quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Apontamentos: M Abreu e a transição urbana no Brasil


ABREU Maurício*, “Cidade brasileira: 1870-1930”
https://pt.scribd.com/document/162723437/62
(*) Departamento de Geografia, Universidade Federal do Rio de Janeiro


Concordo inteiramente com Abreu que o período 1870-1930 é aquele em que “os processos capitalistas modernos firmaram-se solidamente nas cidades brasileiras”. Nelas surgiram, de fato, “relações de trabalho de tipo assalariado capitaneadas pela produção industrial e pelo setor de serviços urbanos” e “um mercado urbano de terras” coroado pela “promoção fundiária em grande escala, representada por empresas capitalistas dedicadas à produção e comercialização de lotes urbanos, em muitos casos em estreita associação com o capital bancário”. 

Por uma coincidência que nada tem de casual, foi este o exato intervalo temporal que deduzi, das leituras de Strohaecker sobre Porto Alegre [1], de Queiroz Ribeiro e Lima Barreto (!)  sobre o Rio de Janeiro [2] [3] e de outras mais sobre São Paulo, Salvador, Recife e Belo Horizonte, como sendo o do nascimento das metrópoles capitalistas brasileiras

Essa concordância, aliás, ocorre-me agora, é um bom motivo para escrever um comentário sobre o problema da periodização na história urbana brasileira.

Deixando de lado por ora - para focar no meu campo de investigação - o seu ótimo resumo do desenvolvimento do urbanismo e das políticas urbanas brasileiras nesse período, observo um aspecto do texto de Abreu em que não coincido, ao menos em parte: a assimilação do novo mercado de lotes suburbanos a um processo de “desconcentração urbana” [4]. 

É certo que “as cidades maiores abandonaram de vez a estrutura urbana anterior e passaram a crescer segundo vetores de expansão distintos, separando usos e classes sociais no espaço”. Por isso mesmo, me parece, a “desconcentração” é apenas relativa. Ao nascente espraiamento suburbano dessa época corresponde o início de uma radical transformação das cidades herdadas do período colonial, para se tornarem centros das metrópoles radiadas com aumentos brutais das densidades edificadas exigidos pelos negócios em geral e, principalmente, pelas grandes firmas comerciais e bancárias.

Como muito bem observou o economista e avaliador Richard Hurd em sua única obra Principles of City Land Values, publicada em 1903, a expansão da cidade do século XX é, ao mesmo tempo, periférica e central.

A ‘revolução da centralidade’, unindo num só movimento reciprocamente determinado o adensamento do núcleo central de negócios e o espraiamento residencial suburbano, com a relativa compactação do pericentro residencial e a proliferação de subcentros, é, a meu juízo, o fenômeno geográfico / urbanístico que melhor define o advento da cidade capitalista por oposição às urbanizações precedentes. 

2024-11-10

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NOTAS

[1] STROHAECKER T M, “Atuação do Público e do Privado na Estruturação do Mercado de Terras de Porto Alegre (1890-1950)”. Scripta Nova - Revista Electrónica de Geografía Y Ciencias Sociales / Universidade de Barcelona, Vol. IX, núm. 194 (13), 1 de agosto de 2005.
http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-194-13.htm

[2] QUEIROZ RIBEIRO L C, Dos Cortiços aos Condomínios Fechados - As formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro, p. 32. Observatório das Metrópoles, 2015. Embora essa referência temporal permeie boa parte do texto, o Capítulo 5, especificamente, intitula-se “Transformações do parque imobiliário - 1870-1930”.

[3] LIMA BARRETO A H, Lima Barreto Completo I: Sátiras e Romances Completos. Edição do Kindle. 

[4] "Na esteira da redução da fricção do espaço, que bondes e trens proporcionavam, e do aumento da demanda por habitação, que o crescimento demográfico impunha, o retalhamento de terras se acelerou e a desconcentração urbana rapidamente se realizou, só que sob novas bases: transações com chácaras e lotes, antes realizadas principalmente em função de seu valor de uso, passaram a ser determinadas sobretudo pelo valor de troca. [ABREU M, “Cidade brasileira: 1870-1930”] [Destaque PJ]
https://pt.scribd.com/document/162723437/62

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Langton 1975: padrões residenciais urbanos na Inglaterra 1670-1750


LANGTON John, “Residential patterns in pre-industrial cities: some case studies from seventeenth-century Britain”. Transactions of the Institute of British Geographers No. 65 (Jul 1975), The Royal Geographical Society, pp. 1-27.
https://www.jstor.org/stable/621607


ABSTRACT

Newcastle 1745
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The models of pre-nineteenth-century cities formulated by Sjoberg and Vance are compared. The two writers postulated different kinds of social ecology because they based their deductions about spatial patterns upon different social structures, and this difference, in turn, resulted from their use of different economic variables as sociological determinants. An analysis of the hearth tax returns for three British cities, and of data produced by linking these returns with the admissions list of freemen in Newcastle, shows that neither of their models replicates what happened in these cities. In Newcastle, a merchant oligarchy existed, dominating a particular residential-cum-economic area, and the gild organization of crafts was reflected in the spatial zoning of occupational groups. Although some parts of Newcastle were occupationally mixed, this probably did not represent the emergence of ‘class zoning’.


In the literature of urban geography, little space is devoted to pre-nineteenth cities. When the subject is discussed it is usually treated with a bland lack of controversy: textbooks, and monographs and papers on historical and modern cities are alike in their exclusive and uncritical presentation of Sjoberg’s generalizations about what he termed the ‘pre-industrial city”1. The reasons for this situation are not, of course, hard to find. Until recently, this was the only set of generalizations available, and the continents in which much of the recent work in urban social geography has been done have no great fund of pre-nineteenth-century urban experience. The current preoccupation of urban social geographers with techniques of analysis which require large arrays of data, and with theories which link urbanism with industrialization or modernization, and thus define the pre-nineteenth-century city out of consideration, also contribute to this end. Moreover, the ease with which the processes which destroyed the ‘pre-industrial city’ can be thought of as synonymous with those which created the modern city has contributed to the development of the concept of ‘ecological transition’, and this fusion seems only to have bolstered the confidence of urban geographers in Sjoberg’s monolithic ideas about the nature of cities before the transition occurred.2 The result is a general agreement that urban society was segregated by wealth or status, with the rich and powerful living near to the centre and the poor and powerless on the periphery of cities before industrialization, or modernization. Afterwards, class-based segregation became manifest, and the social geography of cities, in terms of this two gross categories, was reversed. (..)

