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domingo, 28 de janeiro de 2024

Distância, aglomeração, centralidade: uma hipótese (2)

Última edição 23-05-2024

Esta contribuição trata do fundamento, da gênese e do mecanismo da centralidade urbana na formação social capitalista.

O leitor deve julgá-la como atualização de uma investigação em andamento: mais desenvolvida que o primeiro artigo da série [1], porém ainda essencialmente exploratória, cheia de lacunas a serem preenchidas e, principalmente, de ideias a serem corrigidas e precisadas. Muitas passagens deste texto foram extraídas, na íntegra ou com modificações, de postagens já publicadas neste blog.

*
Apesar de onipresente em nossa experiência de vida a ponto de parecer um fenômeno supra-histórico, a centralidade se manifesta na cidade capitalista de uma forma peculiar, distinta de todas as urbanizações do passado. [2] [2a]

expansão tendencialmente radioconcêntrica, lei espacial constitutiva da urbanização capitalista, não foi instituída por nenhum sábio, plano, parlamento ou governo: habita o cerne da economia do espaço urbano contemporâneo e é o seu modo de ser. Pode-se interpretá-la como uma contração econômica do espaço natural, tanto mais clara e intensa quanto mais desenvolvida e integrada é a produção, circulação e consumo de bens e serviços - incluídos o parque edificado, instalações e sistemas urbanos [3] - à economia de mercado.

Na cidade capitalista, centralidade implica escassez de solo apropriável para fins urbanos, uma forma de escassez que resulta da competição generalizada entre assalariados, autônomos, especialistas, comerciantes, industriais e banqueiros pelas localizações economicamente mais vantajosas e que, por isso, se sobrepõe a todas as suas formas particulares - escassez por restrições normativas ao uso e edificabilidade do solo, escassez por deficiência de urbanização e serviços públicos, escassez por preconceitos raciais, sociais e étnicos. 

A configuração tendencialmente radioconcêntrica da urbe capitalista é a expressão geográfica da escassez econômica do solo resultante da circulação generalizada de mercadorias.

Contudo, não se encontram textos de economia, geografia e história urbana que tratem da centralidade como fenômeno histórico, isto é, dotado de distintos conteúdos em distintas formações sociais em distintas fases do desenvolvimento das forças produtivas humanas.

Na historiografia do próprio urbanismo, o “centro” da cidade contemporânea é, via de regra, assimilado ao seu marco fundacional[4], a despeito de, no caso brasileiro por exemplo, a sua gênese ser um fenômeno característico dos anos 1870-1930: até então, o que hoje chamamos “centro” era a “cidade” herdada da economia mercantil-escravista colonial por oposição ao campo circundante [4a], com elementos de centralidade relativamente dispersos - cais, sé, palácio, alfândega, mercado, comércio - este último quase sempre identificado pela rua onde as famílias da aristocracia, dos dignitários do Estado e dos comerciantes ricos ensaiavam os primeiros passos da “sociedade de consumo”.

A hipótese

Os paradigmas urbano-espaciais herdados do século XX, a saber, a série de três modelos geográficos postulada por Harris e Ullman em 1944 (Círculos Concêntricos / BURGESS 1925, Setores de Círculo / HOYT 1933 e Núcleos Múltiplos / HARRIS e ULLMAN 1944) e a síntese alonso-thuneniana da economia espacial neoclássica (ALONSO 1964), baseiam-se 
todos em uma concepção axiomática e a-histórica da centralidade urbana - a cidade que se expande, desta ou daquela maneira, a partir de seu centro [5] [5b] e os usos e densidades que se distribuem ao redor do centro segundo o princípio preemptivo da maior oferta de renda por m2 de terreno [6].


Nesta contribuição eu apresento uma hipótese explicativa da centralidade urbana capitalista, inspirada na concepção hurdiana (HURD 1903) de crescimento urbano simultaneamente central e radial a partir do ponto de origem da urbe [7]: a interdependência econômico-espacial entre a aglomeração radial-periférica dos residentes-trabalhadores e a aglomeração central dos fornecedores-empregadores.

Nessa situação de interdependência espacial, a acessibilidade é uma via de mão dupla que carrega significados distintos e complementares para os dois lados da relação, digamos os trabalhadores rurais assentados ao redor de um entroncamento viário e o dono do empório ali localizado. Para os primeiros, menos custo-tempo de deslocamento da família para finalidades diversas, portanto maior disponibilidade de recursos para o consumo; para o segundo, estar à mínima distância agregada do conjunto das famílias e vender um pouco de tudo para que os assentados “não percam a viagem”. Embora possam existir nessa comunidade dois ou três barbeiros de igual competência trabalhando em suas residências, levará vantagem aquele que primeiro se estabelecer ao lado do empório. Logo virão o armarinho, o açougue, o prestamista e outro empório para que o freguês – nas palavras de Hurd - compre no empório B o que não encontrou no empório A, pois no final as perdas se compensarão e ambos venderão mais.[8]

Das vantagens recíprocas, indicadas por Hurd, da localização relativa das famílias e firmas na cidade em expansão, isto é, do crescimento urbano “central” e “axial” simultâneos e interdependentes, eu derivo a hipótese de que a dinâmica expansiva tendencialmente radioconcêntrica das cidades modernas resulta de um princípio de economia de aglomeração generalizado e socialmente construído, algo como o yin-yang da cidade capitalista, em que o crescimento axial é a forma de aglomeração própria das famílias residentes, que minimiza os custos individuais e coletivos, diretos e indiretos, de deslocamento, e o crescimento central a forma de aglomeração própria das firmas, que converte essa economia coletiva das famílias em lucros comerciais e industriais, primeiro sob a forma elementar da maximização das vendas e serviços de varejo e, logo, sob a forma complexa da maximização da mão de obra disponível ao mínimo custo de transportes, isto é, do barateamento relativo da força de trabalho.

Toda a urbe é aglomeração, desdobrada pela especialização locacional arbitrada pela renda do solo em duas formas principais, economicamente interdependentes e reciprocamente determinadas: central, típica das firmas, e radial-periférica, típica das famílias.

