quarta-feira, 29 de março de 2023

Apontamentos: Pescatori e Faria 2020 - dispersão urbana na aurora do século XX

PESCATORI C e FARIA R, “Dispersão urbana e empresas urbanizadoras na cidade industrial: a atuação da Compañia Madrileña de Urbanización, da Garden City Pioneer Company, da First Garden City Ltda. e da Cia City.” Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, [S. l.], v. 22, 2020. DOI: 10.22296/2317-1529.rbeur.202019.
https://rbeur.anpur.org.br/rbeur/article/view/6136

Ao ler, na Introdução ao artigo aqui comentado, que a “dispersão [urbana], por mais desconcertante e transformadora que seja, não significa o fim da cidade, mas apenas uma de suas (várias) transformações históricas”, senti-me convidado por Pescatori e Faria a refletir sobre um de nossos mais caros e arraigados hábitos mentais: o dualismo centro-periferia.

Ocorreu-me de imediato que Ernest Burgess, tido como inventor do “modelo de estrutura urbana em círculos concêntricos”, afirma em seu clássico texto “The Growth of the City”[1], de 1925, que (a) "o fato crucial da expansão urbana é a tendência de invasão das zonas exteriores pelas interiores" e que (b) no caso de Chicago, “todas as quatro zonas estariam, nos primórdios da cidade, incluídas no primeiro círculo, o atual CBD”. Pouco adiante, Burgess conclui que “a Chicago de ontem, um aglomerado de núcleos rurais e colônias de imigrantes, vem passando por um processo de transformação em um sistema de comunidades locais aglutinadas por subcentros comerciais visivelmente dominados pelo CBD, que podemos chamar de descentralização centralizada”.

Não seriam, de fato,
a compactação central e a dispersão periférica formas relativas e interdependentes, historicamente construídas e permanentemente diferenciadas, da aglomeração urbana moderna e contemporânea?

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Contudo, não é o dualismo centro-periferia o objeto do artigo, mas o papel das empresas promotoras em três casos clássicos de urbanização "excêntrica" na Europa e Brasil de inícios do século XX. Em suas próprias palavras, Pescatori e Faria tratam

"do ideário de dispersão difundido por meio da ação de empresas de reconhecida importância na historiografia do Urbanismo: a Compañía Madrileña de Urbani­zación (CMU), empresa urbanizadora fundada pelo madrilenho Arturo Soria y Mata para implementar sua ideia de ciudad lineal, proposta pela primeira vez em 1882; as empresas Garden City Pioneer Company e First Garden City Ltd, fundadas, respectivamente, para levantar fundos e gerenciar a construção de Letchworth, primeira cidade-jardim construída, cujo esquema teórico foi concebido em 1898 por Ebenezer Howard; e a empresa City of São Paulo Improvements and Freehold Company Ltd, conhecida como Cia. City, responsável pela implementação dos pri­meiros bairros-jardim de São Paulo, a partir de 1915."[2]

Segundo os autores, “essa interpretação constrói outro olhar sobre a dispersão, não mais como uma 'novidade' característica do século XX, e sim como parte de um processo histórico de pensamento e prática do Urbanismo”.

Opinarei, mais adiante, se os projetos de urbanização de que trata o artigo tinham propósitos dispersores e quais dentre eles resultaram, de fato, e quais não resultaram, em dispersão urbana. Quero começar destacando o que vejo como certa ambivalência dos autores entre o juízo de que os produtos das companhias urbanizadoras de inícios do século XX provinham do “ideário da dispersão” propagado por reformadores sociais como Arturo Soria e Ebenezer Howard e a indicação, profusamente documentada no próprio artigo, de que o “ideário de dispersão” desses reformadores foi "atropelado" e imposto à sua maneira por uma potência histórica superior que lhes ditou suas necessidades e suas regras: o emergente mercado de urbanizações de baixa densidade periféricas aos grandes centros urbanos de sua época.

