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quarta-feira, 13 de março de 2024

A estrutura urbana de Manchester 1845, segundo F Engels


ENGELS F, “As grandes cidades” (2a parte - Manchester). Em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra pp 87-116. São Paulo: Boitempo 2008

https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4662435/mod_resource/content/1/ENGELS.pdf 


(..) Mas já dissemos o bastante sobre essas cidades menores. Todas têm suas peculiaridades; nelas, porém, os operários vivem como em Manchester. Por isso, limitei-me a descrever o aspecto particular de sua estrutura; de fato, todas as observações gerais sobre a situação das moradias operárias de Manchester cabem perfeitamente à totalidade das cidades vizinhas. Passemos, pois, ao grande centro.

Manchester situa-se no sopé meridional de uma cadeia de montanhas que, partindo de Oldham, corta os vales do Irwell e do Medlock e cujo último cume, o Kersall-Moor, é, ao mesmo tempo, o hipódromo e o mons sacer de Manchester. A cidade propriamente dita encontra-se na margem esquerda do Irwell, entre esse rio e dois outros menores, o Irk e o Medlock, que aqui nele deságuam. Na margem direita do Irwell, encerrada numa espécie de anel formado pelo rio, está Salford e, mais a ocidente, Pendleton; ao norte do Irwell, encontram-se a alta e a baixa Broughton; ao norte do Irk, fica Cheetham Hill; ao sul do Medlock, está Hulme e, mais a oriente, Chorlton-on-Medlock e, ainda mais longe, mais ou menos a leste de Manchester, Ardwick. Todo esse conjunto é comumente chamado de Manchester e conta com 400 mil habitantes, senão mais.

Manchester é construída de um modo tão peculiar que podemos residir nela durante anos, ou entrar e sair diariamente dela, sem jamais ver um bairro operário ou até mesmo encontrar um operário – isso se nos limitarmos a cuidar de nossos negócios ou a passear. A razão é que – seja por um acordo inconsciente e tácito, seja por uma consciente e expressa intenção – os bairros operários estão rigorosamente separados das partes da cidade reservadas à classe média ou, quando essa separação não foi possível, dissimulados sob o manto da caridade.


Manchester tem, em seu centro, um bairro comercial bastante grande, com cerca de uma milha e meia de comprimento e outro tanto de largura, composto quase exclusivamente por escritórios e armazéns (warehouses). Nele praticamente não existem moradias e, por isso, à noite, fica vazio e deserto – apenas a guarda noturna, com suas lanternas, circula pelas ruas estreitas e sombrias. Nessa zona há algumas ruas grandes, que concentram o tráfego, e o térreo das edificações é ocupado por lojas luxuosas; aí se encontram uns poucos pavimentos superiores habitados e nela reina, até alta noite, uma certa animação. Excetuada essa zona comercial, toda a Manchester propriamente dita – ao lado de Salford e Hulme, uma parte significativa de Pendleton e de Chorlton, dois terços de Ardwick e igual parcela de Cheetham Hill e de Broughton – não é mais que um único bairro operário que, com uma largura média de uma milha e meia, circunda como um anel a área comercial. A alta e a média burguesia moram fora desse anel. A alta burguesia habita vivendas de luxo, ajardinadas, mais longe, em Chorlton e Ardwick ou então nas colinas de Cheetham Hill, Broughton e Pendleton, por onde corre o sadio ar do campo, em grandes e confortáveis casas, servidas, a cada quinze ou trinta minutos, por ônibus que se dirigem ao centro da cidade. A média burguesia vive em ruas boas, mais próximas dos bairros operários, sobretudo em Chorlton e nas áreas mais baixas de Cheetham Hill. O curioso é que esses ricos representantes da aristocracia do dinheiro podem atravessar os bairros operários, utilizando o caminho mais curto para chegar aos seus escritórios no centro da cidade, sem se aperceber que estão cercados, por todos os lados, pela mais sórdida miséria.


