quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Andando em círculos

Jornal da USP 14-10-2025
https://jornal.usp.br/diversidade/pesquisa-destaca-o-papel-do-estado-na-precarizacao-da-vida-urbana-do-extremo-da-zona-leste-de-sao-paulo/

“Uma pesquisa de mestrado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP mostra como o governo pode atuar na precarização da vida urbana. O estudo intitulado Assalto à mão letrada: o papel do planejamento urbano na produção e reprodução da periferia no extremo leste da cidade de São Paulo, demonstra como a consolidação das periferias resulta de uma “ausência pensada” do Estado, que fez disso uma escolha de planejamento urbano para a região. O estudo contradiz uma pesquisa do Datafolha, de 2016, que apontou que 70% dos paulistanos acreditavam que as periferias deveriam receber mais investimentos públicos, indicando possível omissão governamental nessas áreas.

Segundo Jhonny Bezerra Torres, autor da pesquisa, a exclusão socioespacial de bairros na zona leste ocorre, principalmente, por meio da articulação entre transporte de massa e investimentos em habitação de interesse social em locais distantes da cidade formal, como é o caso dos conjuntos habitacionais criados em Itaquera. Um exemplo foi a criação do Expresso Leste, conhecido como Linha 11-Coral da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e a construção de moradias sociais na região pela Companhia de Habitação Popular (Cohab). “A integração entre moradia e transporte distante do centro, longe de solucionar a questão habitacional na cidade, aprofundou a segregação socioespacial ao reforçar a lógica de marginalização da população mais pobre em áreas distantes do centro da cidade e, assim, de equipamentos urbanos”, ressalta o pesquisador. (..)”


*

Tenho para mim que estamos andando em círculos na questão da estrutura espacial urbana, agora com uma leva de trabalhos [1] baseados, ao que parece, na tese pikettiana de que a desigualdade social é uma escolha ideológica e política, transposta para o espaço urbano por Raquel Rolnik em seu livro São Paulo: O Planejamento da Desigualdade. Ali é dito: [todos os destaques PJ]

“(..) por meio de leis que definem um modo de construir que corresponde clara e exclusivamente a um segmento social, garantiu-se ao longo da história da cidade que os espaços com melhor qualidade urbanística fossem destinados a esses grupos, apesar da imensa pressão representada permanentemente pelo crescimento populacional das massas imigrantes. Nesse episódio se esboça o fundamento de uma geografia social da cidade, da qual até hoje não se conseguiu escapar. (..)” [1]

Numa entrevista concedida ao CBN Estudio 
em 24-01-2022, a propósito do livro, a autora sintetiza:

“(..) a divisão entre centro e periferias, não surgiram espontaneamente, mas foram resultado de decisões de política urbana". [2]

Aqui, o autor da tese relativiza a proposição de Rolnik dizendo que “a consolidação das periferias resulta de uma “ausência pensada” do Estado” e que “a integração entre moradia e transporte distante do centro, longe de solucionar a questão habitacional na cidade, aprofundou a segregação socioespacial ao reforçar a lógica de marginalização da população mais pobre em áreas distantes do centro da cidade e, assim, de equipamentos urbanos”. [destaques PJ]

Ora, se a “ausência pensada do Estado” consolida as periferias e “reforça a lógica da marginalização da população mais pobre em áreas distantes do centro da cidade”, é porque tanto as periferias quanto a lógica que governa a sua formação preexistem à presença do Estado provedor, e independem dela.

As perguntas inevitáveis são: como se formaram as periferias urbanas que o Estado contemporâneo trata de “consolidar” com sua “ausência pensada”? Em que consiste a “lógica da marginalização da população mais pobre em áreas distantes do centro da cidade”?

Considerando que o paradigma da organização espacial urbana é, desde a década de 1960, o modelo alonso-thuneniano da distribuição dos usos e densidades ao redor do Centro urbano com base na oferta de renda pela terra-localização, portanto uma estrutura centro-periférica com base da desigualdade de poder aquisitivo, seria de bom alvitre que essa vertente acadêmica se propusesse a demonstrar que o modelo de Alonso está equivocado ou, alternativamente, de que maneira os responsáveis pelo planejamento urbano poderiam anular os efeitos da "lógica" da economia de mercado numa sociedade baseada na economia de mercado.


2025-10-29

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NOTAS

[1] Ver também ALMEIDA R C, MOREIRA M e GRANDI M, “Favelas e Estado: por que a informalidade urbana é parte do planejamento de muitas cidades, e não uma falha”. The Conversation 08-10-2025
https://theconversation.com/favelas-e-estado-por-que-a-informalidade-urbana-e-parte-do-planejamento-de-muitas-cidades-e-nao-uma-falha-265339


[3] ROLNIK Raquel, São Paulo: o planejamento da desigualdade. Fósforo. Edição do Kindle, p. 29.