Acesse o artigo na íntegra pelo link (inscrição gratuita requerida)
https://www.jstor.org/stable/621607 

2024-11-06

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

M Abreu: A cidade brasileira 1870-1930

ABREU Maurício*, “Cidade brasileira: 1870-1930”
https://pt.scribd.com/document/162723437/62
(*) Departamento de Geografia, Universidade Federal do Rio de Janeiro


(..)

Mercantilização: a formação de um mercado urbano de terras

Imagem: http://www.mauricioabreu.com.br/

Foi entre 1870-1930 que os processos capitalistas modernos firmaram-se solidamente nas cidades brasileiras. A nível da produção de mercadorias, foi nessa fase que as relações sociais de base capitalista se difundiram, substituindo aquelas que vigoraram em tempos anteriores. A escravidão  urbana, já em decadência em meados do século XIX, esgotou-se rapidamente. O trabalho familiar ainda mostrou algum crescimento. Mas foram as relações de trabalho de tipo assalariado, capitaneadas pela  produção industrial e pelo setor de serviços urbanos, aquelas que mais se expandiram nas cidades, tornando-as cada vez mais diferentes do campo, onde relações pretéritas de produção e de trabalho  ainda mantiveram-se predominantes. 

Foi nas cidades, e nesse período, que se verificou também uma outra faceta do enraizamento acelerado do capitalismo moderno. Trata-se da emergência de um mercado urbano de terras, que se estruturou primeiramente nas cidades que sofriam forte pressão imigratória (notadamente Rio de Janeiro e São Paulo), difundindo-se depois pelo restante das áreas urbanas. Transações com terras e moradias tiveram lugar no Brasil desde o século XVI. O que ocorreu de novo no final do século XIX - e nas grandes cidades - foi que ambas transformaram-se rapidamente em ativo  financeiro. Na esteira da redução da fricção do espaço, que bondes e trens proporcionavam, e do aumento da demanda por habitação, que o crescimento demográfico impunha, o retalhamento de terras se acelerou e a desconcentração urbana rapidamente se realizou, só que sob novas bases: transações com chácaras e lotes, antes realizadas principalmente em função de seu valor de uso, passaram a ser determinadas sobretudo pelo valor de troca. E algo mais ocorreu. O retalhamento deixou de ser produto da ação isolada de um proprietário fundiário que dividia sua chácara em poucos lotes urbanos. Surgiu a promoção fundiária em grande escala, representada por empresas capitalistas dedicadas à produção e comercialização de lotes urbanos, em muitos casos em estreita associação com o capital bancário. 

Como resultado, grandes loteamentos surgiram na paisagem urbana, tanto para a burguesia em ascensão quanto para o proletariado em formação. Diferenciaram-se uns dos outros por sua localização no tecido urbano, já que as cidades maiores abandonaram de vez a estrutura urbana anterior e passaram a crescer segundo vetores de expansão distintos, separando usos e classes sociais no espaço. Diferenciaram-se também pelo produto oferecido, que passou a variar da alta qualidade dos bairros criados para os mais abastados, inspirados no modelo howardiano da cidade-jardim e grandemente beneficiados pelo Estado com infraestrutura, ao nada urbanístico oferecido nos loteamentos proletários. Agravou-se a partir daí o processo de acesso diferencial dos grupos sociais às benesses urbanas, o que exigiu que os mais mais pobres passassem a lutar cada vez mais para obter do poder público os benefícios que este, não raro antecipadamente, concedia aos bairros mais ricos. 

A estruturação do mercado capitalista da habitação não se limitou, entretanto, à grande promoção fundiária, ainda que tenha sido essa a direção preferencial tomada pelo grande capital imobiliário até 1930. O rápido crescimento demográfico ofereceu também condições para o surgimento de um capital imobiliário mais modesto, em alguns lugares associado ao capital industrial, que produziu boa parte do estoque de habitações construído nessa época, simbolizado por vilas, avenidas e correres de casas. 

Crise e superação do pensamento sobre as cidades: do higienismo ao sanitarismo
(..)

Acesse o texto integral pelo link
https://pt.scribd.com/document/162723437/62

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Jericoacoara tem dono?


Clique na imagem para ampliar
Este é, para mim, um daqueles casos judiciais insanos - como o do Aeroporto Tom Jobim, no Rio de Janeiro - que desnuda a propriedade privada da terra como resquício dos tempos feudais. 

Embora não seja capaz de demonstrá-lo, intuo a moderna propriedade privada da terra como uma espécie de fusão de todos os direitos econômicos feudais, que eram essencialmente renda em produtos agrícolas e suas projeções sobre os demais aspectos da vida, urbana inclusive, num único direito feudal assimilável à forma-mercadoria, portanto, às novas relações sociais de produção, mais tarde inserido como cláusula pétrea em todas as Constituições democráticas do planeta capitalista no pacote do direito de propriedade em geral.

Mesmo supondo-se que, numa época em que o capital usava fraldas e era ainda pouco produtivo, consequentemente muito escasso, a renda da terra possa ter desempenhado - como coletora de excedentes às necessidades de sobrevivência não das famílias trabalhadoras individualmente consideradas, mas do exército de reserva como um todo - certo papel na aceleração do ciclo da produção social, fato é que esse tempo já se foi há muito e a renda da terra, urbana principalmente, é hoje, como todos os preços excedentes aos preços de produção (petróleo, produtos de grife, patentes em geral, além das edificações), mero parasita da riqueza socialmente produzida, meio de lavagem de dinheiro sujo, com certeza, mas também do dinheiro limpo, vale dizer do oceano de títulos de dívida pública e privada que constitui boa parte das grandes fortunas do século XXI. 

Não por acaso, o mercado imobiliário urbano, consequentemente a renda da terra urbana, foi o olho do furacão especulativo que produziu a debacle financeira de 2007-8, provavelmente o acontecimento mais prenhe de significados do século XXI.

2024-10-25

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Obsolescência sui generis


Diário do Rio 28-09-2024
https://diariodorio.com/nem-os-mais-novos-escapam-construtora-derruba-predio-moderno-para-erguer-espigao-de-luxo-em-ipanema

Este exemplo mostra como a hipervalorização de certas localizações pode 'explodir' o efeito característico dos ciclos de obsolescência e renovação urbana dos bairros mais valorizados das cidades, que me ocorre chamar de obsolescência não-catastrófica’, ou relativa, de uma edificação por oposição às situações em que as receitas de aluguel das antigas moradias e comércios não cobrem o custos de manutenção do conjunto.