Circulação de mercadorias, vantagem locacional e renda do solo

A relação fundamental entre o custo da distância e o poder de compra das famílias, além de imediatamente dedutível dos efeitos de curto prazo das políticas contemporâneas de “tarifa zero” nos transportes urbanos, é uma premissa logicamente inquestionável da Teoria dos Lugares Centrais de CHRISTALLER 1933:

"(..) um consumidor que tenha de se deslocar a um lugar central para adquirir um bem terá menos dinheiro disponível do que um que viva no próprio lugar central, porque tem de pagar o custo do transporte. Ficará, assim, sujeito a comprar menos. Este efeito de fricção da distância causado pelo custo do transporte (pressuposto 1) provoca o decréscimo da procura com a distância ao lugar central." [9]

Ao passo que as famílias urbanas buscam, pela via da máxima proximidade aos varejistas, prestadores de serviços e empregadores, minimizar seu custo individual direto (transporte) e indireto (tempo de trabalho) de deslocamento, assim maximizando o poder de compra dos rendimentos do trabalho, os negócios buscam, localizando-se à menor distância agregada das famílias, capturar a maior parte possível da economia coletiva em custos de deslocamento - disputando-a aos proprietários do solo, que a reclamam como renda de aluguel - para convertê-la em consumo imediato e barateamento mediato da força de trabalho, consequentemente em lucros comerciais e industriais maximizados, sobre os quais incidirão os correspondentes acréscimos de renda fundiária.

À minimização do dispêndio coletivo com deslocamentos proporcionado pela disposição radioconcêntrica do assentamento corresponde, portanto, descontada a renda fundiária embutida nos aluguéis, a maximização, em quantidade e velocidade, das receitas e lucros do comércio, serviços e pequena indústria aglomerados em seu centro - e dos negócios em geral. As famílias se aglomeram o mais próximo possível dos fornecedores e empregadores, e estes o mais próximo possível do conjunto das famílias, para obter o maior benefício, respectivamente, de seu trabalho e de seu capital - sujeitando-se, por conseguinte, a pagar renda do solo proporcional às suas respectivas vantagens locacionais. Tais benefícios diretos são o que chamo de economias primárias de aglomeração.

Sustento que o mecanismo explicativo da dinâmica expansiva tendencialmente radioconcêntrica da cidade capitalista, portanto da formação da centralidade urbana moderna, é a conversão da economia coletiva em deslocamentos não capturada pelos alugueis em receitas comerciais e barateamento da força de trabalho, cabendo à renda arbitrar a ocupação e uso do solo em favor das maiores ofertas, dentro de limites dados pelo valor monetário da vantagem locacional no caso dos pequenos negócios e famílias assalariadas, ou mesmo acima dele no caso das corporações e famílias afluentes. 

Assim se separam, no transcurso do tempo, as residências dos negócios. Nos melhores setores pericentrais se segregam os residentes mais abonados, nos demais se distribui a classe média conforme a escala de rendimento familiar, restando  aos proletários os cortiços e favelas pericentrais ou a periferia distante. No próprio centro comercial, os negócios mais rentáveis se agrupam em um perímetro de alta densidade, formando o hipercentro da rede urbana.
 
A hipótese do equilíbrio econômico baseado nos custos constantes de localização (transporte + aluguel, WINGO 1961) [10] é uma brilhante especulação teórica baseada no trade-off
thuneniano entre o custo de transporte e a renda da terra agrícola, mas, como todo modelo, limitada por suas premissas simplificadoras: numa comunidade urbana em expansão com economia em crescimento, barateamento relativo dos bens de consumo, aumento do poder de compra dos salários e crescente diferenciação dos rendimentos dos trabalho, a renda extraída pelos proprietários do solo-localização nunca poderá, por mais que eles o persigam, zerar o saldo de consumo (aquele que excede as necessidades de reprodução da força de trabalho) da totalidade das famílias, tampouco o sobrelucro (aquele que excede o lucro médio) da totalidade das firmas. Do contrário, seria impossível o crescimento econômico numa sociedade urbana em formação, ainda não marcada por significativos excedentes de rendimento.

É certo que, com o advento de uma vasta classe média na segunda metade do século XX, muito especialmente nos Estados Unidos - não por acaso a circunstância em que William Alonso libertou a teoria da localização residencial do custo dos transportes -, as vantagens econômicas individuais da localização residencial pericentral passaram, em certa medida, de imperiosas a relativamente elegíveis, generalizando-se a opção preemptiva dos mais abonados, via oferta de renda, pela periferia urbana servida por rodovias, vale dizer por aquilo que a economia espacial neoclássica chama de “consumo de espaço”. 


Não decorre daí, porém, que a lei fundamental da espacialidade urbana capitalista - a expansão tendencialmente radioconcêntrica com gradientes de valor de localização inversamente proporcional à distância ao centro da rede, configuração que minimiza o custo agregado dos deslocamentos, acelera o consumo e barateia a força de trabalho - tenha perdido a validade. Para os proletários, a máxima proximidade do centro urbano continuou sendo, em todos os países, uma necessidade vital apesar do ônus do aluguel - e tanto mais vital quanto mais pesado esse ônus -, gerando as elevadas densidades das favelas, cortiços e edifícios degradados dos centros urbanos e setores pericentrais não reclamados pelos mais afluentes; além disso, não seria difícil demonstrar que, entre opções suburbanas similares, mesmo os segmentos médios tenham continuado a preferir aquelas de menor distância aos centros de comércio e serviços especializados, empregos e negócios em geral.

renda da terra atua na configuração da cidade capitalista arbitrando a competição espacial a favor das maiores ofertas, o que conduz à especialização espacial dos usos e, com ela, à divisão da aglomeração urbana em duas categorias fundamentais, economicamente interdependentes: negócios e residências ou, na linguagem preferencial da ciência econômica, firmas e famílias. 

É como "marcador" da escassez relativa de solo - adaptado aos requerimentos da economia do consumidor - que a renda aparece na moderna teoria da localização para descrever a distribuição dos usos e densidades ao redor do "centro," mais exatamente de um ponto sem dimensão axiomaticamente dotado de atributos da moderna centralidade urbana e que comanda a maior renda da cidade. [11]

A centralidade como fenômeno histórico

Em seu clássico texto de 1971 intitulado “Land Assignment in the Precapitalist, Capitalist, and Postcapitalist City” [12], VANCE JR parece ter sido o primeiro a explicitar, sem discuti-la em termos teóricos, a noção de que a cidade capitalista é um objeto histórico, qualitativamente distinto da cidade feudal que a precedeu. Para ele, “o advento da renda imobiliária urbana como fonte de riqueza pessoal, produto do desenvolvimento do sistema capitalista, transformou fundamentalmente a morfologia da cidade”.[13]

Meu ponto de vista é algo distinto. Considero que o fundamento da cidade capitalista por oposição à feudal é a nova riqueza extraída do mais-trabalho assalariado criador de mercadorias, sem a qual não haveria a moderna renda imobiliária urbana, tampouco a burguesia rentista. Minha hipótese é que a livre circulação de mercadorias - força de trabalho incluída - e a consequente onipresença do mercado geraram, no meio urbano herdado do passado feudal, uma nova dinâmica espacial baseada na vantagem econômica da mínima distância-custo entre residências e negócios (comércios, serviços e pequena manufatura), materializada na expansão tendencialmente radioconcêntrica da cidade.

