Demanda de Transporte e Centralidade:
Um Estudo da Distribuição Espacial de Viagens
Um Estudo da Distribuição Espacial de Viagens
na Cidade do Rio de Janeiro
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO - PET-COPPE-UFRJ - MARÇO DE 1998
CAPÍTULO 4
Considerações finais: as “redes de
acessibilidade
estruturalmente diferenciadas”
Os
métodos de análise desta pesquisa são compatíveis com o seu caráter
exploratório da relação entre os dados de viagens da pesquisa domiciliar e a
interpretação da estrutura urbana e de suas transformações.
Os
resultados obtidos nos permitem concluir que a mobilidade coletiva transfere certos atributos sócio-econômicos ao
espaço físico onde ela se materializa, conferindo conteúdo geomórfico e
econômico às infraestruturas e meios de transporte existentes.
Denominamos
essa materialização do conteúdo geomórfico e econômico das infraestruturas e
meios de transportes “redes de
acessibilidade”.
As
redes de acessibilidade de uma grande cidade são diferentes formas históricas
da organização dos meios de circulação e transporte que coexistem no tempo e no
espaço, uma teia de estágios do processo de desenvolvimento que se sobrepõem e
se interpenetram, adquirindo uma configuração única e significados específicos
—funcionais, simbólicos, ambientais, arquitetônicos, econômicos.
Tais
estágios são evolutivos, mas não sequenciais, determinados ou necessariamente
progressivos. Antes, as estruturas urbanas transformam-se em ritmos desiguais,
resultam da combinação de sua posição inercial com algum aspecto do processo de
transformações imposto desde o vértice do sistema econômico. O caráter desigual
e combinado do desenvolvimento urbano se expressa muito claramente na estrutura
espacial urbana, na forma de superposição mal-articulada de infraestruturas e
sistemas que irrompem bruscamente dos novos programas de investimento, aos
quais o tecido urbano é chamado de tempos em tempos a se adaptar.
Um
exemplo típico é a Área de Planejamento 3, com
sua evidente inadaptação aos saltos históricos da urbanização: uma
mal-costurada rede de ruas em torno de ferrovias construídas para o transporte
de cargas agrícolas, uma malha de vias principais e sistemas de transporte por
ônibus mal-costurados no complexo tecido urbanizado agora seccionado pelas
ferrovias, uma linha de Metrô que
secciona o espaço já urbanizado como se a cidade de 1975 fosse a de 1875 e,
mais recentemente, uma via expressa que
ignora tudo o que existe à sua volta mas propicia, por meio de algumas entradas
e saídas mal-costuradas no território, à população motorizada da região
integrar-se ao circuito shopping center-Aeroporto
Internacional da sociedade afluente do terceiro milênio.
Os
métodos de pesquisa aqui utilizados só podem, portanto, ter validade como
métodos aplicados ao planejamento de transportes se desenvolvidos e
aperfeiçoados como meio de investigação da relação
entre os padrões de urbanização e os
sistemas de transporte, portanto à tomada de decisões estratégicas quanto
ao rendimento macro-econômico, a configuração geral e a tipologia das redes de transportes.
A tese
subjacente é a de que o setor público pode servir-se das pesquisas domiciliares
de transporte (ou de quaisquer outras fontes de dados sobre a demanda de
viagens) para formular uma estratégia de intervenção em que a relação uso do
solo-transportes seja deduzida não do aspecto funcional e quantitativo da localização de atividades (Buchanan,
que compara a rede de transportes na cidade com a circulação em um hospital ou
residência; Le Corbusier, que defende a especialização das vias como meros
“condutos” para ligar os locais onde se realizam as “funções vitais” habitar,
trabalhar e cultivar-se; o planejamento tradicional em transportes que afirma
que este é uma “demanda derivada” da necessidade das pessoas participarem em
atividades — trabalho, escola, compras etc. que têm uma localização determinada
no espaço), mas dos aspectos
macro-econômico e geomórfico desta localização.
É a
análise geográfica e econômica do espaço urbano, sustentadas por um conhecimento
consistente da história da cidade, que permitem estimar o papel da rede de
transportes na formação das economias de urbanização e aglomeração, o modo como
sua configuração geográfica, características operacionais e níveis de preço e
qualidade afetam a localização e o rendimento dos capitais privados e públicos,
grandes, médios e pequenos,
desigualmente distribuídos no espaço.
O
planejamento clássico de transportes provê, através do modelo sequencial “4
etapas”, a “rede estrutural” de transportes, entidade “interna” ao sistema de transportes que é extraída da espacialidade
e depois a ela “devolvida” como coisa pronta e acabada. A “rede estrutural”
contém a expectativa de atendimento de uma demanda quantitativamente determinada pela matriz origem-destino
expandida segundo projeções da população e do uso do solo. Ela é, portanto, uma
“malha” formada por uma hierarquia única
que vai das linhas mais carregadas à linhas menos carregadas. O pressuposto é
que o espaço urbano é “univocamente determinado” em relação à demanda de
transportes.
Mas o
desenvolvimento das estruturas espaciais urbanas é desigual, diferenciado,
dentre outras razões devido à acessibilidade historicamente desigual provida
pelos sistemas de transporte. A unidade da estrutura espacial urbana só pode
ser apreendida e conscientemente modificada sobre a base do reconhecimento da
desigualdade que a apropriação social do espaço implica. Denominamos redes de acessibilidade estruturalmente
diferenciadas o elo entre a mobilidade coletiva e o espaço econômicamente
constituído.