Em Icaraí, Niterói, como em Botafogo e Tijuca e tantos outros  bairros do Rio de Janeiro, inúmeras esquinas que já foram os lugares mais movimentados e valorizados do bairro, tornando-se por isso núcleos de comércio e serviços locais, conservam antigas edificações de 3 ou 4 pavimentos e uso misto encravadas entre novos condomínios residenciais de 10-15 pavimentos pelo simples fato de não ser economicamente viável demoli-los para renovação. A imagem abaixo é o edifício na esquina das Ruas 5 de Julho e Santa Rosa, no bairro Jardim Icaraí, Niterói.


Curioso é a matéria dizer que os preços dos terrenos em Ipanema são "exorbitantes", mas não os principescos 4o mil reais por metro quadrado de área privativa que os demandantes estariam dispostos a pagar na aquisição dos novos apartamentos. 

Como se 'uma coisa fosse uma coisa e outra coisa outra coisa'.

A propósito, vale citar uma passagem do livro Economía Urbana y Plusvalía del Suelo, do economista e avaliador colombiano Oscar Borrero:

(..) el precio del suelo urbano es un residuo del negocio de la construcción. El suelo no tiene un valor autónomo. Es un VALOR RESIDUAL del negocio. Los avaluadores aplican un método que denominam TÉCNICA RESIDUAL para obtener el posible valor de un lote urbano a partir de lo que allí se permite desarrollar, su precio de venta y los costes de construcción incluyendo la utilidad del promotor.* (Destaques do autor)

2024-10-26
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* BORRERO OCHOA Oscar, Economía Urbana y Plusvalía del Suelo. Bogotá, Bhandar Editores Ltda., 2018, p. 98 

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Turismo de 15 minutos


La Vanguardia 29-08-2024
https://www.lavanguardia.com/local/barcelona/20240829/9897677/barcelona-supera-tres-millones-pernoctaciones-mes.html



Um dos mais dramáticos capítulos do conflito economias vs. deseconomias nas grandes cidades europeias. 

As receitas do turismo de que nem a Espanha nem a Catalunha estão dispostas a abrir mão custam à população barcelonesa, por conta dos "apartamentos turísticos", os aluguéis médios mais caros de toda a Espanha.

Em consequência, suburbaniza-se, mais do que já é suburbanizada, a população trabalhadora e elitiza-se, mais do que já é elitizado, o acesso à “cidade de 15 minutos”.

2024-10-09

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Rio de Janeiro: Adeus aos PEUs?


Engenharia em Revista 30-09-2024
https://portalclubedeengenharia.org.br/artigo/plano-diretor-revoga-planos-de-estruturacao-urbana-dos-bairros-cariocas/

O Plano Diretor de Urbanismo de uma metrópole de mais de 6 milhões de habitantes, ocupando um território de 1.200 km2, profundamente diverso em todos os sentidos da palavra, não pode existir sem, pelo menos, uma dupla dimensão espacial: municipal e local - para não falar da metropolitana.

A revogação dos Planos de Estruturação Urbana (PEUS)
é uma insanidade, só compreensível no marco da ofensiva que vem sendo empreendida, em todas as grandes cidades brasileiras, pela indústria imobiliária, muitas vezes encoberta por generalidades sobre o adensamento urbano e a cidade de 15 minutos, em prol de sua máxima liberdade de ação, vale dizer da mínima regulação, ou até mesmo da não regulação urbanística.

Sinal inequívoco, creio, da generalização do “vale tudo por dinheiro” que estamos vivendo - haja vista a proliferação irrefreável dos negócios de apostas - e que, no urbanismo, se expressa como total liberdade na competição pela rentabilidade dos investimentos imobiliários. O objetivo é, nos nichos urbanos de valorização imobiliária, construir o máximo em cada terreno para extrair do empreendimento algum lucro de escala e o máximo em renda fundiária.

Como vamos sair desse buraco eu não sei, mas me ocorre que os Planos Diretores e os PEUS, assim como a “função social da propriedade" e seus derivados (outorga onerosa, IPTU progressivo etc), que lhe dão suporte, se tornaram institutos respeitados e amplamente aceitos como resultado do movimento social que desembocou na Assembleia Constituinte de 1988. Vale a pena lembrar. 

2024-10-02

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Mercado mundial, associação internacional


Wall Street Journal 21-08-2024
https://www.wsj.com/real-estate/luxury-homes/lisbon-golden-visa-fedca2a3

A principal característica do mercado imobiliário é a sua natureza não-competitiva, que se manifesta como preempção dos imóveis mais bem localizados, segundo o uso e a tipologia requerida, pelas maiores ofertas de preço (renda) de venda ou aluguel.

Uma vez aberto o mercado português aos demandantes de toda a Europa e, logo, do mundo inteiro, a primazia cabe aos endinheirados estrangeiros, sejam ou não moradores permanentes, e nacionais, incluídos os proprietários locais, em número cada vez menor, que podem tê-los como clientes. 

O peso do mercado imobiliário globalizado na formação e concentração da riqueza planetária torna a função social da propriedade, tão cara a nós, urbanistas, uma perspectiva cada vez mais problemática. 

Urge por isso a criação, por iniciativa dos movimentos diretamente envolvidos, que são muitos e bastante combativos em seus âmbitos locais, de uma Associação Internacional da Moradia Social.

2024-09-25

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

A renda da terra e a organização espacial urbana: notas

Esta matéria faz parte de uma investigação em andamento, por isso sujeita a acréscimos e correções periódicas. Última edição em 07-10-2024.

A renda da terra urbana é o mecanismo social e juridicamente consagrado de arbitragem da competição espacial entre os usuários do solo [1] [2]. 

Não é assim desde sempre, importa dizer, mas desde algum momento, ou etapa, do longo e complexo processo histórico de dissolução das instituições feudais / coloniais, e consequente adaptação das cidades existentes ao sistema capitalista de produção, comercialização e consumo de bens e serviços. Em muitos lugares, por certo, como o Meio-Oeste estadunidense, as cidades já nasceram 'capitalistas'.

Como árbitro da competição espacial urbana, a renda da terra é também, por definição, o melhor descritor de seus próprios resultados, que se apresentam como distribuição das principais categorias - comércio / serviços, residências, indústrias, agricultura - e subcategorias de uso do solo, e respectivas densidades, ao redor dos modernos hipercentro e subcentros urbanos.

Àbeiradourbanismo, cf. Abramo p. 81 (ver Nota 9) 
Não surpreende, pois, que, na ausência de uma teoria amplamente aceita da organização espacial urbana na sociedade capitalista, [2a] o modelo construído por William Alonso no início dos anos 1960 para sintetizar sua teoria do mercado de solo urbano [3] - aqui representado pela curva de mercado do tipo 'envelope', de imensa utilidade analítica e didática, é bom que se diga - tenha se tornado, por uma espécie de 'derivação de sentido', o paradigma científico da própria estrutura da cidade moderna a renda da terra adquirido o status de fundamento dessa ordem espacial.

