quarta-feira, 21 de julho de 2021

Tarifa zero - uma nota

Deu no UOL Internacional
15-07-2021, por Peter Yeung
O exemplo das cidades que passaram a oferecer transporte público gratuito

Sempre que vem à tona o debate sobra a tarifa zero no transporte público urbano, ouve-se a advertência de que o transporte nunca é gratuito: alguém tem de pagar seus custos.

Em minha opinião, “alguém ter de pagar” é um não-problema. Vale igualmente para a educação e a saúde gratuitas. E nunca vi ninguém - trabalhador, burocrata ou empresário - alert
ar que a segurança interna (polícia) e externa (Forças Armadas), também públicas e gratuitas, têm de ser paga por alguém. No fim das contas, os serviços públicos são todos pagos pelo “fundo comum”, para o qual aliás, como explicam muitos estudiosos da estrutura tributária, são os capitalistas os que proporcionalmente menos contribuem.

Transporte público gratuito não é uma panaceia; não há razão para supor que ele esteja livre dos defeitos encontráveis nos demais serviços públicos e gratuitos de nosso país. Mas, a exemplo da educação e da saúde, pode ser benéfico para a economia em geral e para os trabalhadores em particular, com ganhos imediatos em poder de consumo e mediatos em vantagens derivadas do acréscimo de mobilidade. O problema é como evitar que esses ganhos venham a ser capturados (1) pelo capital em geral pela via do ajuste paulatino dos salários à redução do custo da força de trabalho, e (2) pela propriedade imobiliária sob a forma de aumentos de alugueis e preços dos terrenos, principalmente nas periferias urbanas, onde reside a imensa maior parte da população trabalhadora.

Transporte e aluguel são custos interrelacionados, tanto mais intimamente quanto menor é o nível de rendimento do usuário. O exame da relação entre localização, rendimento familiar e aluguel mostra que, quanto mais periférica a localização, consequentemente maior o custo real do deslocamento aos principais centros de emprego, mais barato o solo/localização - ainda que não a moradia, porque maior é a parte proporcional do rendimento familiar destinado ao aluguel.

Contudo, é quase impossível imaginar como uma política pública tão abrangente e complexa, envolvendo numa única equação os transportes e a renda da terra, possa funcionar em megalópoles cujas periferias vivem imersas na informalidade, vale dizer à margem de uma parte não desprezível das regulações e controles estatais, e cujos sistemas de transportes se encontram muitas vezes, como hoje no Rio de Janeiro, retalhados em pedaços semi-independentes para fins de exploração privada. 

A política de "tarifa zero" esbarra, pois, antes de tudo, num obstáculo bastante prosaico: o fato de que a exploração dos serviços públicos constitui, sobretudo nos países de médio e baixo PIB per capita, onde são pouco enraizadas as conquistas do Estado do bem-estar, uma saída de emergência para capitais em crise crônica de oportunidades de valorização. Muito me espantaria se no Brasil, onde acabamos de aprovar a lei da privatização do saneamento, passássemos a estatizar, para operação direta ou contratada, os transportes urbanos.


2021-07-25