terça-feira, 19 de junho de 2007

Capítulo 4 - Considerações finais: as “redes de acessibilidade estruturalmente diferenciadas”



Demanda de Transporte e Centralidade:
Um Estudo da Distribuição Espacial de Viagens
na Cidade do Rio de Janeiro 

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO - PET-COPPE-UFRJ - MARÇO DE 1998




CAPÍTULO 4
Considerações finais: as “redes de acessibilidade
estruturalmente diferenciadas”

Os métodos de análise desta pesquisa são compatíveis com o seu caráter exploratório da relação entre os dados de viagens da pesquisa domiciliar e a interpretação da estrutura urbana e de suas transformações.

Os resultados obtidos nos permitem concluir que a mobilidade coletiva transfere certos atributos sócio-econômicos ao espaço físico onde ela se materializa, conferindo conteúdo geomórfico e econômico às infraestruturas e meios de transporte existentes.

Denominamos essa materialização do conteúdo geomórfico e econômico das infraestruturas e meios de transportes “redes de acessibilidade”.  

As redes de acessibilidade de uma grande cidade são diferentes formas históricas da organização dos meios de circulação e transporte que coexistem no tempo e no espaço, uma teia de estágios do processo de desenvolvimento que se sobrepõem e se interpenetram, adquirindo uma configuração única e significados específicos —funcionais, simbólicos, ambientais, arquitetônicos, econômicos.

Tais estágios são evolutivos, mas não sequenciais, determinados ou necessariamente progressivos. Antes, as estruturas urbanas transformam-se em ritmos desiguais, resultam da combinação de sua posição inercial com algum aspecto do processo de transformações imposto desde o vértice do sistema econômico. O caráter desigual e combinado do desenvolvimento urbano se expressa muito claramente na estrutura espacial urbana, na forma de superposição mal-articulada de infraestruturas e sistemas que irrompem bruscamente dos novos programas de investimento, aos quais o tecido urbano é chamado de tempos em tempos a se adaptar.

Um exemplo típico é a Área de Planejamento 3, com  sua evidente inadaptação aos saltos históricos da urbanização: uma mal-costurada rede de ruas em torno de ferrovias construídas para o transporte de cargas agrícolas, uma malha de vias principais e sistemas de transporte por ônibus mal-costurados no complexo tecido urbanizado agora seccionado pelas ferrovias, uma linha de Metrô  que secciona o espaço já urbanizado como se a cidade de 1975 fosse a de 1875 e, mais recentemente,  uma via expressa que ignora tudo o que existe à sua volta mas propicia, por meio de algumas entradas e saídas mal-costuradas no território, à população motorizada da região integrar-se ao circuito shopping center-Aeroporto Internacional da sociedade afluente do terceiro milênio.

Os métodos de pesquisa aqui utilizados só podem, portanto, ter validade como métodos aplicados ao planejamento de transportes se desenvolvidos e aperfeiçoados como meio de investigação da relação entre  os padrões de urbanização e os sistemas de transporte, portanto à tomada de decisões estratégicas quanto ao rendimento macro-econômico, a configuração geral e  a tipologia das redes de transportes.

A tese subjacente é a de que o setor público pode servir-se das pesquisas domiciliares de transporte (ou de quaisquer outras fontes de dados sobre a demanda de viagens) para formular uma estratégia de intervenção em que a relação uso do solo-transportes seja deduzida não do aspecto funcional e quantitativo da localização de atividades (Buchanan, que compara a rede de transportes na cidade com a circulação em um hospital ou residência; Le Corbusier, que defende a especialização das vias como meros “condutos” para ligar os locais onde se realizam as “funções vitais” habitar, trabalhar e cultivar-se; o planejamento tradicional em transportes que afirma que este é uma “demanda derivada” da necessidade das pessoas participarem em atividades — trabalho, escola, compras etc. que têm uma localização determinada no espaço), mas dos aspectos macro-econômico e geomórfico desta localização.

É a análise geográfica e econômica do espaço urbano, sustentadas por um conhecimento consistente da história da cidade, que permitem estimar o papel da rede de transportes na formação das economias de urbanização e aglomeração, o modo como sua configuração geográfica, características operacionais e níveis de preço e qualidade afetam a localização e o rendimento dos capitais privados e públicos, grandes, médios e  pequenos, desigualmente distribuídos no espaço.

O planejamento clássico de transportes provê, através do modelo sequencial “4 etapas”, a “rede estrutural” de transportes, entidade “interna” ao sistema de transportes que é extraída da espacialidade e depois a ela “devolvida” como coisa pronta e acabada. A “rede estrutural” contém a expectativa de atendimento de uma demanda quantitativamente  determinada pela matriz origem-destino expandida segundo projeções da população e do uso do solo. Ela é, portanto, uma “malha”  formada por uma hierarquia única que vai das linhas mais carregadas à linhas menos carregadas. O pressuposto é que o espaço urbano é “univocamente determinado” em relação à demanda de transportes.

Mas o desenvolvimento das estruturas espaciais urbanas é desigual, diferenciado, dentre outras razões devido à acessibilidade historicamente desigual provida pelos sistemas de transporte. A unidade da estrutura espacial urbana só pode ser apreendida e conscientemente modificada sobre a base do reconhecimento da desigualdade que a apropriação social do espaço implica. Denominamos redes de acessibilidade estruturalmente diferenciadas o elo entre a mobilidade coletiva e o espaço econômicamente constituído.