Nasce um novo paradigma
Coube ao próprio William Alonso iniciar essa transposição, num interessantíssimo texto de maio de 1964 [4] em que alerta os defensores da revitalização em larga escala das áreas centrais obsolescentes de Nova York para o provável fracasso de seus planos por não levarem em conta a preferência da imensa maior parte da demanda residencial estadunidense pelos subúrbios - no que estava, a meu juízo, coberto de razão. 

Enveredando pelo terreno da epistemologia, Alonso afirma que aqueles planos se apoiam nas ideias de Haig 1926, Burgess / Park 1925 e Hoyt 1937 [5], todos defensores, segundo ele, de uma concepção insuficiente da dinâmica residencial urbana, que agrupa sob a rubrica de teoria histórica da forma urbana por basear-se na 'passagem do tempo', ou, talvez mais exatamente, nos ciclos da valorização imobiliária - obsolescência, expansão, filtragem, renovação etc. -, ao passo que ele, Alonso, é adepto de uma nova teoria da forma urbana, que define como estrutural porque, embora não exclua a importância relativa dos ciclos, parte do papel das preferências, custos e rendimentos das famílias e firmas demandantes de solo urbano na estruturação do mercado. Para Alonso, sua teoria explica a forma da cidade [an explanatory theory of urban form] de um modo estrutural porque consubstanciado nos preços do solo, vale dizer na renda fundiária urbana, síntese da competição espacial pelos distintos usos e densidades resultantes.

Outro claro indício dessa mudança de paradigma, e sua origem, é o clássico texto do geógrafo estadunidense J E Vance Jr, de 1971, sobre a adjudicação [assignment] do solo nas cidades pré-capitalista, capitalista e pós-capitalista [6], referência obrigatória nos esforços de investigação da estrutura sócio-espacial das cidades medievais no último quarto do século XX.

Nessa contribuição, em que a única fonte não propriamente histórica citada é, precisamente, William Alonso, Vance propõe que “o aproveitamento [treatment] da terra urbana como fonte de rendimentos privados, trazido na bagagem conceitual geral do sistema capitalista em seu desenvolvimento, transformou fundamentalmente a morfologia da cidade [medieval]”. Em outra passagem, afirma que “a ressignificação da posse da terra urbana, de condição necessária à prática de um ofício a fonte de rendimentos regulares [de uma nova classe de proprietários fundiários], é o traço distintivo da morfogênese da cidade capitalista”. 

Em suma, ao passo que para Alonso a renda da terra urbana é o fundamento da forma - leia-se estrutura, ou organização espacial - urbana [capitalista], para Vance é o seu advento que define a cidade capitalista como histórica e morfologicamente - leia-se estruturalmente - distinta da cidade medieval [feudal].

Discutindo o novo paradigma
Ora, assim como nenhum economista aceitaria a ideia de que os impostos sobre a produção e o comércio são o fundamento da economia de mercado, também o urbanista se pergunta como pode um ônus monetário privado sobre a vantagem de localizaçãocobrado por uma categoria  de agentes econômicos sem quaisquer vínculos de dependência espacial com os usuários do solo - não por acaso referidos na literatura como "proprietários ausentes" - ser o fundamento da ordem espacial urbana capitalista

A questão inescapável é: de onde vem e em que consiste a vantagem de localização? Como ela teria se manifestado para os distintos ocupantes do solo nas etapas formativas das cidades capitalistas, quando rendimentos significativamente excedentes às necessidades básicas de consumo das famílias eram - ao contrário dos Estados Unidos da década de 1960 - privilégio de uma ínfima minoria da sociedade, ao passo que os da imensa maioria eram disputados centavo a centavo com as despesas de transporte e renda de aluguel?

Com apurado senso crítico, o hoje professor Correia da Silva, da Universidade do Porto, apontou, num trabalho de doutoramento do ano de 2004, o calcanhar de aquiles do modelo de Alonso: assumir como dado aquilo que, do ponto de vista da estrutura da cidade moderna, era preciso explicar: a existência mesma do centro comercial urbano. [7]

Com efeito, no modelo de Alonso o centro urbano é um objeto apriorístico, representado por um ponto sem dimensão que contém todos os empregos da cidade e comanda a maior oferta de renda por m2 de solo, parâmetro para todas as demais. [8] Curiosamente, nos termos do próprio modelo, famílias e firmas competem individualmente pela máxima proximidade do centro, as famílias para estar perto das fontes de emprego e as firmas para estar perto... de si mesmas (!) - dado que o centro não é outra coisa que o aglomerado das firmas. 

Pode - cabe indagar - uma teoria explicativa da estrutura urbana contemporânea, ainda que diluída no conceito um tanto vago de “forma urbana”, não explicar a gênese do moderno centro de negócios? E, retornando à dicotomia epistemológica de Alonso, como explicar a gênese do centro comercial urbano capitalista senão com uma teoria que seja ao mesmo tempo estrutural e histórica?

A noção auto-evidente, na ciência da economia espacial, de que as firmas buscam a máxima proximidade do centro 'para maximizar os lucros' [9] contém dentro de si, não sabemos se despercebido ou conscientemente omitido, o fato geográfico capital de que o lugar da rede urbana que mais convém ao comércio / serviços de varejo e pequena indústria é aquele que minimiza o custo agregado, direto e indireto, de deslocamento da população residente para encontrar meios de vida (mercadorias, serviços e empregos) e, por isso mesmo, maximiza o poder de compra da coletividade, em quantidade e velocidade, consequentemente as vendas e os lucros

Assim se manifesta e generaliza, no âmbito da cidade, o princípio do decréscimo da procura causado pelo custo do deslocamento ao lugar central, enunciado por Christaller em 1933 no âmbito de sua Teoria dos Lugares Centrais, [10] mas sistematicamente ignorado, nos trabalhos de economia espacial, em favor da versão urbana do trade-off thuneniano entre o custo de transporte e a renda agrícola.

Reitero a esta altura a hipótese, já apresentada em outras publicações deste blog, de que a aglomeração no ponto da rede urbana mais acessível às famílias é, para o comércio / serviços de varejo e pequena indústria, desde os primórdios da urbanização capitalista, uma necessidade tanto mais crítica quanto mais acirrada é a competição com os proprietários fundiários pelo excedente dos gastos de consumo e deslocamentos das famílias, continuamente gerado, ainda que em pequeníssima escala para cada uma no caso das famílias trabalhadoras, pelo crescimento econômico, impulsionado no sistema concorrencial pelo aumento da força produtiva do trabalho e consequente barateamento relativo dos produtos da agricultura e da indústria.