Cumpre reconhecer que essa ambiguidade tem profundas e ilustres raízes na historiografia do urbanismo. Ninguém menos do que o grande Peter Hall, ao abordar em sua obra magna Cities of Tomorrow o tema da formação dos subúrbios na Inglaterra vitoriana, diz “não ter claro o que veio primeiro: se a galinha da urbanização ou o ovo da filosofia” [3]. Segundo Hall, “quando o tic-tac do relógio do planejamento urbano começou a soar, por volta de 1900”, o próprio problema que ele buscava resolver - a concentração da miséria urbana na grande cidade do século XIX, objeto da “continuada obsessão de seus pais filosóficos” -, começou a mudar. A urbe começou a se dispersar e desconcentrar, “em parte pela reação de legisladores e reformadores locais, em parte pela ação das forças de mercado”, daí resultando “uma súbita e extraordinária melhoria dos padrões de moradia para um amplo espectro da população”. [4]

Hall me parece ter formulado e resolvido, no mesmo parágrafo, o dilema com que se deparou. Não por acaso, creio, o capítulo de Cities of Tomorrow dedicado à suburbanização na Inglaterra de inícios do século XX antecede o capítulo dedicado à cidade-jardim, cujo pai-criador, Ebenezer Howard, é para ele o primeiro da lista dos profetas [seers] do urbanismo contemporâneo, pioneiros de “boa parte, senão a maior, do que aconteceu - para bem e para mal - às cidades do mundo nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial”. [5]

De modo análogo, Pescatori e Faria nos fornecem, em seu valiosíssimo material historiográfico, provas abundantes - a mais significativa dentre elas as ambições comerciais e os laços da Cia City com a governança da cidade de São Paulo - de que tanto em Londres e Madri como em São Paulo de inícios do século XX não se tratava tanto de “ideários”, fossem de descentralização, desconcentração ou dispersão, quanto do nascente mercado da moradia suburbana.

Aplicada a empresas urbanizadoras, a própria noção de “ideário de dispersão” não parece adequada. Empresas urbanizadoras não têm “ideário urbanístico”, mas objetivos comerciais e plataformas publicitárias correspondentes. Para as urbanizadoras de inícios do século XX não se tratava de “comprar” o ideário desconcentrador dos reformadores, por ilustres que fossem Soria e Howard, nem de materializar supostos ideais próprios de dispersão, mas de vender, literalmente, uma nova linha de produtos: as urbanizações periféricas possibilitadas pelos novos meios de transportes urbano de passageiros e - o mais decisivo - demandadas por uma nova classe média urbana em ascensão. A adoção deste ou daquele padrão de desenho urbano se subordinava às condicionantes do mercado: densidade, área total e privativa, tipo de traçado, equipamentos, proporção de áreas verdes, “selo” projetual etc.

Dito de outra forma, a dispersão, neste caso, não foi o resultado desejado de um “ideário urbanístico”, mas o efeito não planejado de um novo e revolucionário ciclo do mercado de localizações urbanas. Vale registrar que o próprio Hall não explica, e teria sido esclarecedor, de que forma os “legisladores e reformadores locais” intervieram no processo de “dispersão e desconcentração” promovida pelo mercado.

Considero, por outro lado, problemática a comparação da Cia City paulistana, cujas urbanizações eram, desde a origem e de maneira inequívoca, empreendimentos destinados ao mercado, com a Madrileña de Urbanización e a Garden City Company no que tange à promoção da Ciudad Lineal e de Letchworth, urbanizações indelevelmente marcadas pela adaptação das concepções doutrinárias e propósitos reformistas de seus criadores às necessidades da promoção imobiliária, razão pela qual podemos dizê-las urbanizações sui generis

A propósito desse caráter singular e transitório da Cidade Linear de Soria e da Cidade-Jardim howardiana nos primórdios da suburbanização de mercado, que julgo confirmado pela pesquisa dos autores, escrevi há algum tempo:

“O estudo de Navacués nos permite apreciar a realização de Soria "dos pés para a cabeça", isto é, como projeto de urbanização antes que como utopia, mais exatamente especulação, urbanística, ambiguidade que a define, quem sabe ao lado da cidade-jardim howardiana, como híbrido histórico: pode-se discutir se é o programa de reforma social que para poder sair à luz se adapta às exigências da nascente indústria da suburbanização ou se é esta que, ainda debutante, se apresenta aqui e ali em trajes de colônia semi-rural destinada ao aperfeiçoamento físico e moral das classes laboriosas.” [6]

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A análise dos casos de Ciudad Lineal e Letchworth é muito similar em sua estrutura e suas conclusões: baseados em notável material historiográfico, os autores narram as atribulações de Soria e Howard para adaptar suas especulações urbanísticas, ditas "utopias equitativas", "às demandas do mercado e dos potenciais clientes"[6a]; expõem o "cunho empresarial" e lucrativo das firmas criadas ou mobilizadas para construí-los e promovê-los; e concluem com a avaliação de que Ciudad Lineal materializou "uma proposta urbanística pautada pela dispersão" e tanto os subúrbios-jardim em geral quanto a cidade-jardim de Letchworth, a despeito de suas imensas diferenças e das batalhas que suscitaram no pensamento urbanístico norte-atlântico, "consolidaram um modelo de urba­nização entusiasta do controle do crescimento urbano e da baixa densidade para os padrões da sua época".