Da mesma maneira como tradicionalmente tomamos a demanda crítica (pico) em corredores para dimensionar a oferta necessária e logo um meio de transporte adequado para satisfazê-la, podemos também tomar a quantidade e a qualidade das viagens absorvidas em uma determinada porção do espaço e determinar, para esse tipo de demanda e esse tipo de espaço a rede de transporte que propicie um desempenho adequado dos recursos públicos e privados invertidos no território, inclusive em termos de seus efeitos sinérgicos sobre o ambiente circundante.

A rede de acessibilidade é uma trama de relações específicas, materializada em meios de transporte, entre a demanda estimada em quantidade e qualidade, os setores (atividades) econômicos envolvidos e o modo de valorização dos territórios (de origem, de destino, de passagem, economias de urbanização e aglomeração). Ela deve propiciar uma combinação adequada entre o atendimento (1) da demanda tal como ela se manifesta e de (2) uma certa (do planejador ou tomador de decisão) expectativa de rendimento dos capitais (capital privado, capital social total) instalado e por instalar na cidade.

O conceito de redes de acessibilidade aponta para a possibilidade de um planejamento de transportes regionalizado conforme o desempenho esperado de determinados conjuntos de meios de transporte no atendimento da demanda e na formação de economias de urbanização e aglomeração (valorização do território).

Por regionalização do planejamento entendemos, portanto, não a fragmentação das iniciativas em “áreas geográficas da cidade”, mas um planejamento por “problemas a atacar” segundo a visão que tenha o planejador urbano do lugar funcional e econômico (eventualmente também social, simbólico, arquitetônico, ambiental, referencial) de uma determinada rede dentro da unidade urbana.

As redes de acessibilidade estruturalmente diferenciadas são “regiões-problema”, entidades simultaneamente operacionais, geográficas e econômicas, formadas em função do problema de mobilidade/acessibilidade a resolver, seja de grande, média ou pequena abrangência. São redes que hão de estar muitas vezes espacialmente localizadas umas  dentro das outras, combinadas entre si, em  alguns casos até desprovidas de definição espacial (o CBD, que pode ser tomado como ponto sem dimensão) (Mapas 4a, 4b, 4c, 4d)

4.1       Dois exemplos

O sistema de comunicações entre os centros de bairro da AP-3, embora tenha uma “interface”  evidente com o sistema de acesso ao centro (os ramais centro-radiais da CBTU), constitui uma rede de acessibilidade (“região-problema”) radicalmente diversa da rede de acessibilidade periferia-centro, e que não se pode considerar “atacada” por estar representada na “rede estrutural”. Ali ela será sempre uma rede de acessibilidade (“região-problema”) secundária, das últimas a ser considerada em sua especificidade, pela simples razão de que a rede estrutural está desenhada para dimensionar prioritáriamente uma outra rede de acessibilidade (O-D do pico da manhã/hora mais carregada, portanto casa-trabalho, sentido periferia-centro). E no entanto, se a AP-3 é uma região multipolar de comércio (cada vez mais popular) e serviços ao consumidor, a comunicação rápida e eficiente nos horários fora-de-pico é um problema vital para o desempenho econômico dos capitais ali instalados, cabendo inclusive a possibilidade de que surjam oportunidades de ação setorizada que em nada dependeriam da “rede estrutural” planejada centralmente (por exemplo, um acordo tarifário específico para as linhas interbairros da região).

Já o transporte tipicamente casa-trabalho da população que reside na periferia metropolitana e demanda pendularmente o CBD constitui uma “rede de acessibilidade (“região-problema”) radicalmente  diferente daquela estabelecida, por exemplo, pelo “sistema radiocêntrico de curta distância” (cidade central). Tipicamente, os sistemas tronco-alimentadores de longa distância acrescentam pouco ou nenhum valor (ou mesmo retiram valor) às áreas atravessadas, acrescentam um valor efetivo pouco “multiplicado” (fracas economias de aglomeração) às áreas de origem, e acrescentam um valor importante ao CBD, que há de ser proporcional a uma combinação entre os atributos sócio-econômicos da demanda (hoje em declínio) e o nível (provavelmente também declinante) de economias de aglomeração e urbanização no centro. A decisão de investir nesses sistemas deverá levar em conta, necessariamente, os componentes social e macro-econômico uma vez que eles constituem, por natureza, uma rede que tende a um baixo rendimento operacional e a uma desvalorização dos territórios atravessados mas é vital tanto para a economia do centro quanto para a vida da população trabalhadora da periferia. A decisão de como investir remete ao problema de se se prioriza um sistema de alta eficácia interna e eficiência externa restrita aos extremos de linha (tronco-alimentador direto) ou se um sistema de média eficácia interna e externa porque pertencente (ou combinado) à “rede de acessibilidade” da cidade central (troncal semi-direto).

Redes de acessibilidade estruturalmente diferenciadas são, pois, conjuntos de meios de transporte qualificados quanto a certas combinações típicas dos atributos sócio-econômicos da demanda e econômico-espaciais da estrutura urbana. As “redes de acessibilidade” são  uma ponte possível e necessária a ser construída entre engenharia de transportes e a economia espacial urbana, a serviço da gestão da cidade  —análise, planejamento  e tomada  de decisões.