Como esboçou o economista-avaliador Richard Hurd em seu livro pioneiro da organização espacial urbana (1903), cada família urbana precisa, para poupar tempo e dinheiro, estar o mais perto possível dos fornecedores de bens e serviços (que são também demandantes de força de trabalho), e a cada fornecedor convém, para maximizar suas vendas, estar no lugar mais acessível ao conjunto das famílias residentes. 

Em face do centro apriorístico de Alonso, é significativo que Hurd, para quem o centro de negócios e a periferia residencial são categorias espaciais economicamente interdependentes e reciprocamente determinadas - na forma do "crescimento urbano central e axial a partir do ponto de origem" -, declare enfaticamente, 60 anos antes, que “o mais importante movimento gerado no processo de crescimento de uma cidade é, provavelmente, a aglomeração dos distintos tipos de negócio em núcleos especializados” - vale dizer a formação do centro urbano contemporâneo. [11] 

Vantagem adicional não menos importante para as firmas, sua aglomeração à mínima distância agregada das famílias passou a representar, com o crescimento econômico, um fator de estabilização do custo da força de trabalho, tanto mais crítico quanto mais a expansão irrefreável das cidades empurrava os trabalhadores para a periferia distante - donde a generalização dos subsídios governamentais aos transportes urbanos.

Uma hipótese alternativa
Deduzo, do aqui exposto, que a força motriz da estruturação do espaço urbano capitalista não é a renda da terra (Alonso 1964), tampouco o ‘custo de atrito’ (renda da terra + transportes) (Haig 1926), mas o próprio mercado de bens de consumo, serviços e força de trabalho, para cujos agentes quaisquer ‘custos de atrito’ representam perdas a serem, o mais possível, evitadas. Não por outra razão, creio, Haig formulou, sem desenvolvê-la - e sem tirar as conclusões necessárias -, a ideia de que a cidade mais bem-planejada seria aquela que lograsse minimizar o custo de atrito.

Dito de outra forma, o fundamento da moderna espacialidade urbana não é a preempção locacional, com base na oferta de renda, de consumidores individuais de solo-localização em busca da 'máxima satisfação' [12] representada pelas vantagens da proximidade do centro, mas a compra-venda generalizada de bens, serviços e força de trabalho com o mínimo desperdício de recursos, isto é, com compradores e vendedores, sejam firmas ou famílias, situados à menor distância-custo uns dos outros.

Da competição espacial resultante, regulada pela interdependência econômico-espacial dos usos e arbitrada pela renda do solo, teriam surgido, no ponto mais acessível da rede urbana existente, geralmente situado nas imediações do marco fundacional da cidade, o aglomerado de negócios e, ao seu redor, ao longo dos eixos radiais e respectivos setores circulares, o aglomerado das famílias residentes - tendente à dispersão proporcional à distância ao centro da rede -, mais tarde rebatizados, com propriedade, centro e periferia, com suas respectivas diferenciações em termos de classes de rendimento familiar no caso das periferias residenciais e tipologias de negócios no caso do centro e sub-centros comerciais.

Registre-se aqui que a localização da grande indústria não é um fator determinante da estrutura espacial da cidade capitalista. Ao passo que a relação fundamental entre o centro de negócios e a periferia residencial é essencialmente inalterável, a localização da grande indústria, e com ela, naturalmente, a do proletariado fabril e das atividades empresariais de apoio, tem uma movimentada história de ciclos temporais determinados, principalmente, pelas fontes de energia aplicadas aos instrumentos de trabalho [13] e pelas tecnologias e redes de transportes de insumos, produtos e passageiros. [14] Do ponto de vista da grande indústria, coração pulsante do modo de produção capitalista, a relação locacional fundamental é, também, aquela entre as famílias e o comércio / serviços de varejo, determinante para a quantidade e velocidade das vendas que lhe asseguram a realização dos lucros.

É assim que, embora gerada pelas necessidades individuais das firmas e famílias, a dinâmica expansiva tendencialmente radioconcêntrica da cidade capitalista veio a se cristalizar como dispositivo espacial facilitador e acelerador do processo de acumulação do capital em geral, uma poderosa ‘máquina de economia social’ a seu serviço, capaz de sobreviver, nessa mesma medida, às enormes deseconomias geradas pelo crescimento incontrolável das metrópoles.

Conclusão
Ainda que indiscutivelmente eficaz para os propósitos com que foi concebida, vale dizer como síntese do funcionamento do mercado urbano de solo-localização e ferramenta para a sua análise, notadamente quanto ao uso residencial, a teoria de William Alonso, por partir de um centro comercial urbano dado, não pode ser considerada explicativa da organização espacial da cidade capitalista num sentido estrutural, para o quê ela deveria ser também histórica: é preciso explicar a gênese do centro comercial urbano, consequentemente da matriz espacial radioconcêntrica, que inexistia ou, no melhor dos casos, era apenas embrionária nas cidades pré-capitalistas medievais e coloniais.

Para o estudioso da estrutura espacial da cidade capitalista, a história de sua centralidade é um tema obrigatório - e fascinante.

2024-08-14

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NOTAS

[1] "Em geral, a base da distribuição dos usos comerciais é puramente econômica: a terra é arrematada pela maior oferta e o ofertante aquele que pode obter dela o maior ganho. Observe-se que quanto melhor a localização maior a quantidade de usos que ela pode ter, consequentemente a maior a quantidade de ofertantes. A base do valor da terra de uso residencial, por sua vez, é social, não econômica – ainda que também arrematada pela maior oferta: os ricos escolhem as localizações que mais lhes agradam, os de rendimentos médios procuram estar o mais perto deles que consigam, e assim por diante na escala de riqueza, ficando os trabalhadores mais pobres nas piores localizações, como as adjacências de fábricas, ferrovias, docas etc., ou longe da cidade." HURD R M, Principles of City Land Values. New York: Record and Guide, 1903, pp. 77-8. [Tradução PJ]
https://archive.org/.../principlesofcity.../page/n4/mode/1up

[2] “A competição entre pretendentes com diferentes funções de oferta de renda define os padrões de uso do solo, correspondendo o aproveitamento econômico da terra ao seu maior e melhor uso. Este conceito, baseado na técnica da avaliação imobiliária, postula simplesmente que a atividade que extraia o maior benefício de uma dada localização é aquela que provavelmente fará por ela a maior oferta de renda. (..) Enquanto houver um uso superior competindo pela localização, o proprietário receberá uma oferta maior pelo terreno. Quando cessarem as ofertas, o terreno terá alcançado o seu 'maior e melhor uso'."  SMOLKA O e GOYTIA C, “Land Markets”, em The Wiley Blackwell Encyclopedia of Urban and Regional Studies 15-04-2019, Wiley Online Library. [Tradução PJ ]
https://doi.org/10.1002/9781118568446.eurs0176

