urbanização de mercado: de um lado as empresas loteadoras, construtoras e prestadoras de serviços públicos urbanos, de outro uma classe média ascendente - comerciantes, militares, funcionários, especialistas, artesãos e trabalhadores qualificados - capaz de arcar com custos de transportes e financiamentos a longo prazo. (..)
É a indústria da urbanização, ou urbanização de mercado, que dá conteúdo e forma à urbe radiocêntrica. É ela que converte as chácaras semi-rurais em bairros residenciais, os antigos caminhos rurais em vetores radiais de expansão, os aldeamentos satélites estrategicamente situados em embriões de futuros subcentros e, finalmente, a própria “cidade” em “centro”! [5]
Não se trata de que inexistam tendências radiocêntricas na cidade colonial, isto é, de que sua organização sócio-espacial não manifeste a lei do menor custo-distância, mas de que aqui ela é uma força débil relativamente a outros determinantes - a pré-existência de um traçado fundacional, a pequena extensão dos percursos, o máximo aproveitamento das quadras e parcelas -, materializando-se via de regra como expansão linear ao longo da via principal do assentamento e, em menor medida, como reprodução mais ou menos regular da quadra padrão no sentido transversal. [6]
A forma tipicamente "cartesiana", ou ortogonal, da expansão urbana colonial brasileira corresponde às observações de Hurd em seu "vôo de pássaro" de 1903 sobre as "direções de expansão" das cidades comerciais. Ele observa que, nos assentamentos marítimos, fluviais e lacustres, o crescimento começa ao longo da costa, "seja porque as novas docas e os edifícios fronteiros formam um eixo de tráfego ou porque a própria margem constitui um caminho natural para os assentados". [7] Segue-se a formação de um feixe de ruas paralelas que, com o tempo, converte-se em malha reticulada mais ou menos regular 'centrada' no ponto de partida das transversais principais, tipicamente a 'praça do mercado'.
Essa mesma configuração está presente no relato alencariano do processo expansivo do Rio de Janeiro colonial (1659) contido nas crônicas ficcionais reunidas em Alfarrábios, de 1873. Trocando momentaneamente o chapéu de ficcionista pelo de historiador-geógrafo, diz Alencar:
"Com o incremento natural da população, foi a cidade descendo das encostas da colina e estendendo-se pelas várzeas que a rodeavam, sobretudo pela orla da praia que cinge o regaço mais abrigado da formosa baía, e corre em face à Ilha das Cobras. Aí, fronteiro ao ancoradouro dos navios, com o fomento do comércio, se ergueram as tercenas e os cais, onde não tardaram a agrupar-se em volta das casas das alfândegas e dos contos as lojas e armazéns dos mercadores. Após essas, embora já mais arredadas da beira-mar, vinham as outras classes trazidas pelo desejo de estarem mais próximas ao centro do povoado, onde é mais ativo o tráfego." [8] [destaques meus]
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“Ficou o Ivo como queria, vivendo à mangalaça pelas ruas de São Sebastião, e nos arrabaldes, que a pouco e pouco se foram transformando em bairros, e estão agora dentro da cidade.” [destaque meu]
Este mapa de 1907, aparentemente produzido e editado nos Estados Unidos, se intitula “Rio de Janeiro City – Commercial District”, expressão que naquele país precede em algumas décadas o contemporâneo CBD - Central Business District. Fonte: ImagineRio https://www.imaginerio.org/iconography/maps/2589147 |
A começar pela separação de comércio e residência, o advento da urbanização de mercado modifica radicalmente a dinâmica espacial da expansão urbana, e com ela a sua geometria, à qual o núcleo reticular herdado do período colonial é obrigado a se adaptar - o que, em se tratando da urbe, é um processo secular.
Para além de seus aspectos estritamente urbanísticos, e da ideologia subjacente tantas vezes assinalada, o conjunto de obras modernizadoras executadas no Rio de Janeiro ao longo do século XX - abertura das avenidas Mem de Sá (1906), Beira-Mar (1906), Rodrigues Alves (1910), Presidente Vargas (1944), Av. Chile (1960) e Parque do Flamengo (1960) - são intervenções destinadas a consolidar a estrutura radiada de acesso ao Centro da metrópole.