A despeito, portanto, da bem documentada primazia da viabilidade comercial dos empreendimentos estudados - como filtro e régua, no caso de Letchworth, e móvel também, no dos subúrbios-jardim britânicos - Pescatori e Faria respondem ao dilema de Hall com uma nítida escolha: o ovo do urbanismo sempre precede, e comanda, a galinha da urbanização. 

Não surpreende, a essa altura, que a Cia City seja introduzida aos leitores não como empresa promotora do primeiro ciclo de expansão periférica de São Paulo, mas como a urbanizadora que "auxiliou no ideário da dispersão urbana" da capital. 

A riquíssima descrição de seu "intricado modus operandi, com o desenvolvimento de estratégias de negócios baseadas em relações de influência direta sobre o poder público com vistas a beneficiar-se, acomodar seus interesses e ampliar os lucros" contrasta com a ausência de indícios que comprovem a existência ou formação no âmbito da companhia, de seu corpo dirigente, de seus projetistas e de seus empreendimentos, de um "ideário da dispersão" por oposição a quaisquer outros ideários alternativos. 

Nenhum registro material é apresentado para demonstrar que essa empresa que fez de Barry Parker seu "lobista", tirando "proveito de sua fama internacional como arquiteto e sócio de Raymond Unwin [no projeto de Letchworth Garden City] para aproximar-se de funcionários da Prefeitura de São Paulo e influenciá-los no que se refere à realiza­ção de seus projetos urbanísticos", também "se apresenta como vertente do ideário de dispersão urbana que emergiu da crítica à cidade compacta e densa". Em que âmbito se deram as discussões sobre tal ideário? Quais foram os seus protagonistas? 

A síntese dessa ambiguidade é o parágrafo que segue:

A atuação da City no início do século XX produziu uma expansão urbana bas­tante característica, voltada para as elites de São Paulo, reinterpretando o ideário da cidade-jardim para a realidade brasileira. A empresa foi definitiva na difusão desse ideário como proposta de urbanização, ainda que restrita à escala do bairro. E, mesmo nessa escala, apresentam-se princípios de dispersão urbana, especial­mente no que tange aos padrões da urbanização residencial unifamiliar, de baixa densidade e de expansão da malha urbana. [7]

Não tenho dúvidas de que a migração, em inícios do século XX, de segmentos da sociedade paulistana para a periferia da capital foi alimentada, no que tange às expectativas dessas famílias, por um ideário mesclado de higienismo e elitismo: baixa densidade, ar puro, espaços verdes, privacidade. A todo processo social subjazem crenças, nas quais, sem dúvida alguma, tem papel importante em nosso caso a fama internacional das cidades-jardim e subúrbios-jardim.

Mas as crenças não nascem de si mesmas, como revelações: a crença nas vantagens de morar num bairro-jardim tem um conjunto de pré-condições, a primeira delas a existência de capitais urbanizadores capazes de adquirir terras, loteá-las, urbanizá-las, financiar a aquisição de lotes e residências e, o que é decisivo para o negócio, propagandear as vantagens da vida suburbana. Esses capitais não são difusores de um ideário de dispersão escolhido dentre outros ideários urbanísticos possíveis, nascidos nas universidades e na imaginação dos reformadores sociais, mas agentes econômicos catalisadores de um processo de dispersão  impulsionado por uma combinação de circunstâncias socialmente dadas, alheias à vontade de cada agente individual e das distintas escolas de urbanismo: crescimento demográfico, aumento da riqueza coletiva, provimento de serviços públicos e consequente expansão da área urbanizável, desejo de ascensão social espacialmente compartilhada, expectativa de valorização do patrimônio familiar etc.