[2a] Até então, o indiscutível paradigma científico e acadêmico da moderna organização espacial urbana era a série histórica dos três modelos de estrutura urbana proposta por Harris e Ullman em 1945: Círculos Concêntricos/Burgess 1925, Setores Radiais/Hoyt 1939 e Núcleos Múltiplos/Harris e Ullman 1945, sobre os quais assim se pronunciou o economista regional H Richardson em 1969: "Esses três conceitos de estrutura urbana não são diametralmente opostos uns aos outros. Cada conceito provavelmente tem alguma importância para explicar a estrutura de qualquer cidade. (..) As mesmas concepções teóricas gerais, como a tentativa de minimizar os custos de atrito tomada como princípio organizacional, são aplicáveis em graus variáveis a todas as três concepções da estrutura de uma cidade." RICHARDSON H W (1969), Economia Regional - Teoria da Localização, Estrutura Urbana e Crescimento Regional. Rio de Janeiro: Zahar 1975

[3] ALONSO W, Location and land use; toward a general theory of land rent. Cambridge: Harvard University Press, 1964.

[4] ALONSO W, “The Historic and the Structural Theories of Urban Form: Their Implications for Urban Renewal”. Land Economics Vol. 40, No.2 (May, 1964), pp. 227-231. University of Wisconsin Press.
https://docs.google.com/document/d/1-bHp274ABR8iKw3TvP4Et2Z6YOpjQbOq1ppaSC4mczk/edit?usp=sharing

[5] HAIG R, “Toward an Understanding of the Metropolis”, Quarterly Journal of Economics, May 1926; BURGESS E W, “The Growth of the City”, em The City, R. E. Park and E. W. Burgess (Eds.),Chicago, Illinois: University of Chicago Press, 1925; HOYT H, The Structure and Growth of Residential Neighborhoods in American Cities. Washington D.C.: Federal Housing Administration, 1937, p. 116.

[6] VANCE Jr J E (1971), “Land assignment in pre-capitalist, capitalist and post-capitalist cities”. Economic Geography 47, 101-20.
https://docs.google.com/document/d/1hY5wr5SMbC34ni3Cs9jlKGrpKEiFyfUd/edit?usp=sharing&ouid=115443038285423072431&rtpof=true&sd=true

[7] "A relevância contemporânea do modelo de Von Thunen reside na sua adaptação à economia urbana, que permitiu o estudo da renda urbana e suburbana e da localização das famílias e atividades econômicas nas cidades. (..) A característica fundamental da economia urbana refletida no modelo é a necessidade que têm as famílias de ir ao centro para trabalhar usando um sistema radial de transportes. (..) Uma falha [fault] dessa abordagem é pressupor [it assumes] algo que está por ser explicado [we want to explain]: a existência do centro comercial urbano [urban central market]." CORREIA da SILVA J (2004), "Space in Economics — A Historical Perspective". [Tradução PJ]
https://www.fep.up.pt/docentes/joao/material/space.pdf

[8] "(..) Very briefly, the method consists of assuming a price of land in the center of the city, and determining the prices at all other locations by the competitive bidding of the potential users of land in relation to this price." ALONSO W (1960), “A Theory of the Urban Land Market”, em Papers and Proceedings of the Regional Science Association, Vol 6, 1960

[9] Cf. ABRAMO P, "1.5 O equilíbrio dos três mercados de Alonso: a ordem espacial de Von Thunen ampliada", em Mercado e Ordem Urbana - Do Caos à Teoria da Localização Residencial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil 2001, pp. 65-82. 

[10] [BRADFORD M G e KENT W A, Geografia Humana e Suas Aplicações (Tradução do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Supervisão de Raquel Soeiro de Brito e Paula Bordalo Lema)
https://www2.ufjf.br/nugea//files/2014/09/Bradford-e-Kent_Teoria-dos-lugares-centrais-1.pdf

[11] “(..) Probably the most important movement within a city as it grows is the gathering together of those carrying on the same kind of business into special districts. (..) The chief attracting power of such a retail section seems to be the insurance to customers against failure to find within the section what they seek. Undoubtedly the selection within this special district is normally better than that in all the rest of the city combined, and shoppers are saved the time, trouble and uncertainty of seeking through scattered shops. While one shop may attract a customer and another make the sale, such an interchange of customers is probably in the long run closely balanced.(..) Formerly it was held that the further a retail store was removed from a competitor the better, but this has been found to hold true only of those small stores which depend for business on the immediate neighborhood. (..)” HURD R M, "Chapter VI - Distribution of utilities", em Principles of City Land Values, New York: Record and Guide, 1903
[12] Concepção marcadamente ideológica, característica da economia neoclássica, popularizada por Margareth Thatcher em 1987 com a fala: "(..) Mas, o que é a sociedade? Não existe essa coisa. O que existe são homens e mulheres, indivíduos e famílias (..). Essa coisa de sociedade não existe". O Globo 11-04-2013, por D Magnoli.
https://oglobo.globo.com/opiniao/essa-coisa-de-sociedade-nao-existe-8080595

[13] "La manufactura del metal y de la pequeña siderurgia estaban muy ligadas a sus emplazamientos, ya que precisaban la energía hidráulica para el funcionamiento de las fraguas y las forjas; por ello no podían prescindir, sin más, del campo como emplazamiento de la producción de mercancías manufacturadas." [KRIEDTE P, “La ciudad en el proceso de protoindustrialización europea". Manuscrits: Revista d’història moderna No. 4-5, 1987, p. 176] 

[14] "As soon [the coal] became a principal raw material of industry - replacing water power in textiles after 1780 for instance - it tended to concentrate industry where supplies could ber made available: on the coalfields themselves, and then adjacent to bulk transport (..) only canals". [HALL P, Urban and Regional Planning. Londres: Routledge 1992, p. 14.]
    

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Mercado e plano, para variar


O Globo 29-07-2024
https://oglobo.globo.com/blogs/capital/post/2024/07/a-nova-tendencia-imobiliaria-poucos-metros-muitos-investidores.ghtml

Se você tem dúvida de que os mercados de bens imóveis e serviços urbanos são a força motriz da construção da cidade e o planejamento urbano o fator subordinado - que, como escreveu Benevolo no já longínquo ano de 1963, "aparece, de modo geral, com atraso relativamente aos acontecimentos que tem por missão controlar e guarda um caráter curativo" [1] -, considere a notícia ao lado.

