sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Coliving, micromoradia, renda do solo

Deu no G1
19-11-2021, por Gustavo Honório
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/11/19/a-vida-nas-casas-compartilhadas-de-sp-moradores-pagam-r-12-mil-de-aluguel-em-quartos-de-9-m.ghtml


A vida nas casas compartilhadas de SP: moradores pagam R$ 1,2 mil de aluguel em quartos de 9 m² 

Montagem: àbeiradourbanismo. Texto: Folha S Paulo
Incorporadoras e imobiliárias em geral garantem que a redução paulatina do tamanho das unidades habitacionais, incluindo a modalidade "moradia compartilhada", é um signo de progresso que lhes cabe materializar no interesse de inquilinos e compradores: as unidades são super-práticas e, o mais importante, aliviam o orçamento das famílias.
[1] 

De fato, quem alugava 15m2 a $100,00/m2 (=$1.500,00) e agora aluga 10m2 a $120,00/m2 (=$1.200,00), ainda que pagando mais caro pelo m2 passou a dispor de uma unidade habitacional mais acessível.

O que as imobiliárias não dizem é que quanto menor e mais próxima ao centro urbano (ou à praia, parque, etc.) a moradia, mais se paga pela terra-localização e menos pela benfeitoria - e isto é a alma do seu negócio. 

Uma unidade imobiliária é formada por dois ativos combinados, benfeitoria e solo, cujos valores de mercado têm natureza e comportamento distintos e por vezes até contraditórios. A benfeitoria é mercadoria durável, cujo valor gravita ao redor do preço de produção (custos totais + taxa média de lucro) e diminui inexoravelmente com o uso e o passar do tempo (depreciação); o solo é um bem natural pelo qual se paga um preço que nada tem a ver com a atividade produtiva, ou com a quantidade de trabalho nela empregado, consistindo simplesmente na maior oferta que lhe façam os demandantes pelo direito exclusivo de usufruir e dispor de suas vantagens de urbanização e localização, externalidades que, regra geral, propiciam a sua contínua valorização no processo de crescimento econômico e expansão da cidade. 

Ao passo que a benfeitoria está inexoravelmente sujeita à depreciação pelo tempo e pelo uso, a localização, embora possa desvalorizar-se relativamente a outras localizações, só em situações de degradação urbana sofre desvalorização absoluta, isto é, maior que a da moeda por efeito da inflação. [2]

O segredo do negócio imobiliário está em que, nas localizações preferidas pelos segmentos de médios e altos rendimentos, a renda do solo agrega considerável sobrelucro ao processo de produção de novas unidades e sua valorização no tempo muito mais do que compensa a inevitável depreciação das benfeitorias. A combinação benfeitoria-solo confere ao bem imobiliário a singular capacidade de ganhar valor de mercado e gerar renda até muito depois de cumprida a sua “missão” como mercadoria, isto é, de ter seu preço total quitado pelo adquirente e seus eventuais sucessores, consequentemente realizado o lucro do capital incorporador.

O exemplo mais simples desse efeito combinado é o do apartamento de três quartos que passa a ser alugado em regime de coliving. Dado que o valor da benfeitoria, no curtíssimo prazo, se mantém constante, a totalidade do aumento da receita de aluguel provém... da propriedade do solo - e o que é sumamente interessante, sem investimento algum! É pura renda de localização.

O princípio que rege a prática atual do coliving nos bairros de classe média é rigorosamente o mesmo que há mais de um século preside a formação de cortiços em zonas centrais desvalorizadas das grandes cidades. Ele foi assim descrito por Richard Hurd, pioneiro do estudo do espaço intra-urbano, em 1903:

(..) mansões obsolescentes convertidas em casas de cômodos geralmente perdem valor, efeito que tende a ser compensado pela utilização mais intensa do solo: mais pessoas pagando alugueis menores pode resultar em aumento da renda total. [3]

Na incorporação imobiliária, a redução do tamanho das unidades gera um resultado similar. Consideremos dois empreendimentos A e B, quase simultâneos (ou seja, a inflação é desprezível), vizinhos, de igual padrão de qualidade e mesmo tamanho total (3.000m2 privativos), em que a unidade de A (30m2) é vendida ao preço de R$150 mil (R$5.000,00/m2),  e a unidade de B (25m2) é vendida ao preço de R$135 mil (R$5.400,00/m2).