Longe de "reinterpretar o ideário da cidade-jardim para a realidade brasileira", a City recriou, para as condições de S. Paulo, o produto imobiliário subúrbio-jardim, objeto, na Inglaterra, de uma rumorosa ruptura de Unwin e Parker com a doutrina descentralizadora de Howard [6b] [6c]. O bairro-jardim paulistano foi a resposta das companhias urbanizadoras ao fato de que S. Paulo não tinha, àquela altura, escala nem estrutura de transporte que justificassem o uso da expressão "subúrbio-jardim". A cidade-jardim, por sua vez, não foi sequer cogitada pelo simples fato de que as famílias interessadas na aquisição de novas moradias periféricas estavam ainda obrigadas à viagem diária ao centro de negócios da capital. 

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A essa altura, creio ser necessário abordar a relação, crucial na construção do artigo, entre descentralização e dispersão.  Começo por uma relevante diferença de opinião entre os autores e Hall a propósito dos desígnios de Ebenezer Howard. 

Para Pescatori e Faria, Howard "defende veementemente a urbanização de baixa densidade como solução para os problemas da cidade daquele período". Hall contesta tal visão, que seria a da maioria dos críticos de Howard, afirmando que a cidade-jardim howardiana "comporta densidades como a do centro de Londres" e que não se pode "confundi-la com subúrbios-jardim como Hampstead e suas numerosas imitações". O objetivo howardiano de - nas palavras dos autores - "deter a migração campo-cidade" por meio de uma “cidade-campo” que “assegure a combinação perfeita de todas as vantagens da mais intensa e ativa vida urbana com toda a beleza e prazeres do campo na mais perfeita harmonia” não implica, para Hall, "confinar as pessoas em povoados rurais isolados", mas oferecer-lhes "conurbações planejadas de centenas de milhares, e até mesmo milhões, de habitantes". [8]

Descontado o viés da fervorosa admiração de Hall pelas ideias de Howard, sua interpretação é que a doutrina howardiana não postula absolutamente a "dispersão", que ambos associam à expansão da fronteira metropolitana pela via das novas urbanizações periféricas, como os subúrbios-jardim, mas a "descentralização" urbana na forma do plano de "polinucleamento integrado" batizado Social City na primeira edição (1898) de seu Garden Cities of Tomorrow

Pescatori e Faria têm outra visão:      

O polinucleamento integrado, ou seja, a composição de núcleos urbanos separados fisicamente, mas interligados econômica, social e culturalmente, é uma organização dispersa na essência, baseada na noção de que a cidade não deve crescer infinitamente; ela deve ser limitada e, conforme a necessidade, outro núcleo deve ser construído. [9]

Embora me pareça razoável postular que, no limite, a descentralização é uma forma de dispersão e que o polinucleamento não produzido pelo próprio mercado implica certo grau de dispersão econômica e cultural - haja vista o papel insubstituível atribuído aos grandes centros pelas agências de desenvolvimento econômico -, em termos estritamente espaciais e de política urbana a construção de cidades novas nos espaços intermédios das grandes metrópoles, como fez o Estado britânico no pós II Guerra, se distingue claramente do estímulo, por ação (infraestrutura e serviços) ou omissão (legislação permissiva), à suburbanização, vale dizer à expansão da área metropolitana por agregação de parcelamentos exourbanos fadados à progressiva absorção pela mancha urbana. Do contrário não faria sentido existir tal distinção. Ao passo que a suburbanização procede do movimento "natural", vale dizer da natureza lucrativa, do capital urbanizador, as cidades novas são, com as notáveis exceções de Letchworth, Welwyn e um punhado de cidades industriais construídas na Europa e EUA, empreendimentos impensáveis fora da alçada do Estado planejador e promotor. 

A contradição mais notável a que o amálgama de dispersão e  descentralização conduz os autores talvez seja a ideia de que "(..) os subúrbios-jardim consolidaram um modelo de urba­nização entusiasta do controle do crescimento urbano". [10]


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Quanto aos propósitos descentralizadores e ao “efeito-dispersão” dos empreendimentos analisados, eu diria, portanto, que:

1) Ciudad Lineal e Letchworth Garden City tinham, de fato, propósitos descentralizadores subjacentes, oriundos - aqui sim - do ideário reformador de seus criadores. Os projetos da Cia City, por sua vez, não tinham nenhum “propósito descentralizador”; sua ideologia foi, desde a origem, a de empreendimentos puramente comerciais em uma época de migração periférica de segmentos sociais abastados e suas ideias urbanísticas restritas ao âmbito do projeto.