Numa formação social em que a imensa maior parte dos bens e serviços necessários à manutenção da vida são produzidos à base do trabalho assalariado para venda no mercado, não para o autoconsumo, isto é, são mercadorias e só como tal podem ser obtidos e consumidos, a compra-venda generalizada com o mínimo desperdício de recursos, vale dizer com compradores e vendedores espacialmente dispostos à menor distância-custo uns dos outros, fez surgir uma nova dinâmica espacial urbana, distinta de tudo o que existira nas cidades pré-capitalistas. [13a]

Não sendo possível estarem todos no mesmo lugar, a competição espacial passou a ser arbitrada pela capacidade que tivesse cada competidor de pagar pelo direito de ocupar a terra-localização, segundo a regra da interdependência espacial dos usos. A vantagem locacional de uma família não provém, primordialmente, de estar perto de outras famílias: cada família deve estar o mais próximo possível dos fornecedores de bens e serviços e das oportunidades de trabalho. A vantagem locacional das lojas e manufaturas tampouco provém, primordialmente, de estarem perto de outros negócios, mas à menor distância agregada possível do conjunto das famílias: as lojas para maximizar as vendas, as manufaturas para maximizar a disponibilidade de força de trabalho - ao mínimo custo de deslocamento nos dois casos. 

Comércios e manufaturas exerceram o seu poder de preempção (maior capacidade de ofertar renda) aglomerando-se no ponto mais acessível da urbe pré-existente, ou em formação, restando às famílias trabalhadoras se distribuírem ao longo dos acessos principais a esse ponto e suas ramificações, num ritmo determinado, antes de tudo, pela força inercial do estoque imobiliário e pela escassez de capitais. Assim surgiram o centro, a periferia e a expansão tendencialmente radioconcêntrica da cidade. A valorização da localização central implicou a saída paulatina das residências dos próprios lojistas para o pericentro, consolidando a especialização comercial do centro e residencial da periferia. Seguiu-se a hierarquização desses mesmos usos: os negócios mais rentáveis no polo financeiro [14] e as famílias mais abastadas nas periferias mais amenas e urbanizadas. [15]

A urbe capitalista se distingue, pois, por uma nova forma histórica de centralidade: em lugar da “cidade” feudal e colonial por oposição ao campo circundante, com funções centralizadoras múltiplas e relativamente dispersas - cais, castelo/palácio, sé, mercado temporário sujeito a regras e obrigações senhoriais -, [16] forma-se o “centro” propriamente dito, permanente, especializado em negócios e eventualmente replicado em subcentros, por oposição à periferia eminentemente residencial.

Assim como a classe dos rentistas urbanos não pode surgir da mera propriedade plena da terra (como explícito em Vance), tampouco a centralidade capitalista pode ter por fundamento a renda que se paga para ocupá-la (como implícito em Alonso). Imaginar que a cidade se estrutura a partir da renda do solo equivale, digamos, a supor que a economia em geral se estrutura a partir dos impostos. A renda é benefício exclusivo dos proprietários da terra urbana - agentes econômicos livres de vínculos de dependência espacial com todos os demais - em detrimento do nível de consumo das famílias e da lucratividade dos negócios; é o tributo que pagam, aos proprietários do solo, os residentes e os negociantes pelas respectivas vantagens individuais de localização numa formação social em que a riqueza provém da produção, circulação e consumo de mercadorias.

A organização espacial urbana capitalista pode ser descrita como uma engrenagem em que o mercado de bens, serviços e força de trabalho é a força motriz, a interdependência espacial dos usos do solo o dispositivo regulador e a renda fundiária o medidor de sua escassez relativa e árbitro do direito à sua ocupação.

Com a estabilização da formação capitalista e o forte crescimento das classes médias dos países desenvolvidos - inclusive os derrotados na guerra recém-finda - na segunda metade do século XX, a força motriz da moderna organização espacial urbana - o mercado generalizado e permanente de bens e serviços - tornou-se uma entidade tão natural e avassaladora quanto o espaço euclidiano em que vivemos e nos relacionamos socialmente. Tal como a noção de “centro urbano”, a “cidade-mercado” que lhe é subjacente assumiu também o aspecto de fenômeno supra-histórico. 

A interdependência espacial dos usos do solo é um dispositivo regulador tão estável quanto o próprio mercado, em conteúdo, mas sujeito a importantes alterações geográficas por conta das tecnologias disponíveis - como nos ciclos históricos da localização industrial, nos ciclos de suburbanização residencial à base de trens, bondes, ônibus e automóveis, na formação dos hipercentros metropolitanos dominados por arranha-céus, na multiplicação dos shopping-centers de acesso automotivo e, muito recentemente, na crise combinada das lojas de frente de rua e dos espaços empresariais centrais por efeito do e-commerce e do home-office.

A renda da terra, por sua vez, assumiu um protagonismo quase absoluto como organizador da cena espacial urbana devido à mudança permanente, nas grandes metrópoles - onde se cria e consome a imensa maior parte da riqueza planetária - das vantagens relativas das localizações para cada tipo e classe de uso do solo tal como percebidas por populações sujeitas a potentes vetores de mobilidade social e respectivos fornecedores de bens e serviços. Junte-se a isso o fato de ter se tornado, em parceria com a promoção imobiliária e, mais recentemente, com a “indústria” dos títulos de dívida, um dos mais importantes e lucrativos mercados de nossa época.

*

Propor a interdependência econômico-espacial entre o aglomerado central de negócios e o aglomerado periférico de residentes como motor da dinâmica urbana capitalista não significa, porém, supor que tal dinâmica se apresente da mesma maneira em qualquer tempo e lugar. Devido ao caráter desigual, no espaço e tempo, do desenvolvimento capitalista, ela há de ter ritmos e etapas condizentes com as circunstâncias sócio-históricas em que se constrói a cidade: como lenta transformação do burgo feudal europeu, como expansão e reconstrução relativamente rápida da cidade colonial hispano-americana, como nascimento ex novo da cidade de fronteira estadunidense.

Embora o estudo combinado dessas três formas históricas e suas variantes seja necessário para a compreensão da estrutura espacial da cidade capitalista, é da longa transição do burgo feudal europeu que se podem extrair os indícios de como se deu, originalmente, o entrelaçamento dos processos envolvidos na sua formação: especialização do comércio de varejo, localização das primeiras manufaturas, fixação locacional do núcleo de negócios, formação dos gradientes de valor da terra, rearranjo do estoque residencial em função do núcleo comercial e manufatureiro, separação de comércio e residência, incorporação da periferia rural imediata etc.