Da
mesma maneira como tradicionalmente tomamos a demanda crítica (pico) em
corredores para dimensionar a oferta necessária e logo um meio de transporte adequado para satisfazê-la, podemos
também tomar a quantidade e a qualidade das
viagens absorvidas em uma determinada porção do espaço e determinar, para esse
tipo de demanda e esse tipo de espaço a rede
de transporte que propicie um desempenho adequado dos recursos públicos e
privados invertidos no território, inclusive em termos de seus efeitos
sinérgicos sobre o ambiente circundante.
A rede de acessibilidade é uma trama de
relações específicas, materializada em meios de transporte, entre a demanda
estimada em quantidade e qualidade, os setores (atividades) econômicos
envolvidos e o modo de valorização dos territórios (de origem, de destino, de
passagem, economias de urbanização e aglomeração). Ela deve propiciar uma
combinação adequada entre o atendimento (1) da demanda tal como ela se manifesta e de (2) uma certa (do planejador
ou tomador de decisão) expectativa de
rendimento dos capitais (capital privado, capital social total) instalado e por
instalar na cidade.
O
conceito de redes de acessibilidade
aponta para a possibilidade de um planejamento de transportes regionalizado conforme o desempenho
esperado de determinados conjuntos de meios de transporte no atendimento da
demanda e na formação de economias de urbanização e aglomeração (valorização do
território).
Por regionalização do planejamento
entendemos, portanto, não a fragmentação das iniciativas em “áreas geográficas
da cidade”, mas um planejamento por “problemas a atacar” segundo a visão que
tenha o planejador urbano do lugar funcional e econômico (eventualmente também
social, simbólico, arquitetônico, ambiental, referencial) de uma determinada
rede dentro da unidade urbana.
As redes de acessibilidade estruturalmente
diferenciadas são “regiões-problema”, entidades simultaneamente
operacionais, geográficas e econômicas, formadas em função do problema de
mobilidade/acessibilidade a resolver, seja de grande, média ou pequena
abrangência. São redes que hão de estar muitas vezes espacialmente localizadas
umas dentro das outras, combinadas entre
si, em alguns casos até desprovidas de
definição espacial (o CBD, que pode ser tomado como ponto sem dimensão) (Mapas 4a, 4b, 4c, 4d)
4.1 Dois exemplos
O
sistema de comunicações entre os centros de bairro da AP-3, embora tenha uma
“interface” evidente com o sistema de
acesso ao centro (os ramais centro-radiais da CBTU), constitui uma rede de acessibilidade
(“região-problema”) radicalmente diversa da rede de acessibilidade periferia-centro, e que não se pode
considerar “atacada” por estar representada na “rede estrutural”. Ali ela será
sempre uma rede de acessibilidade (“região-problema”) secundária, das últimas a
ser considerada em sua especificidade, pela simples razão de que a rede
estrutural está desenhada para dimensionar prioritáriamente uma outra rede de
acessibilidade (O-D do pico da manhã/hora mais carregada, portanto casa-trabalho,
sentido periferia-centro). E no entanto, se a AP-3 é uma região multipolar de
comércio (cada vez mais popular) e serviços ao consumidor, a comunicação rápida
e eficiente nos horários fora-de-pico é um problema vital para o desempenho
econômico dos capitais ali instalados, cabendo inclusive a possibilidade de que
surjam oportunidades de ação setorizada que em nada dependeriam da “rede
estrutural” planejada centralmente (por exemplo, um acordo tarifário específico
para as linhas interbairros da região).
Já o
transporte tipicamente casa-trabalho da população que reside na periferia
metropolitana e demanda pendularmente o CBD constitui uma “rede de
acessibilidade (“região-problema”) radicalmente
diferente daquela estabelecida, por exemplo, pelo “sistema radiocêntrico
de curta distância” (cidade central). Tipicamente, os sistemas
tronco-alimentadores de longa distância acrescentam pouco ou nenhum valor (ou
mesmo retiram valor) às áreas atravessadas, acrescentam um valor efetivo pouco
“multiplicado” (fracas economias de aglomeração) às áreas de origem, e
acrescentam um valor importante ao CBD, que há de ser proporcional a uma
combinação entre os atributos sócio-econômicos da demanda (hoje em declínio) e
o nível (provavelmente também declinante) de economias de aglomeração e
urbanização no centro. A decisão de investir nesses sistemas deverá levar em
conta, necessariamente, os componentes social e macro-econômico uma vez que
eles constituem, por natureza, uma rede que tende a um baixo rendimento operacional
e a uma desvalorização dos territórios atravessados mas é vital tanto para a
economia do centro quanto para a vida da população trabalhadora da periferia. A
decisão de como investir remete ao
problema de se se prioriza um sistema de alta eficácia interna e eficiência
externa restrita aos extremos de linha (tronco-alimentador direto) ou se um
sistema de média eficácia interna e externa porque pertencente (ou combinado) à
“rede de acessibilidade” da cidade central (troncal semi-direto).
Redes de acessibilidade estruturalmente
diferenciadas são, pois, conjuntos de meios de transporte qualificados quanto a certas
combinações típicas dos atributos sócio-econômicos da demanda e
econômico-espaciais da estrutura urbana. As “redes de acessibilidade” são uma ponte possível e necessária a ser
construída entre engenharia de transportes e a economia espacial urbana, a
serviço da gestão da cidade —análise,
planejamento e tomada de decisões.