Nada menos do que 1,9 bilhão de reais serão investidos este ano, nas regiões centrais e pericentrais da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, em aquisição de "quitinetes gourmetizadas" para fins de aluguel por temporada.

Como de praxe, a notícia é dada em tons ufanistas e sem qualquer menção ao déficit habitacional na RMRJ, estimado pela Fundação João Pinheiro em 410 mil domicílios. [2] O que reflete, independentemente do contexto, o fato sobejamente conhecido de que o "mercado" está pouco se lixando para o problema da moradia da população urbana.

E como se fosse pouco, 99,99% do farto noticiário sobre o mercado de imóveis que o Google me manda todos os dias se refere a uma dimensão mágica do mundo da economia concorrencial onde os preços relativos sempre sobem e inexistem a crise climática e a emergência ambiental. 

Por isso eu insisto: o planejamento urbano será tanto mais relevante e eficaz quanto mais clara seja, na cabeça dos planejadores e na política das instituições de planejamento, a consciência de suas limitações - que podem, com certeza, ser maiores ou menores a depender dos ciclos econômicos e das conjunturas políticas. 

Imaginar, porém, em nossa sociedade, o planejamento urbano no comando da construção das cidades, ou fazer de conta que o problema não existe, mais parece flerte com o autoengano.

2024-08-07

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[1] BENEVOLO L (1963), Aux Sources de l'urbanisme moderne. Horizons de France 1972, p. 5
[2] “Estudo mostra que déficit habitacional no Rio é o maior dos últimos anos: mais de meio milhão de moradias”. O Globo 15-05-2024, por Carmelio Dias.
https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/05/15/estudo-mostra-que-deficit-habitacional-no-rio-e-o-maior-dos-ultimos-anos-mais-de-meio-milhao-de-moradias.ghtml

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Preços em alta, como [quase] sempre


The Economist 16-06-2024
https://www.economist.com/finance-and-economics/2024/06/16/why-house-prices-are-surging-once-again

In America, Australia and parts of Europe, property markets have shrugged off higher interest rates
O artigo acima projeta um novo ciclo de aumentos de preços imobiliários em países do mundo dito ‘desenvolvido’, com base em causas que eu diria essencialmente conjunturais. Mas que dizer das causas ‘estruturais”?

Num valioso texto produzido para os cursos do Lincoln Institute of Land Policy, já divulgado neste blog, o economista e avaliador colombiano Oscar Borrero assim resume o que chama de comportamento “estrutural” dos preços da terra urbana, por oposição ao “cíclico”: 

“(..) la tierra urbana siempre se valoriza, es decir crece por encima de la inflación. Es la resultante de las leyes de oferta y demanda. (..) ante una demanda creciente [(a) crecimiento económico de la ciudad: industria, comercio, servicios, etc. y (b) El aumento poblacional vegetativo y migratorio] y una oferta escasa [la única manera de aumentar la oferta es incrementar los perímetros de las ciudades], los precios suben en términos reales, es decir por encima de la inflación. Lo cual da como resultado la valorización continua de los terrenos urbanos.” [1] 

Considerando que a população e a economia urbanas continuam a crescer concentradas em uma quantidade limitada de megalópoles planetárias, parece-me razoável supor que o preço relativo das localizações centrais e pericentrais - tanto mais escassas quanto mais se expande “o perímetro das cidades”, vale dizer a área de influência dos centros urbanos principais - continue também crescendo, como ensina Borrero, a despeito da descentralização relativa e desigual imposta pelo trabalho a distância.

Chama também a atenção que a matéria traga o subtítulo “nos EUA, Austrália e partes da Europa, o mercado imobiliário ignorou a elevação das taxas de juros” - uma característica típica do mercado chamado ‘de alto padrão’. Mesmo não sendo economista nem avaliador, eu me aventuro a sugerir um fator estrutural não considerado por Borrero e, aliás, nunca mencionado em publicações da imprensa especializada - a persistente concentração dos rendimentos e do patrimônio, que faz do mercado imobiliário de alto padrão uma espécie de ‘círculo virtuoso’:

“(..) a irrefreável concentração de riqueza que marca a economia do século XXI tem o dom de retroalimentar a espiral de valorização dos imóveis mais luxuosos e bem localizados mesmo em um cenário global de baixo crescimento, estagnação dos salários e precarização do trabalho. (..) quanto mais renda concentram os ricos do mundo inteiro, mais se dispõem a pagar por imóveis de alto padrão em Nova York, Los Angeles, Miami, Londres, Paris, Hong Kong, Dubai, Vancouver, Sydney, Lisboa, São Paulo e Rio de Janeiro, na expectativa razoável de que não faltará quem lhes cubra a parada a qualquer momento em que queiram vendê-los” [2]

E para além do comportamento estrutural dos preços, teríamos aqui também um forte componente do que Borrero chama de ‘comportamento cíclico’:

“(..) La tierra es un recurso escaso y su mercado está interrelacionado directamente con el mercado de la construcción, por tanto su comportamiento no escapa los ciclos económicos y de la edificación; de hecho sigue muy de cerca los ciclos de la construcción y estos a su vez los de la economía. (..)”

A combinação dos comportamentos estrutural e cíclico dos preços imobiliários pode ser observada nos gráficos abaixo, do S&P / Case-Shiller Home Price Index, para dois intervalos temporais diferentes. Nos EUA, o índice de preços tem forte queda com a Grande Recessão de 2008, mas as linhas de tendência 1991-2017 e 200o-2023 são inequivocamente ascendentes (clique nas imagens para ampliar).