Um esforço de síntese 

(1) Na nova formação social em que a riqueza provém da produção, comercialização e consumo generalizado de mercadorias, os varejistas e, num primeiro momento, também os manufatores, tendem a se aglomerar no ponto mais acessível dos assentamentos urbanos herdados do passado feudal / colonial - aquele que minimiza a distância agregada aos potenciais trabalhadores / consumidores - para maximizar as vendas e a disponibilidade de força de trabalho.

(2) 
Tendo a maioria dos habitantes das cidades se tornado 100% dependente do consumo de mercadorias e da oferta de trabalho assalariado, a população em crescimento é compelida a se assentar à menor distância possível dos negócios para (a) minimizar a perda do poder de compra de seus rendimentos correspondente ao custo-tempo de deslocamento dos membros da família para finalidades diversas e (b) maximizar as oportunidades de emprego.

(3) Sendo os comércios, serviços e manufaturas mais aptos a ofertar rendas que os residentes em geral e alguns residentes mais aptos a ofertar rendas do que outros, seguem-se as tendências à especialização locacional dos negócios no centro da rede - às expensas do uso residencial sempre que economicamente vantajoso - e à hierarquização da periferia residencial com base na capacidade de pagamento pelas vantagens objetivas e subjetivas das localizações, a primeira e mais duradoura dentre elas a proximidade do centro da rede.

(4) Forma-se, assim, um padrão tendencialmente radioconcêntrico de escassez locacional, tanto maior quanto mais próxima ao ponto mais acessível da rede urbana, que propicia a extração, pelos proprietários das terras, de rendas deduzidas das vantagens econômicas que essas localizações proporcionam aos seus usuários.

(5) A expansão residencial pericêntrica e periférica começa, naturalmente, pelas vias radiais. À medida, porém, que a distância do centro da rede a terrenos intersticiais se torna igual ou menor que às próximas parcelas disponíveis ao longo dos caminhos radiais, inicia-se a ocupação dos setores circulares seguindo ramificações que, com o tempo, tendem a fundir-se em anéis mais ou menos regulares de ocupação ao redor do aglomerado central. A diferença, em termos de acessibilidade, entre as distâncias radiais e rádio-circunferenciais ao centro da rede determina a configuração estelar, por oposição a circular, da urbe em formação.

(6) Desdobra-se, assim, a aglomeração urbana em duas modalidades economicamente interrelacionadas e reciprocamente dependentes: central, típica das firmas, e radioconcêntrica, típica das famílias residentes.

(7) Com o crescimento da população, o aumento da riqueza e o desenvolvimento em geral, formam-se nas grandes cidades, com base nos mesmos princípios antes enunciados, redes mais ou menos superpostas, hierarquizadas e complexas de aglomerados de negócios e entornos residenciais invariavelmente marcados – salvo por efeito de regulações urbanísticas – pela densificação e verticalização decrescentes do estoque edificado.

Conclusão

Tal como até aqui desenvolvida, a hipótese sugere que a interdependência econômico-espacial do que hoje chamamos “famílias e firmas”, determinada pelo advento da produção e circulação generalizada dos meios de produção e subsistência das populações urbanas como mercadorias, seria o princípio explicativo da dinâmica expansiva tendencialmente radioconcêntrica da cidade moderna, portanto da gênese da sua centralidade.


É essa interdependência que fará resultar, da competição espacial generalizada arbitrada pela renda do solo, a estruturação do espaço urbano capitalista - por oposição aos seus congêneres históricos - em duas categorias principais: os centros e subcentros de negócios (comércio, serviços, indústria leve) e suas respectivas periferias residenciais.

A hipótese se apresenta, pois, como uma pista promissora para o preenchimento da lacuna observada por CORREIA DA SILVA 2004 no modelo alonso-thuneniano da economia espacial, paradigma da organização espacial urbana capitalista desde o último quarto do século XX:

A relevância contemporânea do modelo de Von Thunen reside na sua adaptação à economia urbana, que permitiu o estudo da renda urbana e suburbana e da localização das famílias e atividades econômicas nas cidades. (..) A característica fundamental da economia urbana refletida no modelo é a necessidade que têm as famílias de ir ao centro para trabalhar usando um sistema radial de transportes. (..) Uma falha [fault] dessa abordagem é pressupor [it assumes] algo que está por ser explicado [we want to explain]: a existência do centro comercial urbano [urban central market]. [17]


Gerada, sem dúvida alguma, pelas necessidades individuais de trabalhadores, comerciantes e manufatores libertos dos vínculos e obrigações feudais, a dinâmica expansiva radioconcêntrica da cidade capitalista é, no entanto, um resultado que nenhum agente previu ou planejou, e que transcende todas as expectativas individuais; um dispositivo espacial socialmente construído que minimiza o custo agregado dos deslocamentos, favorece o consumo, barateia a força de trabalho e acelera a realização dos lucros comerciais e industriais.

Dado que a produção de riqueza na formação social capitalista supõe, e é tanto maior quanto maior for, o consumo de mercadorias, materiais e imateriais, segue-se que a aglomeração radial-periférica dos residentes urbanos ao redor da aglomeração central dos varejistas, prestadores de serviços e compradores de força de trabalho, ou, mais simplesmente, a configuração tendencialmente radioconcêntrica das cidades em expansão, é em si mesma um dispositivo espacial facilitador e acelerador do processo de acumulação do capital em geral, uma máquina de economia social a seu serviço, [18] sobre a qual irá se desdobrar, diversificar, diferenciar socialmente e expandir - a ponto de, a partir de certo tamanho, produzir o seu contrário: vultosas deseconomias sociais - a grande metrópole contemporânea.

2024-01-28

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NOTAS

[1] JORGENSEN P, “Distância, aglomeração, centralidade”. À beira do urbanismo (blog) 08-03-2021
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2021/03/distancia-aglomeracao-centralidade-uma.html

[2] "La ciudad moderna (..) es distinta de cualquier tipo de ciudad anterior (..) porque ha concentrado en ella los factores de producción sobre la base de un nuevo sistema económico basado en el capital”. HERCE VALLEJO Manuel, “Las infraestructuras en la construcción de la ciudad capitalista”. Café de las Ciudades, Abril 2021 

[2a] “Mas, dir-se-á, as leis gerais da vida econômica são sempre as mesmas, sejam elas aplicadas no presente ou no passado. (..) É exatamente isso o que Marx nega. Segundo ele, essas leis abstratas não existem. (..) Segundo sua opinião, pelo contrário, cada período histórico possui suas próprias leis. Assim que a vida já esgotou determinado período de desenvolvimento, tendo passado de determinado estágio a outro, começa a ser dirigida por outras leis. (..)” [Correio Europeu, Petersburgo, maio de 1872, p. 427-436; em MARX Karl, O Capital (Posfácio da 2a. Edição). São Paulo: Editora Nova Cultural 1996, p. 139]

[3] "(..) la ciudad es también un producto en sí misma, una sumatoria de mercancías inmobiliarias que añaden valor a la propiedad." HERCE VALLEJO Manuel, op. cit.