2) É problemático dizer que Letchworth e Welwyn, as duas cidades-jardim howardianas, tiveram efeitos “dispersivos”: mesmo não preenchendo todos os requisitos originais de Howard, elas eram cidades “independentes”, a uma tal distância que não poderiam, em sua época, ser caracterizadas como subúrbios de Londres. O mesmo não se pode dizer de Ciudad Lineal, construída e logo plenamente absorvida como subúrbio da periferia de Madri.

3) Os empreendimentos paulistanos da Cia City produziram, sem dúvida, efeitos de dispersão urbana não planejada, característicos do primeiro ciclo da suburbanização capitalista nas grandes cidades de todo o mundo. Deste ciclo fazem parte vários projetos de urbanização na periferia de Londres, dentre eles Hampstead, célebre criação de Robert Unwin que supõe uma ruptura com a doutrina reformista e descentralizadora de Ebenezer Howard.

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Retornando ao início, postular que adensamento central e dispersão periférica são formas distintas e interdependentes da aglomeração urbana e reconhecer que, no âmbito dos grandes espaços nacionais, a descentralização é uma forma de dispersão, não nos permite absolutamente deduzir a noção essencialmente dualista de que subúrbios como Hampstead e Ciudad Lineal e o polinucleamento integrado que Letchworth e Welwyn pretenderam inaugurar constituem, todos, "uma organização dispersa na essência" - por oposição ao centro compacto da grande metrópole.   

Opor o adensamento em geral à dispersão em geral significa desconsiderar o fato de que toda suburbanização supõe, e amplia, a dependência espacial do centro da urbe, traduzida em commuting, precisamente aquilo que o polinucleamento integrado se propõe a romper. E essa diferença, vale notar, é também a matéria de um dos mais significativos "confrontos de ideários" do urbanismo do século XX: a polêmica, na década de 1920,  entre os defensores da expansão metropolitana de Nova York ordenada e relativamente compactada pela rede de transporte público ferroviário, liderados por Thomas Adams, diretor do Plano Regional de Nova York e Arredores, e os advogados de uma rede regional de "cidades caminháveis" - hoje diríamos "cidades de 15 minutos" -  agrupados em torno de Lewis Mumford, paladino da cidade-jardim howardiana. [11]  

Sintomaticamente, foram ambos derrotados. Segundo Fishman, autor reiteradamente citado por Pescatori e Faria, "metropolistas" e "regionalistas" "tinham um inimigo comum: o espraiamento suburbano cobrindo toda a região, que, por ironia, foi exatamente o que aconteceu". Prevaleceu, aqui mais do que em qualquer outro lugar, o rolo compressor da suburbanização de mercado, favorecido dentre outras coisas pelas facilidades automotivas patrocinadas por Robert Moses. [12]
 
Ao passo que a dispersão suburbana é um produto "natural" do funcionamento do mercado de solo urbano, em todo o mundo, desde mais ou menos o terceiro quarto do século XIX, a consecução do "polinucleamento integrado" é impensável à margem do planejamento, do investimento e de uma grande dose de controle estatal. Compare-se, em nosso caso, as atribulações de Ebenezer Howard para viabilizar, pelo mercado, a criação de duas cidades-jardim entre 1905 e 1920 e as mais de 30 cidades novas criadas pela política de descentralização instituída pelo New Towns Act de 1946 [13], totalizando em 2002 cerca de 500 mil residências e 2 milhões de habitantes. [14]

Concluo opinando que este trabalho de Pescatori e Faria tem um enorme valor historiográfico, pelo qual sou, como pesquisador independente, sinceramente grato, mas suas interpretações me parecem guiadas, como ocorre com frequência na literatura de nossa profissão, pelo pré-conceito de que as ideias urbanísticas - no caso "o ideário da dispersão" - sempre governam e devem necessariamente conter, como um leito de Procusto, os fatos fundamentais da urbanização. A tal viés metodológico, eu oponho o critério de Kostof: 

(..) I focus on the theory or urban design, or on abstract urban schemes that are there to prove a point or propose a utopia, only when there is a tangible relation to the practices of actual town-making. More importantly, many cities come about without benefit of designers, or once designed, set about instantly to adapt themselves to the ritual of everyday life and the vagaries of history. [15]

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NOTAS

[1] BURGESS E W, “The Growth of the City: An Introduction to a Research Project", em BURGESS, E W e PARK R E, The City: Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment, The University of Chicago Press, 1984: Chicago e Londres
https://kupdf.net/download/park-burgess-the-citypdf_5a46e89ae2b6f5a6028b1d54_pdf

[2] PESCATORI C e FARIA R, “Dispersão urbana e empresas urbanizadoras na cidade industrial: a atuação da Compañia Madrileña de Urbanización, da Garden City Pioneer Company, da First Garden City Ltda. e da Cia City.” Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, [S. l.], v. 22, 2020, p.4.