2024-07-17

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[1] BORRERO Oscar, “Formación de los precios del suelo urbano”. Lincoln Institute of Land Policy, EAD, s/ data.
https://drive.google.com/file/d/12719bJhO6ztK8uQ2cj6MhJzEwVuiH6Vv/view?usp=sharing

[2] “Círculo Virtuoso II". À beira do urbanismo 10-12-2017, por Pedro Jorgensen  https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2017/12/circulo-virtuoso-ii.html.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Faroeste caboclo

 


A primeira cidade-satélite de Brasília começou com a tomada de posse de um terreno perto da entrada da Cidade Livre. Já descrevi as causas de tais ocupações. Chegaram a um auge nas primeiras semanas de junho de 1958, quando, em poucos dias, entre 4 mil e 5 mil flagelados da seca do Nordeste chegaram à Cidade Livre em busca de trabalho. A Novacap ordenou às forças de segurança (o GEB) que levantassem barreiras na estrada para impedi-los de entrar. Em vez de irem embora - como se tivessem algum lugar para onde ir -, esses migrantes desesperados iniciaram uma ocupação de terra, montando um acampamento improvisado do outro lado da barreira. (HOLSTON, James. A Cidade Modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. Tradução Marcelo Coelho, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.)
https://cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=77&

Taguatinga desenvolveu-se especialmente em função do comércio e dos empregos que sua população obtinha. Tornou-se um importante centro comercial dentro do Distrito Federal e polo de atração para a população das cidades próximas, abrigando shopping centers de grande porte. Taguatinga, atualmente, é uma das regiões mais ricas do Distrito Federal, sendo considerada a capital econômica do Distrito Federal. (WIKIPEDIA, “Taguatinga (Distrito Federal)”, 29-03-2024.) 
https://pt.wikipedia.org/wiki/Taguatinga_(Distrito_Federal

A apuração dos motivos de Taguatinga, dentre todas  as cidades-satélites, ter se tornado "a capital econômica do Distrito Federal" demanda algum tempo de leituras e outro tanto de reflexão. Talvez por ter sido a primeira, talvez não. 

As imagens do Google Map parecem confirmar o verbete da Wikipedia: Taguatinga, criada como loteamento imposto 'na marra' pelos retirantes alojados na periferia da novíssima capital da República, hoje concentra boa parte do mercado não subsidiado de apartamentos novos do DF, de classe média e média-alta por definição.

Focado no nascimento das metrópoles capitalistas no Brasil (1870-1930), deixei Brasília para estudar depois. Mas a celeuma em torno do novo Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília – PPCUB não está nem aí para a minha agenda: ela coloca na ordem do dia do urbanismo brasiliense e brasileiro a relação entre o plano de urbanismo e a urbanização de mercado.

Não posso nem pretendo opinar sobre o PPCUB, mas temo que a indulgência histórica da nossa profissão com a alienação constitutiva do urbanismo modernista em face da urbanização de mercado nos deixa de calça curta para enfrentar a questão - o que dá certa vantagem aos  especuladores imobiliários, cada vez mais bem servidos de advogados treinados na defesa da liberdade de mercado em nome das “cidades sustentáveis e inclusivas". O melhor exemplo, como de hábito, vem da Caos Planejado:

“Brasília precisa superar o planejamento urbano do século 20, pensado para automóveis, com a criação de bolsões de estacionamento, viadutos e segregação de usos, e começar a se adequar ao planejamento urbano do presente, pensado nas pessoas, com a criação de praças de qualidade, ciclovias, setores de uso misto e ruas caminháveis. Esse é o modelo de cidades inovadoras e de sucesso que atraem investimentos, prosperam e promovem a qualidade de vida de toda a população, não de apenas uma parte dela.” “Preservar o urbanismo de Brasília: as escolhas e seus preços”. Caos Planejado 27-06-2024, por Thiago Caldeira.  
https://caosplanejado.com/preservar-o-urbanismo-de-brasilia-as-escolhas-e-seus-precos/

Alega o articulista que a área metropolitana de Brasília recebe cerca de 45 mil novos habitantes por ano e se pergunta: onde essa nova população vai morar se "não há oferta de moradia crescendo nessa velocidade no Plano Piloto, que é limitado pelo tombamento"? Em defesa do adensamento central reiteradamente patrocinado pela Caos Planejado e adotado pelo PPCUB, ele mesmo responde, consternado: "nas áreas mais distantes, onde são maiores os desafios da mobilidade urbana!"

Contudo, digo eu, se nos lotes do Trecho 4 do Setor de Clubes Esportivos Sul (SCES) liberados pelo PPCUB para a construção de 9 mil apartamentos caberão 27 mil pessoas - suficientes para fazer saltar o valor dos terrenos de R$150 milhões para R$1,4 bilhão em benefício, dentre outros, do presidente da Associação de Empresas do Mercado Imobiliário do Distrito Federal (ADEMI-DF) [*] -, a pergunta continua sendo onde vão morar os demais 423 mil novos habitantes da área metropolitana de Brasília nos próximos 10 anos, senão "nas áreas mais distantes, onde são maiores os desafios da mobilidade urbana"? 

Como farão os nossos paladinos do "planejamento urbano do presente, pensado nas pessoas, com a criação de praças de qualidade, ciclovias, setores de uso misto e ruas caminháveis" para "promover a qualidade de vida de toda a população [450 mil novos habitantes], não de apenas uma parte dela [27 mil habitantes]"? 

Eu respondo: considerando a realidade da pirâmide social brasileira e a maneira como o mercado aloca os demandantes de terra-localização nas metrópoles de todo o mundo - lição sintetizada pelo insuspeito William Alonso em 1964 [**] -, a imensa maior parte dessa nova população, com ou sem o PPCUB, não terá escolha e pagará o preço que sua antecessora já paga há muito tempo: residir na periferia mais ou menos distante e enfrentar diariamente "o desafio da mobilidade". 

E ainda que o PPCUB privatizasse boa parte da área pública do Plano Piloto, a imensa maior parte da terra só seria liberada a conta-gotas, para pagadores de rendas compatíveis com as expectativas dos especuladores.

Em suma, o "modelo de cidades inovadoras e de sucesso que atraem investimentos, prosperam e promovem a qualidade de vida de toda a população, não de apenas uma parte dela” de que fala nosso articulista é, no Brasil, no melhor dos casos miragem, no pior charlatanismo. Oportunismo, com certeza.

Dado o estatuto histórico-cultural do Plano Piloto, parece-me evidente que especular com o seu adensamento não é um ponto de partida sério para o planejamento da expansão de Brasília. As cidades-satélites, seus subcentros, periferias e redes de conexões recíprocas e com o Plano Piloto é o objeto a ser trabalhado, inclusive do ponto de vista da urbanização de mercado.
 
2024-07-10


PS: Esta matéria do Metrópoles de 10-07-2024 mostra que o plano de adensamento do Plano Piloto aprovado pelo PPCUB é muito mais ambicioso do que eu supunha. Caso ele seja mantido, eu sugiro um experimento: observar, ao longo da próxima década, que proporção dessas terras serão destinadas pelos empreendedores ao atendimento da demanda estimada dos 45 mil / ano novos habitantes da metrópole.      
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[*] “PPCub: Lago será cercado por 9 mil apartamentos com até 27 mil moradores - O novo bairro às margens do Lago Paranoá e a poucos metros do Palácio da Alvorada equivalerá a 12 superquadras”. Metrópoles 26-06-2024, por Isadora Teixeira 

[**] ALONSO W (1964), Location and land use. Cambrigde, MA: Harvard University Press