segunda-feira, 5 de julho de 2021

Lei e desordem

Deu no Evening Standard
05-07-2021, por Sophia Sleigh

City will crumble if workers don’t start going back to the office, expert warns

Foto: Getty Images / Evening Standard

Com todo o respeito ao recém-falecido mestre, todos esses alertas sobre a iminência de uma catástrofe urbanística e econômica derivada de algo tão razoável, e até certo ponto previsível, como a maré do trabalho remoto sempre me trazem à mente o postulado, que me parece insustentável, de Flavio Villaça sobre a relação entre anarquia na produção e desenvolvimento urbano, à página 77 de sua obra magna Espaço Intra-Urbano no Brasil:

Não é possível associar aqui a aglomeração urbana à desordem da concorrência que Marx diz existir na sociedade. Numa visão social mais ampla, as cidades são uma força produtiva e, como tal, trabalham segundo uma lei, uma lógica, e não em desordem. [*]

As "leis/lógicas" da produção capitalista e a “desordem/anarquia” que ela promove na economia com um todo não se excluem absolutamente: são um antagonismo gerado pelas forças motrizes do mesmo processo, como na relação entre concorrência e monopólio e, em outro plano, entre liberdade individual e controle social. A contradição entre o planejamento rigoroso no âmbito da empresa privada e a competição predatória no da sociedade, ambos voltados à obtenção do máximo lucro sobre o capital investido, tem um lugar nada menos que central n'O Capital de K Marx.

A convicção de que as megalópoles são imprescindíveis à riqueza das nações tornou-se tão avassaladora em nossa época que tendemos a esquecer o caráter tsunâmico de suas deseconomias e a escassez, virtualmente insolúvel para a imensa maioria dos cidadãos trabalhadores, de seu bem mais precioso: a terra urbanizada e adequadamente localizada.

Sim, a reprodução das cidades modernas está sujeita a certas leis da economia e da sociologia, mas nem por isso deixa de ser anárquica - errática do ponto de vista das necessidades do presente, temerária quanto às possibilidades do futuro e mais ou menos alheia, a depender do país e das circunstâncias, aos ideais de apuro estético, justiça social e sustentabilidade ambiental de urbanistas-planejadores, reformadores e legisladores. Não há, aliás, nenhum motivo para que o desenvolvimento urbano em geral seja menos anárquico do que o das próprias economias nacionais e mundial.

Mesmo que não venha a realizar-se, o espectro da súbita desvalorização e obsolescência dos hipercentros financeiros, alguns recém-construídos sob a rubrica dos Grandes Projetos Urbanos, é um augúrio de que a tragédia de Detroit pode não ter sido "um raio em céu azul". 

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[*] VILLAÇA Flavio, Espaço Intra-Urbano no Brasil. São Paulo: FAPESP 2001, p. 77


2021-07-05