[4]“(..) antes de tudo, é preciso definir o que entendemos por centralidade. A definição, no caso, parte de uma referência espacial, ou seja, geográfica e de dimensão física: o centro é o núcleo original, o ponto de partida nodal de uma aglomeração urbana. O centro é, pois, o marco zero de uma cidade, o local onde tudo começou, o seu núcleo de origem. (..)” [PESAVENTO S J, “História, Memória e Centralidade Urbana" Rev. Mosaico, v.1, n.1, p.3-12, jan/jun 2008
https://seer.pucgoias.edu.br/.../mos.../article/view/225/179

[4a] Havia três acessos do núcleo colonial para o núcleo urbano já existente, que era chamado de “cidade” (..). A Sede [área verde da figura abaixo] (..) foi concebida com a finalidade de constituir um prolongamento da “Cidade” e, por este motivo, esses lotes eram denominados “urbanos”. [17] [Aspas dos autores] [CAPRETZ A e MANHAS M, "Traçado urbano e funcionamento do núcleo colonial Antônio Prado em Ribeirão Preto (SP), 1887". I Simposio Brasileiro de Cartografia Histórica, Paraty, Maio 2011].
https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio/CAPRETZ_ADRIANA_E_MANHAS_MAX_PAULO.pdf

[5] “Esta figura é uma representação ideal da tendência que tem toda cidade de se expandir radialmente a partir de seu distrito central de negócios – no esquema, ‘The Loop’ (I)”. BURGESS E W, “The Growth of the City: An Introduction to a Research Project", em PARK R E, BURGESS E W e MCKENZIE R D, The City: Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment, The University of Chicago Press, 1984: Chicago e Londres, p. 50.

[5b] VILLAÇA dedicou alguns parágrafos de sua obra magna a criticar concepções de cidade que “eliminam e congelam um processo que produz ao mesmo tempo dois resultados: o centro e o não centro. Seria como pretender que um lado da moeda preceda ou seja decorrência do outro; que o senhor preceda o escravo ou seja a causa dele (ou vice-versa).” [VILLAÇA F, Espaço Intra-Urbano no Brasil. São Paulo: FAPESP 2001, p. 238].

[6] “As cidades tendem a crescer ao redor de algum centro, em zonas concêntricas de uso do solo ordenadas de acordo com sua capacidade de pagar aluguel [ofertar renda], ligadas ao núcleo por meio de rotas radiais bem definidas que convergem para o centro”. BATTY M, "The Linear City: illustrating the logic of spatial equilibrium". Comput.Urban Sci. 2, 8 (2022)
https://link.springer.com/article/10.1007/s43762-022-00036-z

[7] “Growth in cities consists of movement away from the point of origin in all directions, except as topographically hindered, this movement being due both to aggregation at the edges and pressure from the centre. Central growth takes place both from the heart of the city and from each subcentre of attraction, and axial growth pushes into the outlying territory by means of railroads, turnpikes and street railroads. All cities are built up from these two influences, which vary in quantity, intensity and quality, the resulting districts overlapping, interpenetrating, neutralizing and harmonizing as the pressure of the city's growth bring them in contact with each other.” HURD R M, Principles of City Land Values. New York: Record and Guide, 1903, cap I

[8] “Retail stores cluster together at convenient points for their customers and not because they do business with each other. The chief attracting power of such a retail section seems to be the insurance to customers against failure to find within the section what they seek. Undoubtedly the selection within this special district is normally better than that in all the rest of the city combined, and shoppers are saved the time, trouble and uncertainty of seeking through scattered shops. While one shop may attract a customer and another make the sale, such an interchange of customers is probably in the long run closely balanced.  HURD R M, op.cit. Cap VI

[9] BRADFORD M G e KENT W A, Geografia Humana e Suas Aplicações (Tradução do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Supervisão de Raquel Soeiro de Brito e Paula Bordalo Lema)
https://www2.ufjf.br/nugea//files/2014/09/Bradford-e-Kent_Teoria-dos-lugares-centrais-1.pdf

[10] WINGO L (1961): Transportation and urban land. Washington, DC: Resources for the Future.

[11] “For urban land, this process is more complex. (..) Very briefly, the method consists of assuming a price of land in the center of the city, and determining the prices at all other locations by the competitive bidding of the potential users of land in relation to this price." ALONSO W (1960), “A Theory of the Urban Land Market”, em Papers and Proceedings of the Regional Science Association, Vol 6, 1960
https://www.academia.edu/2161751/A_theory_of_the_urban_land_market

[12] VANCE JR J E, “Land Assignment in the Precapitalist, Capitalist, and Postcapitalist City”. Economic Geography , Apr., 1971, Vol. 47, No. 2, pp. 101-120

[13] “The main argument of this paper may be presented in sharper focus at this point. It is simply that the treatment of urban land as a source of income, which came in with the general conceptual baggage of the capitalist system as it developed, fundamentally transformed the morphology of the city”. VANCE JR J E, Op. Cit. 

[13a] (..) era por lo común cerca de las puertas donde se edificaban los almacenes y donde se congregaban las posadas y las tabernas, mientras que los artesanos y mercaderes instalaban sus tiendas en las calles contiguas. Así, la puerta produjo, sin normas especiales de distribución en zonas, los barrios económicos de la ciudad; y como no había solamente una puerta, la naturaleza misma del tráfico procedente de diferentes regiones tendió a descentralizar y diferenciar las zonas comerciales. Como consecuencia de esta disposición orgánica de las funciones, la zona interior de la ciudad no estaba recargada por tráfico alguno, pues solo circulaba el generado por sus propias necesidades. [MUMFORD L, La Ciudad en la Historia, Logroño: Pepitas de calabaza, 2012, p. 512)

[14] “In many forms of business the clustering together of those transacting it finally crystalizes into an Exchange, which forms the centre of the district. Since the Exchanges are the result and not the cause of the special districts in which they are located, we must look back of them to find the causes for the location of various utilities.” [ HURD R M, op.cit. Cap VI]

[15] Na Manchester de 1845, classificada por Engels como "o tipo clássico da moderna cidade industrial", em que a localização das tecelagens é ainda determinada pela contiguidade dos rios e canais e o transporte da força de trabalho uma opção apenas nascente, a área comercial ocupa uma posição central relativamente à rede hidroviária e suas fábricas, e é cercada de residências operárias por todos os lados. Contudo, já existe a especialização locacional das finanças (banca e bolsa) no centro comercial e das residências burguesas na periferia urbana. [Ver ENGELS F, “As grandes cidades” (2a parte - Manchester). Em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, pp. 87-116. São Paulo: Boitempo 2008.]