De fato, as principais ruas que, partindo da Bolsa, deixam a cidade em todas as direções, estão ocupadas, dos dois lados, por lojas da pequena e da média burguesias, que têm todo o interesse em mantê-las com aspecto limpo e decoroso. É verdade que tais lojas se relacionam de algum modo com os bairros que estão em suas traseiras e, naturalmente, são mais elegantes e cuidadas no bairro comercial e junto das áreas burguesas do que nas zonas em que têm de ocultar as sórdidas casas operárias; todavia, sempre dão conta de esconder dos ricos senhores e de suas madames, de estômago forte e nervos frágeis, a miséria e a sujeira que são o complemento de seu luxo e de sua riqueza. É o que acontece, por exemplo, com a Deansgate, que parte em linha reta da igreja velha para o sul; no princípio, é ladeada por boas lojas e fábricas; seguem-se lojas de segunda categoria e algumas cervejarias; mais ao sul, quando deixa o bairro comercial, tem pelos lados negócios mais pobres, que, à medida que se avança, tornam-se sujos e intercalados por tabernas; enfim, na extremidade sul, a aparência das lojas não permite qualquer dúvida sobre seus fregueses: operários, só operários. O mesmo se passa com a Market Street, que sai da Bolsa em direção ao sudeste: de início, encontramos lojas de primeira categoria e, nos andares superiores, escritórios e armazéns; depois (Piccadilly), belos hotéis e entrepostos; mais adiante ainda (London Road), junto ao Medlock, fábricas, lojas e tabernas para a pequena burguesia e para os operários; mais próximo de Ardwick Green, casas da média e alta burguesia e, a partir daí, grandes jardins e enormes residências dos mais ricos industriais e comerciantes. Assim, conhecendo a cidade, é possível, pelo aspecto dos trechos das ruas principais, deduzir o tipo de bairro contíguo; mas, dessas ruas, é extremamente difícil contemplar de fato os bairros operários. Sei perfeitamente que essa disposição urbana hipócrita é mais ou menos comum a todas as grandes cidades; também sei que os comerciantes varejistas, pela própria natureza de seu negócio, devem ocupar as ruas principais; sei igualmente que nessas ruas, em toda parte, encontram-se edificações mais bonitas que feias e que o valor dos terrenos que as rodeiam é superior ao daqueles dos bairros periféricos; entretanto, em lugar nenhum como em Manchester verifiquei tanta sistematicidade para manter a classe operária afastada das ruas principais, tanto cuidado para esconder delicadamente aquilo que possa ofender os olhos ou os nervos da burguesia. E, no entanto, em Manchester, a urbanização, menos ainda que em qualquer outra cidade, não resultou de um planejamento ou de ordenações policiais: operou-se segundo o acaso. É por isso que, quando penso na classe média afirmando às pressas que os operários se comportam de maneira adequada, sempre tenho a impressão que os industriais liberais de Manchester, as grandes personalidades liberais (big whigs), tiveram sua parte nessa organização urbana tão cheia de pudor. 


Acrescento que os estabelecimentos industriais situam-se quase todos à margem dos três rios ou dos vários canais que se ramificam pela cidade e passo diretamente à descrição dos bairros operários propriamente ditos. (..)


2024-03-13

sábado, 15 de agosto de 2020

Apontamentos: Engels 1845 - as grandes cidades britânicas

ENGELS F [1845], “As Grandes Cidades”, em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Boitempo, São Paulo 2010, pp. 67-116
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4662435/mod_resource/content/1/ENGELS.pdf


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Friedrich Engels dedicou um capítulo inteiro de sua obra A Situação da Classe Operária na Inglaterra, publicada em 1845, às condições da habitação proletária nas grandes cidades britânicas. Seus termos são duros, suas imagens dolorosas e suas descrições até enfadonhas de tão repetitivas - porque a miséria era a mesma em toda parte.

Passados quase dois séculos e a despeito do próprio Engels ter declarado, no prefácio à edição alemã de 1892, que “o estado de coisas descrito neste livro – pelo menos no que se refere à Inglaterra – pertence hoje, em grande parte, ao passado”, cumpre dizer que o problema habitacional, quando não as condições sanitárias dos bairros proletários, jamais sequer equacionados nos países pobres e intermediários, voltam neste início de século XXI a assombrar as grandes cidades do mundo desenvolvido, povoadas de trabalhadores precarizados oriundos, em sua maior parte, como por um efeito-bumerangue, de suas periferias semicoloniais. A estagnação econômica mundial aberta pela debacle financeira de 2007 e agravada pela pandemia de coronavírus não augura dias melhores.

Deixando, porém, de lado por um momento esses fatos sumamente perturbadores, quero dizer que o capítulo “As Grandes Cidades”, além de libelo político e investigação sociológica, é também um pioneiro dos estudos de organização espacial urbana. Nele, o jovem Engels legou aos urbanólogos do século XXI uma boa coleção de observações sobre o atualíssimo tema da segregação socioespacial nas principais cidades da Grã-Bretanha de sua época e, no caso de Manchester, um esquema completo daquilo que hoje chamamos “estrutura urbana”, com indicações mais ou menos explícitas da disposição radial do conjunto, da relação entre centro, bairros e acessibilidade, dos gradientes de valores do solo, dos arranjos socioespaciais, da tipologia e mercado da habitação proletária e, ao final, um comentário bastante esclarecedor sobre a relação entre o regime inglês de propriedade da terra, a indústria e a qualidade da construção.

Esmiuçar o texto de Engels sob a ótica das estruturas espaciais pode ser uma experiência bastante enriquecedora para o estudioso da cidade.

(O mapa acima é uma versão tecnologicamente atualizada do mapa original da Engels à pg. 88, que ajuda a esclarecer algumas descrições do original, sobretudo a configuração do Centro comercial)

2020-08-13


domingo, 5 de julho de 2020

Entre a ruína industrial e a especulação global


Publicado em Places / History of the Present: Cities in Transition
2020-07, por Richard J. Williams, Professor de Culturas Visuais Contemporâneas na Universidade de Edimburgo.
Manchester After Engels
Beetham Tower, viewed from 
Castlefield Urban Heritage Park, 
November 2019. [Richard Williams]
(..) Manchester, whose collapse in the mid 20th century rivaled that of Detroit, is busily, loudly rebounding; the city is now constructing a cluster of skyscrapers on the edge of its downtown core, the scale of which dwarfs all existing buildings. Not all that long ago, a big building here could perhaps boast 100,000 square feet; today “big” means half a million. The new South Tower of Deansgate Square, a collection of mostly residential towers, rises priapically to more than 600 feet, and it might soon be overtaken by the 700-foot-tall Trinity Islands. There were at the end of last year an unprecedented 80 construction sites in the city center, including 14,000 future apartments, many of which are underwritten by international investment. (Continua)

2020-07-05