segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Outorga Onerosa, para variar

Editada em 03-08-2021

Deu no Jornal do Comércio / Porto Alegre
21-07-2021, por Pensar a Cidade
https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/pensar_a_cidade/2021/07/802618-porto-alegre-tera-leiloes-anuais-de-solo-criado.html
Porto Alegre terá leilões anuais de Solo Criado
O Parque Moinhos de Vento, o Parcão, é um dos principais focos de valorização do solo no mercado imobiliário de Porto Alegre

Intrigaram-me, numa rápida vista d’olhos nessa matéria do Jornal do Comércio, os preços médios de contrapartida por m2 de Solo Criado (Outorga Onerosa) deduzidos dos valores publicados. A arrecadação mínima esperada de R$ 105,7 milhões com a venda dos 31,3 mil m2 ofertados implica uma contrapartida (preço) média por m2 igual a R$ 3.377,00, valor não apenas muito mais elevado do que se cobra por m2 de Outorga Onerosa do Direito de Construir em qualquer outra cidade brasileira como maior do que o próprio resíduo (renda da terra) do m2 de produto imobiliário no mercado de classe média. Suspeitaria de um erro de edição não fosse a informação, logo abaixo, de que entre 2014 e 2016 foram arrecadados 144,0 milhões com a venda de 32.550m2, vale dizer R$ 4.424,00 /m2. [*]

Isto só poderia significar que, em Porto Alegre, os m2 leiloados são uma parte relativamente pequena do volume total de construção, isto é, que os coeficientes básicos de aproveitamento de terreno são em geral bastante elevados como proporção dos coeficientes máximos. Por quê
?

Porque o preço REAL da contrapartida por Outorga Onerosa / Solo Criado em um empreendimento imobiliário, que é o seu valor total dividido pela quantidade de m2 privativos produzidos e postos à venda no mercado, aparece como preço NOMINAL tanto mais elevado quanto menor for a proporção do volume total de construção classificada como Solo Criado.

Se, por absurdo (porque nesse caso nenhum incorporador teria interesse em comprá-lo), num empreendimento de 5.000m2 privativos, relação 1:1 entre m2 construídos e m2 privativos e preço de venda médio = R$10.000 m2, um único m2 construído fosse considerado Solo Criado ao preço de R$50.000,00, o seu custo no cálculo da rentabilidade do negócio seria.. R$ 10,00/m2! O Solo Criado só compensa para o incorporador quando adquirido por um preço unitário menor que o preço de venda médio do m2 privativo e é tão mais rentável quanto maior for a diferença entre o custo do SC e o preço de venda por m2 produzido.
 
Com efeito, diz a matéria um pouco adiante que “em Porto Alegre, o valor básico desse índice [construtivo] varia entre 1 e 2,4 e o máximo entre 1,5 e 3”. Se tomamos, então, como hipótese um terreno de 1.000m2 com Cb=2,4 e Cm=3, temos que apenas 600m2 (de um total de 3.000m2) são excedentes ao coeficiente básico, vale dizer "solo criado" para fins de cobrança de direitos de edificabilidade. Supondo um preço de R$3.000,00 por m2 de Solo Criado, temos uma contrapartida total de R$ 1.800.000,00. Dado, porém, que o incorporador vai construir e vender 1.000m2 x 3 = 3.000 m2, o preço REAL da contrapartida é R$ 600,00 / m2, este sim um valor, mais exatamente uma ordem de grandeza de valor, compatível no sul-sudeste do Brasil com a recuperação do resíduo (renda da terra) contido no preço de 1m2 privativo médio no mercado de classe média: para uma hipotética proporção de 35% no m2 privativo ao preço de R$ 8.000,00, o resíduo valeria R$ 2.800,00 /m2 e a contrapartida 21,4% do resíduo.

A não distinção entre preço nominal e preço real da contrapartida por Solo Criado / OODC, perdidos em infinitas combinações possíveis de coeficientes básico, máximo e “fatores de ajuste” inseridos nas fórmulas de cálculo, continua sendo, a meu juízo, um sério obstáculo à construção de um entendimento comum, consequentemente uma política nacional, da recuperação de mais-valias fundiárias na indústria da incorporação. 

Só é possível ter uma ideia clara, por comparação a outras cidades brasileiras por exemplo, do que significa a arrecadação de 105,7 milhões com a venda de 31,3 mil m2 de Solo Criado se tal valor for relativo ao TOTAL de m2 construídos ou, ainda mais exatamente, de m2 privativos a serem produzidos nos empreendimentos que utilizarão os direitos de edificabilidade adquiridos, e ao seu preço médio no mercado.

Salve, pois, a cidade de Porto Alegre, que mesmo não utilizando o tão exaltado quanto pouco compreendido Coeficiente Básico (de aproveitamento de terreno) = 1 [**] é capaz de recuperar renda da terra na indústria da incorporação em valores que suponho compatíveis com os da cidade de São Paulo, a mais notória praticante da Outorga Onerosa do Direito de Construir em nosso país.

Por outro lado, uma notável qualidade do sistema portoalegrense de venda de Solo Criado em leilões anuais, ou plurianuais, é facilitar a inserção das receitas derivadas da recuperação de mais-valias no planejamento / orçamento anual da prefeitura, atribindo-lhe o status de receita corrente e demandando ao setor de urbanismo um acompanhamento permanente e tecnicamente bem informado do mercado.

___

[*] Veja o Projeto Básico do leilão previsto para agosto de 2021, objeto da reportagem, em http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/smf/usu_doc/leilao_2-2021_sei_14718639__anexos.pdf

[**] A “igualdade de direitos de aproveitamento de terreno” implícita no Cb =1 é altamente discutível, para não dizer 100% mítica.

Primeiro porque o Cb=1 só igualaria, e não mais do que formalmente como explico mais abaixo, os direitos dos proprietários de terrenos se e somente se TODO o resíduo (renda da terra) do VGV (receita total do empreendimento) excedente ao Cb=1 fosse pago a título de Outorga Onerosa / Solo Criado – o que é fora de questão porque destruiria o negócio da incorporação tal como o conhecemos. Dessa contradição nascem os “fatores de planejamento”, cuja primeira missão nas fórmulas de cálculo de OODC / Solo Criado é, precisamente, violar algebricamente a camisa de força do Cb=1, elevando-o a uma porcentagem politicamente aceitável do CA máximo permitido pela norma

Segundo porque a terra tem distintos preços de mercado conforme sua localização na cidade, fenômeno que subverte a ideia, subjacente ao Cb=1, de igualação dos proprietários pela via do “direito natural ao valor de uso dos terrenos". Proprietários de terrenos urbanos são desiguais antes de tudo pela localização de seus imóveis: 1m2 de terreno no Leblon vale muitas vezes mais do que 1m2 de terreno em Madureira. Ilustro com um caso limite: numa região periférica de baixa densidade e demanda de rendimentos elevados, como a Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, um terreno de 10 mil m2 com Cb=Cm=1 admitiria (não existe OODC no Rio de Janeiro), grosso modo, 10 mil m2 de produto imobiliário, VGV de R$ 100 milhões, resíduo (renda da terra) de R$ 50 milhões e ZERO de Outorga Onerosa / Solo Criado.

Terceiro porque a virtude da igualdade entre proprietários de terrenos urbanos é uma reminiscência jeffersoniana: lei igual para proprietários - de terras, capitais e até escravos.  

2021-08-02