[16] “In the most primitive situation of periodic markets no such thing as a shopping centre existed, indeed the whole notion was alien. A widening of a main street gave sufficient space for temporary stalls to be set up on market days. Even that amount of adaptation was not essential for mats or cloths could be laid on the floor, or on a trestle within any open space; the church-yard was a typical one, since it was a meeting place. (..) The demand for buildings was minimal, the power of the trader or merchant limited, and hence the city was dominated by the centres of political and religious control. Castle, or town hall, and cathedral or church, were the major buildings and retail trade only incidental to these formative elements.”  CARTER H, An Introduction to Urban Historical Geography – cap 8 The Internal Structure of the City: the central area. Londres: Edward Arnold Publishers, 1983, pp. 150-170.

[17] CORREIA DA SILVA J , “Space in Economics – A Historic Perspective”, em Backhouse R, History of Economic Thought, Programa de Doutoramento em Economia, Faculdade de Economia do Porto, Universidade do Porto
https://www.fep.up.pt/docentes/joao/material/space.pdf

[18] Deixo registrado para posterior desenvolvimento o problema de se a renda da terra urbana teria desempenhado, na fase ascensional do capitalismo, um papel historicamente progressivo - o de “dreno” do excedente ao consumo estritamente necessário em benefício da acumulação do capital e seu triunfo sobre os privilégios remanescentes da ordem feudal.


quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Apontamentos: Haig 1926 - a hipótese do mínimo custo de atrito


HAIG R M, “Toward an Understanding of the Metropolis”. Quarterly Journal of Economics, Vol. 40 No. 3 (May, 1926), pp. 402-434, Oxford University Press
https://www.jstor.org/stable/1885172

Montagem: Àbeiradourbanismo
Este paper é um clássico da economia urbana, de enorme valor também para geógrafos e urbanistas. Publicado em 1926, ele é citado em nove de cada dez artigos sobre o desenvolvimento histórico dessa área do conhecimento como um dos pioneiros do estudo da relação entre a renda da terra e a organização do espaço urbano.

O que geralmente não se diz é que Haig, economista especializado em finanças públicas e política fiscal, analisa essa relação desde o ponto de vista do planejamento urbano, no contexto da política de descentralização urbana subjacente ao Plano Regional de Nova York e Arredores:

The interests at stake in decentralizing cities are sufficiently great to justify considerable effort to learn where, in a soundly-conceived economic plan, things "belong." The committee on the Regional Plan of New York decided to attack the problem in a realistic manner by making a series of studies of trends and tendencies in the location of the chief economic activities in the area.

Seu postulado da renda do solo urbano como “ônus que o proprietário de um terreno relativamente acessível pode impor [ao usuário] devido à economia de custos de transporte que a localização possibilita", obviamente baseada no modelo agrícola de Von Thunen, é o começo de uma elaboração teórica, jamais desenvolvida, derivada de sua minuciosa análise das mudanças ocorridas na composição do complexo de negócios do Centro da cidade de Nova York, incluindo um bom número de indústrias, entre os anos de 1900 e 1922.

E o mais interessante, Haig aborda a renda da terra desde o ponto de vista do planejamento urbano, isto é, da cidade como fenômeno intrinsecamente social e não como coleção de agentes individuais. Sua teoria do 'custo de atrito' (aluguel + transporte) é a base de uma hipótese sobre a moderna estrutura urbana que não resulta, como em Alonso, das preferências e decisões locacionais das firmas e famílias individualmente consideradas, mas de um princípio de economia social delas derivado: a ordem espacial urbana tende a ser determinada pela minimização dos custos de atrito: 

Of two cities, otherwise alike, the better planned, from the economic point of view, is the one in which the costs of friction are less. This will mean that the aggregate site rents are less or that the transportation system is superior - or both. It may be suggested as an hypothesis that the layout of a metropolis - the assignment of activities to areas - tends to be determined by a principle which may be termed the minimizing of the costs of friction.

Na interpretação de Richardson H W (1969):

Assim, em condições de concorrência e com perfeito conhecimento, o mercado da terra urbana, ao que se supõe, opera de modo que o valor agregado dos aluguéis dos terrenos existentes e dos custos de transporte para a cidade com um todo, são mínimos.

O link abaixo dá acesso a um extrato, ainda por traduzir, contendo as passagens que me parecem mais representativas desse esboço teórico. 

2023-09-27

quinta-feira, 13 de abril de 2023

A tarifa zero e o consumo das famílias

Última edição 18-08-2023

BBC News Brasil 13-04-2023
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy65e4qnjjpo

Montagem:Àbeiradourbanismo
Clique para ampliar
Como estudioso da organização espacial urbana, me chama a atenção nessa matéria a constatação de que as famílias, liberadas do gasto imediato com tarifas de transporte, tendem não só a deslocar-se mais como a consumir mais.

Fica, portanto, uma dúvida, que pesquisas futuras poderiam ajudar a esclarecer, a respeito da ideia bastante difundida entre adeptos - como eu mesmo - da recuperação da renda do solo, de que toda redução de gastos com transporte público será necessariamente anulada pelo aumento dos alugueis. Sua origem é assim resumida na Economia Regional de Richardson 1975: “A análise de Wingo [custos constantes de localização, 1961] mantém a hipótese de complementaridade entre os gastos de aluguel e os custos de transporte apresentados mais de três décadas antes por R. M. Haig, que, por sua vez, formulou um paralelo urbano ao modelo agrícola de Von Thunen [1826]”.

Vale lembrar, no entanto, que a redução o poder de compra com o aumento da distância, e respectivo gasto de transporte, entre a residência e o comércio de varejo é uma premissa logicamente inquestionável da Teoria dos Lugares Centrais de Walter Christaller, 1933: [1]

"(..) um consumidor que tenha de se deslocar a um lugar central para adquirir um bem terá menos dinheiro disponível do que um que viva no próprio lugar central, porque tem de pagar o custo do transporte. Ficará, assim, sujeito a comprar menos. Este efeito de fricção da distancia, causado pelo custo do transporte (pressuposto 1) provoca o decréscimo da procura com a distância ao lugar central."