EMPREENDIMENTO A
3.000m2 com unidades de 30m2 à 100 unidades * R$150 mil/ un à receita total = R$15,0 milhões

EMPREENDIMENTO B
3.000m2 com unidades de 25m2 
à 120 unidades * R$135 mil/ un à receita total = R$16,2 milhões

Vendendo 120 unidades de 25m2 do Empreendimento B, 10% mais baratas no preço total ainda que 8% mais caras por m2 do que as do Empreendimento A, o incorporador obtém um aumento de receita de 8% com a mesma quantidade de m2 privativos produzidos.

Àbeiradourbanismo
Sim, o custo/m2 de construção de 3.000m2 privativos perfazendo 120 unidades é maior do que o custo/m2 de construção de 3.000m2 privativos perfazendo 100 unidades - devido, principalmente, ao maior volume de instalações. Basta, porém, que esse aumento de custo seja menos que proporcional ao aumento da receita - o que é muito provável em todos os casos que envolvam as localizações mais valorizadas na cidade -, para que o empreendimento B seja mais rentável do que o empreendimento A, acréscimo inteiramente derivado da renda da terra-localização.

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Nas grandes cidades de todo o mundo, 
a produção de micro-apartamentos e a adoção da moradia compartilhada seguem num ritmo imparável. Significa que, por relevante que seja a maré de trabalho remoto trazida pela pandemia de Covid-19, para a imensa maioria dos assalariados a única opção continua sendo o trabalho presencial a 15, 30, 45, 60 minutos, ou até mais, de seus habitáculos, pelos quais são obrigados, além do mais, a despender parcelas cada vez maiores de seus vencimentos mesmo com o barateamento proporcionado, no curto prazo, pela redução do tamanho das unidades.

Assim se materializam as expectativas dos consultores das grandes organizações dedicadas ao desenvolvimento, para os quais as megalópoles contemporâneas em contínuo crescimento são, a despeito de suas fabulosas deseconomias e obscenas desigualdades, as insubstituíveis e benfazejas usinas da riqueza planetária.

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[1] "Os apartamentos com os quais a Vitacon trabalha são compactos para locação nas regiões mais procuradas de São Paulo. “Quem investe com a gente, investe em desenvolvimento urbano e atende uma alta demanda que procura por qualidade de vida, mobilidade, proximidade do trabalho e dos eixos estratégicos da cidade”, diz o empreendedor. [ Nos últimos 12 anos, a Vitacon desenvolveu mais de 70 projetos, visando uma cidade mais inteligente, dinâmica e acolhedora para todos." “Investimento em produtos imobiliários é alternativa na crise”. MoneyLab 30-11-2021
https://www.infomoney.com.br/mercados/investimento-em-produtos-imobiliarios-e-alternativa-na-crise/

[2] “A chave do tamanho” (08-03-2020)
http://abeiradourbanismo.blogspot.com/2020/03/tamanho-e-documento.html

[3] "(..) when these good residences become old-fashioned and are converted into boarding houses, a drop in value will ordinarily occur. This is sometimes offset by the more intense utilization of the land, a larger rent being earned from more people even at lower rates.(..)" HURD R M, Principles of City Land Values. New York, Record and Guide 1903, "VI - Distribution of Utilities", p. 87.
https://archive.org/.../principlesofcity.../page/n4/mode/1up

 
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Sobre este tema, ver também neste blog

“O traseiro da TV e o lucro imobiliário” (07-06-2011)
http://abeiradourbanismo.blogspot.com/2011/06/o-traseiro-da-teletela-e-o-lucro_07.html

‘O coeficiente de aproveitamento e a valorização do solo” (23-02-2013)
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2013/02/o-coeficiente-de-aproveitamento-e.html

“Dracula de Bram Stoker” (20-12-2019)
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2019/12/dracula-de-bram-stoker.html


2021-11-29