[3] HALL P, Cities of Tomorrow [1988], Blackwell, Londres 1996, p.48-9.

[4] HALL P, op. cit. p.48.

[5] HALL P, op. cit. p.2.

[6] JORGENSEN P, “Apontamentos: Navascués 1969 - Soria dos pés para a cabeça”. À beira do urbanismo (blog) 16-05-2018 

[6a] Os autores não dizem, por exemplo, mas compilam fortes indícios de que a mudança do título do livro de Ebenezer Howard, de To-morrow: A Peaceful Path for Real Reform, (1898) para Garden Cities of Tomorrow (1902), detalhe que nunca vi discutido em textos de história do urbanismo, poderia, sim, estar relacionada à sua transfiguração de rede estruturada de cidades autônomas, autogeridas e autossustentadas - a Social City da edição de 1898 corretamente descrita pelos autores como "organização regional polinucleada"- em uma coleção de cidades ex novo comercialmente viáveis no interior da Inglaterra. Ver JORGENSEN P, "As sete vidas da cidade-jardim II", em À beira do urbanismo 11-08-2017. https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2017/08/as-sete-vidas-da-cidade-jardim-ii.html

[6b] “(..) essa distinção (..) provocou a ruptura de Howard, Osborn e outros seguidores dogmáticos – que se mantiveram fiéis à concepção de cidade-jardim enquanto um tipo ideal, alternativo às metrópoles e grandes cidades –, com Unwin, Parker e demais projetistas de subúrbios. (..) o fundamental trabalho teórico de Unwin – Town Planning in Practice, de 1909 - (..) desliza o conceito de cidade-jardim para subúrbio-jardim (..) [motivo da] cisão do Movimento pela Cidade-Jardim entre os ortodoxos howardianos e os pragmáticos alinhados a Unwin." [MONTEIRO DE ANDRADE C R, “Jardim América: a arquitetura do primeiro bairro-jardim de São Paulo”, Vitruvius 006.01 ano 01, jun. 2002 
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/01.006/3240

[6c] “Jardim América, Jardim Europa, Jardim Paulistano (..) surgiram na década de 1910, como uma alternativa para a expansão dos bairros até então ocupados pelas elites — Campos Elísios, Higienópolis e a Avenida Paulista. Caíram no gosto das camadas altas e médias. Foram modelados a partir dos subúrbios-jardins que, ao longo da segunda metade do século XIX, tomaram forma nas cercanias de grandes cidades britânicas e americanas — Londres, Nova York, Chicago. (..) Com o subúrbio-jardim, arquitetos britânicos e americanos também buscaram associar campo e cidade, porém sem pretender a autonomia característica da garden city. O subúrbio-jardim deve, assim, ser entendido como extensão da grande cidade, enquanto a cidade-jardim coloca-se como uma nova cidade, distinta da metrópole à qual se articula.” AGUIAR T F R, “Jardim América, o subúrbio-jardim em versão brasileira”. Varia Historia No. 29 Janeiro 2003
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[7] PESCATORI C e FARIA R, op. cit, p.19.

[8] HALL P, op. cit. pp. 87, 93.

[9] PESCATORI C e FARIA R, op. cit, p.11.

[10] PESCATORI C e FARIA R, op. cit, p.13. 

[11] “The Big Plans That Built New York City”. Bloomberg, 02-02-2022, por John Surico
https://www.bloomberg.com/news/features/2022-02-02/how-new-york-s-master-planners-shaped-a-metropolis

[12] Id.

[13] HALL P (1992), Urban & Regional Planning. New York: Routledge, 1994, p. 127

[14] WIKIPEDIA, “New Towns Act” Edit 28-03-2023
https://en.wikipedia.org/wiki/New_Towns_Acts

[15] KOSTOF S, The City Shaped, “Introduction”. London: Thames and Hudson 1991, p. 12

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2023-03-29