Como já tive ocasião de sugerir em mais de uma postagem neste blog, [2] a compra-venda generalizada de mercadorias, serviços e força de trabalho com o mínimo desperdício de recursos, vale dizer com compradores e vendedores situados à menor distância-custo uns dos outros, não a renda da terra em si mesma, seria o fundamento da organização espacial urbana moderna. 

No papel de árbitro da competição espacial entre usos do solo socialmente necessários e espacialmente interdependentes, a renda da terra assegura que, no processo de formação da cidade capitalista, comércio, serviços e pequena indústria se estabeleçam no ponto mais acessível da rede urbana relativamente ao conjunto das famílias, e suas imediações, para beneficiar-se do mínimo dispêndio total com deslocamentos. Daí provém a dinâmica expansiva tendencialmente radioconcêntrica da cidade capitalista e as categorias espaciais que hoje chamamos de centro [de negócios] e periferia [residencial], com suas respectivas diferenciações.

Famílias não buscam morar perto do Centro para pagar mais aluguel; pagam mais aluguel (por m2) para estar no lugar da cidade onde é mínimo o custo de deslocamento e máxima a oferta de mercadorias, serviços e empregos. Tampouco os varejistas se estabelecem no Centro para pagar mais aluguel: pagam mais aluguel para estar à menor distância possível do conjunto das famílias e aí se aglomeram, em mercados e arruamentos tão compactos quanto possível, para que nenhum consumidor “perca a viagem” e a força de trabalho seja a mais farta e barata possível. 

Sob este ângulo, a configuração radio-concêntrica da cidade moderna aparece como um dispositivo de economia social facilitador e acelerador da produção de riqueza sob a forma histórica do capital.

A ideia da vantagem locacional reciprocamente determinada de residentes e varejistas, sugerida por Hurd em 1903, [4] tem estado obscurecida pelo sucesso do modelo de William Alonso em representar a distribuição de firmas e famílias urbanas, sempre e por definição individualmente consideradas, ao redor do Centro segundo sua capacidade de ofertar renda pela terra-localização. [5] Permanece, no entanto, a questão: de onde vem o Centro? Por qual razão as firmas, cuja aglomeração constitui o próprio Centro, ofertariam as maiores rendas da cidade para estar o mais perto possível... de si mesmas? 
Tenho para mim que as declarações de Josué Ramos, prefeito de Vargem Grande Paulista, e Celso Haddad, Diretor da ETP de Maricá, reproduzidas na matéria da BBC Brasil, contêm ao menos parte da resposta:

"É uma questão muito maior do que a de mobilidade. Existe a questão social, a de geração de recursos, porque na hora que eu implantei a tarifa zero, aumentou o gasto no comércio, a arrecadação de ICMS, de ISS"

"Em 2022, foram R$ 160 milhões que as famílias deixaram de gastar com transporte, o que é injetado diretamente na economia da cidade"

______
[1] BRADFORD M G e KENT W A, Geografia Humana e Suas Aplicações (Tradução do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Supervisão de Raquel Soeiro de Brito e Paula Bordalo Lema)
https://www2.ufjf.br/nugea//files/2014/09/Bradford-e-Kent_Teoria-dos-lugares-centrais-1.pdf

[2] “Distância, aglomeração, centralidade: uma hipótese” 08-03-2021

[3] “Apontamentos: HURD 1903 - crescimento urbano axial e central” 15-03-2023

[4] HURD R M, "Excerpts on axial and central growth", extraído de Principles of City Land Values, New York: Record and Guide 1903, por JORGENSEN P.
https://docs.google.com/document/d/15g10RjkDmqBxl9onF5OPYvHBRrmGiE1A6McoKzBeSeE/edit?usp=sharing

[5] ABRAMO P (2001) Mercado e Ordem Urbana: do caos à teoria da localização residencial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil 2001, pp. 65-87

2023-04-13

segunda-feira, 8 de março de 2021

Distância, aglomeração, centralidade: uma hipótese

Montagem: àbeiradourbanismo
Imagens originais: internet
A elaboração de modelos é um procedimento usual no processo de construção do conhecimento. Podemos descrevê-los como representações hiper-simplificadas da realidade que utilizamos para pôr em foco determinado aspecto ou relação que, em nosso estudo, supomos especialmente relevante. Eles nos ajudam a sintetizar o status de nossa compreensão dos fenômenos empiricamente observados e a formular novas hipóteses a serem submetidas à prova dos fatos e seus desenvolvimentos.

O que se segue é um modelo territorial simples da conversão acelerada, por força de um boom de preços de certo produto agrícola, de um pequeno assentamento de famílias de trabalhadores rurais em núcleo urbano. Sua finalidade é destacar a hipotética inter-relação do custo da distância e do ganho de aglomeração no processo de formação e desenvolvimento das centralidades urbanas.

Não se trata, bem entendido, de uma hipótese arbitrária, caída do céu. Ela foi deduzida das constatações empíricas e formulações teóricas de estudiosos das cidades da primeira metade do século XX, notadamente Hurd (1903), Haig (1926) e Burgess (1925-29) [1], sobre a expansão radial e o custo da distância, bem como da grande ausência percebida em todos esses trabalhos - e todos os modelos posteriormente elaborados pela economia espacial: a formação do próprio centro. Esse background será descrito na versão completa da presente contribuição, ainda em construção.

*

O modelo representa um núcleo agrícola em expansão ao redor de um empório [a] situado no entroncamento de três caminhos, onde se abastecem as famílias trabalhadoras. Os rendimentos das famílias provêm do trabalho nas lavouras circundantes e de serviços prestados a outras famílias da própria comunidade, executados por todos os seus membros em idade laboral. O deslocamento às lavouras é feito a pé, ou por bicicleta, sendo aleatórias as diferenças de tempo de percurso relativamente ao local de residência. Não há, portanto, custo monetário de transporte, mas o tempo despendido no suprimento da unidade (compras e serviços) é perda de tempo de trabalho remunerado, portanto de rendimento das famílias. Todas as residências têm tamanho similar e pertencem às empresas agrícolas proprietárias das terras, às quais se pagam aluguéis. O empório paga aluguel a um proprietário residente na grande cidade mais próxima.