Direções de expansão do Rio de Janeiro colonial e republicano, lançadas sobre mapa do ano 1935 |
Um importante marco da transição de uma a outra modalidade de expansão no Rio de Janeiro é a inauguração, em 1858, do primeiro trecho da Estrada de Ferro D. Pedro II, que "permitiu, a partir de 1861, a ocupação acelerada das freguesias suburbanas por ela atravessadas" - o que supõe o advento de um mercado de terras periféricas à 'cidade', uma nova classe média capaz de adquiri-los e uma estrutura empresarial capaz de financiá-los -, seguida, em 1868, da implantação das primeiras linhas de bondes de tração animal, que vieram a "facilitar a expansão da cidade em direção aos bairros das atuais zona sul e zona norte". [9]
A mudança da matriz espacial da expansão urbana, de ortogonal a radial, e a consequente transformação da 'cidade' em 'Centro', é, portanto, um problema tanto de forma quanto de conteúdo. Aqui vale a pena recuperar, do mesmo texto sobre Porto Alegre, a discussão sobre a ideia de 'centro' na transição da cidade colonial-imperial para metrópole capitalista tal como interpretada por Villaça. Ele nos diz:Quando, nos primeiros vinte anos deste século, o quadro imobiliário do centro de nossas cidades foi totalmente renovado com a demolição do colonial e a implantação do neoclássico e do ecletismo, não houve alteração na estrutura urbana, pois esses centros não perderam sua importância, sua posição, natureza nem localização. [10]
Porto Alegre: direções de expansão (1) expansão cartesiana: planta de 1772 (2) transição sobre planta de 1881 (3) expansão radiada: planta 1928 |
Esta passagem resume o que me parece uma importante lacuna teórica de Espaço Intra-Urbano no Brasil: a omissão da mudança qualitativa imposta ao processo urbanizador brasileiro, em fins do século XIX, pela urbanização de mercado. Implícito na afirmação de que “no final do século XIX havia [em Porto Alegre] uma coroa de 180 graus de terra firme disponível para a expansão urbana” [11], esse salto histórico é por outro lado negado – inadvertidamente, por certo – pela ideia de que “nos primeiros vinte anos deste século (..) não houve alteração na estrutura urbana, pois esses centros não perderam sua importância, sua posição, natureza nem localização”. [destaques meus]
Por não considerar o salto qualitativo contido na transição da urbanização mercantil-escravista para a urbanização capitalista, Villaça perde de vista que é assim que nasce o “centro” no que até então era a “cidade”. Embora não perca a sua "localização, importância e posição", o velho núcleo colonial-imperial perde, sim, a sua “natureza”: sobre a cidade que comanda o campo ao seu redor, nasce o centro que comandará a metrópole. O novo centro da urbanização de mercado começará, então, a se estender na direção da migração dos abastados e a se desdobrar em subcentros em todas as direções. Em algum deles poderá se fixar, muito mais tarde, o novo polo financeiro da metrópole. [12]
Refluindo sobre o núcleo colonial-imperial, a cidade radiocêntrica em contínua expansão e adensamento o revoluciona de acordo com as necessidades da economia de mercado e as exigências culturais e estéticas dos novos segmentos sociais econômica e politicamente dominantes, vale dizer pela renovação acelerada do estoque edificado, pela multiplicação de edifícios de escritórios e galerias comerciais, pela formação de um hipercentro financeiro, pela busca incessante de uma arquitetura própria dos arranha-céus, pela inserção da cidade no circuito das exposições agrícolas e industriais, pela elaboração de um Plano de Melhoramento e Embelezamento da Capital e por intervenções urbanas modernizadoras como a ampliação do porto, o ajardinamento do Campo da Redenção com base em projeto de Alfred Agache e, fechando com chave de ouro este primeiro ciclo, a abertura da Avenida Borges de Medeiros, a partir de 1925, para a ligação do núcleo urbano ao bairro do Menino Deus e daí a toda a margem sul do Guaíba, aí incluída a construção do Viaduto Otávio Rocha - provavelmente a obra urbana mais emblemática da história de Porto Alegre. [13]
Como sugerem as referências literárias acima citadas, em fins do século XIX a centralidade urbana ainda era identificada, no Brasil, não com a nascente forma histórica do “Centro” metropolitano, mas com um conjunto de entidades, ou funções, centrais - o palácio, o cais do porto, a praça do mercado, o comércio, a sé - simbolicamente representadas, na literatura como no jornalismo, e não por acaso, pelo “passeio comercial” frequentado pela burguesia em ascensão.
Nos termos do texto sobre Porto Alegre já citado, o nascimento do “Centro” metropolitano é
(..) uma mudança geográfica radical e meteórica na escala temporal da modernidade urbana, portadora de uma percepção coletiva do espaço inteiramente renovada ainda que pouco acessível aos hábitos mentais das antigas gerações: sua transposição para a linguagem corrente levaria ainda algumas décadas para se completar. Trata-se, mais exatamente, de uma revolução semântica fundada na mudança de percepção da estrutura do espaço em que se vive: não mais uma coleção de arraiais ao redor da cidade, mas uma única urbe expandida por justaposição de parcelamentos lindeiros a vias radiais servidas por transportes mecânicos, que tudo ligam ao que agora é “centro”. [15]
Ainda na minha infância, na Niterói na década de 1960, meus pais diziam “vamos à cidade”. O ônibus 30 era a linha Martins Torres-Cidade. [16]
Havia três acessos do núcleo colonial para o núcleo urbano já existente, que era chamado de “cidade” (..). A Sede [área verde da figura abaixo] (..) foi concebida com a finalidade de constituir um prolongamento da “Cidade” e, por este motivo, esses lotes eram denominados “urbanos”. [17] [Aspas dos autores]
Ao longo do século XX, toda a área do Núcleo Colonial Antônio Prado foi absorvida pela expansão urbana radiada de Ribeirão Preto - como ocorre, aliás, com a maioria, se não a totalidade, das cidades e urbanizações ditas planejadas. Como explica Capretz em outro texto, hoje a maior parte dos bairros oriundos da Colônia participa da “geografia social da cidade” como “território da pobreza”, por oposição ao vetor que parte do “quadrilátero central”, a antiga ‘cidade’, em direção ao sul, onde se concentram “valores imobiliários altos, habitações luxuosas, alto consumo e mais investimentos públicos”. [18] [Os termos entre aspas são da autora].
O crescimento recente da cidade e a expansão de suas atividades conduziram à modificação da fisionomia do centro, provocando o aparecimento de grandes edifícios, construídos nos espaços vazios, ou substituindo velhas casas. É a esse conjunto que os baianos chamam "A Cidade", quando se referem à parte alta, e "O Comércio", quando falam da parte baixa do centro de Salvador. É aí que a vida urbana e regional encontra o seu cérebro e o seu coração." [19]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade_Nova_(Rio_de_Janeiro)
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2020/05/porto-alegre-cidade-radiocentrica-2_30.html
[6] Ibid.
https://archive.org/details/principlesofcity00hurdrich/page/n4/mode/1up
https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio/CAPRETZ_ADRIANA_E_MANHAS_MAX_PAULO.pdf
https://aeaarp.org.br/upload/downloads/20200527153648acapretz-camposeliseosipiranga.pdf