A minimização do tempo de trabalho perdido em tarefas de abastecimento doméstico exige que as famílias se estabeleçam à menor distância possível do empório, portanto ao longo dos caminhos existentes, gerando um processo expansivo do assentamento de tendência radial [A]. À medida, porém, que a distância a terrenos intersticiais se torna igual ou menor que às próximas parcelas disponíveis ao longo dos caminhos radiais, inicia-se a ocupação progressiva dos setores circulares seguindo ramificações [B] que, com o tempo, tendem a fundir-se em anéis mais ou menos regulares de ocupação ao redor do empório [C]. A tendência à equalização das distâncias radiais e radio-circunferenciais ao empório determina a configuração estelar, por oposição a circular, da urbe em formação.

A acelerada expansão do assentamento ao redor do empório converte, pouco a pouco, os caminhos convergentes em corredores de acessibilidade - atributo relacional das localizações que inclui o suporte viário e, no nosso caso, o custo econômico do deslocamento. 


O desenvolvimento lógico deste modelo é que um segundo comerciante, por exemplo um boticário (b), não terá nenhuma razão para estar em outra localização que não a vizinhança imediata do empório. E não apenas por ficar em um ponto mais acessível aos fornecedores, mas, principalmente, porque assim proporcionará a cada família assentada poupar custos de deslocamento correspondentes à possibilidade de dirigir-se regularmente a ambos os estabelecimentos em uma única viagem.

O custo de deslocamento não incorrido pelo conjunto dos residentes em viagens exclusivas a um e outro estabelecimento - e não imediatamente gasto como renda de aluguel - poderá então se converter em receita adicional para o empório (a) e a botica (b) e, por extensão, para todos os demais estabelecimentos e prestadores de serviços - a padaria (c), o barbeiro (d), o dentista (e), o armarinho (f) - que vierem a se instalar naquilo que, a partir de certo grau de expansão da comunidade e aglomeração das firmas, chamar-se-á "centro urbano”.


A rápida expansão radial-concêntrica do assentamento e a concomitante formação do centro urbano, que marcam a transição do núcleo rural à categoria de “cidade”, trarão consigo a desigualdade sócio-espacial: nos termos do modelo, as famílias recém-chegadas à cidade terão de se assentar em anéis mais afastados do centro urbano, com maior dispendio de tempo improdutivo, portanto menor rendimento, menor poder de consumo e menor capacidade de oferta de renda pela moradia. Os alugueis residenciais diminuirão com a distância ao centro, onde, por outro lado, tenderão a residir os próprios comerciantes e prestadores de serviços. O barateamento dos produtos da indústria proporcionará às famílias trabalhadoras originalmente assentadas nas imediações do centro um pequeno excedente de consumo disputado ao aumento relativo dos alugueis. Novos empregos serão gerados no comércio, serviços e pequena indústria centralmente localizados e, a certa altura do processo de expansão, sobrevirá o gasto monetário dos trabalhadores periféricos com serviços de transportes. A acessibilidade das firmas aglomeradas no centro urbano lhes proporcionará, então, o benefício adicional da máxima oferta de mão de obra ao mínimo custo de transporte, fatores de estabilização do preço da força de trabalho, consequentemente de elevação paulatina e sustentada dos lucros e, com eles, também dos alugueis comerciais. A resultante valorização dos sobrados centrais levará à migração residencial das famílias dedicadas ao comércio e serviços para localizações circundantes ao centro urbano, dando início ao processo de formação de bairros socialmente diferenciados.


*

Chamo de economia primária de aglomeração o benefício que a contiguidade proporciona às firmas de comércio e serviços de varejo por efeito da conversão dos custos diretos e indiretos de deslocamento poupados aos residentes de um assentamento urbano em gastos de consumo. À minimização do dispêndio coletivo com deslocamentos proporcionado pela disposição radial-concêntrica do assentamento corresponde - descontada a renda paga em aluguéis - a maximização das receitas do comércio e serviços de varejo aglomerados em seu centro.

Custo (poupado) da distância e economia (primária) de aglomeração aqui se apresentam, pois, como categorias econômico-espaciais inter-relacionadas, as duas faces, ou dois aspectos indissociáveis, do fenômeno da centralidade em um ambiente urbano, cujo fundamento é a relação espacial mutuamente vantajosa que estabelecem entre si os residentes urbanos e os fornecedores de bens e serviços de varejo.

Movidos por seus interesses particulares, residentes e comerciantes / prestadores de serviços geram um arranjo espacial que assegura de um lado o menor custo coletivo de deslocamento e, de outro, o maior ganho coletivo de localização: do lado dos residentes-demandantes uma distribuição de configuração radial-concêntrica ao redor dos varejistas, do lado dos varejistas a aglomeração no centro da rede radial-concêntrica - conectando-se os dois lados dessa equação sócio-espacial em permanente desequilíbrio por meio de corredores de acessibilidade.

Ao passo que os residentes buscam, pela via da proximidade aos estabelecimentos principais, minimizar seu custo individual de deslocamento, os varejistas de bens e serviços buscam, por meio da aglomeração no centro da rede, capturar a maior parte possível da economia coletiva em custos de deslocamento - disputando-a aos proprietários do solo, que a exigem como renda de aluguel - para convertê-la em consumo das famílias, consequentemente em lucro comercial. O lucro comercial excedente assim gerado tenderá, por sua vez, a ser convertido em renda de aluguel econômica e espacialmente concentrada.

Rendimentos disponíveis “não imediatamente gastos em renda de aluguel” supõem que, numa comunidade urbana em expansão com economia em crescimento, a renda extraída pelos proprietários do solo-localização nunca poderá, por mais que o persigam, zerar o saldo de consumo (aquele que excede as necessidades básicas) da totalidade das famílias tampouco o lucro econômico (aquele que excede o lucro médio) da totalidade das firmas.

A aglomeração central, vale dizer à menor distância agregada dos residentes, aparece, assim, ao comércio e serviços de varejo, como exigência incontornável da competição com a propriedade fundiária pela captura dos saldos de rendimento das famílias.

No conjunto, a disposição radial-concêntrica dos residentes-demandantes ao redor do aglomerado de varejistas opera como acelerador do consumo de bens da agricultura e da indústria, portanto do crescimento econômico em um regime de mercado, tanto mais necessária quanto menor for a produtividade do trabalho e o nível dos salários e tanto mais vital quanto mais pesado for o ônus do aluguel sobre os rendimentos das famílias e os lucros do varejo.

Generalizando, podemos chamar de economias primárias de aglomeração os benefícios econômicos recíprocos, e seus efeitos sobre o desenvolvimento econômico, que a minimização da distância agregada proporciona a residentes e varejistas de um assentamento urbano, aos primeiros como maximização do poder de compra, aos segundos como maximização das receitas, portanto dos lucros.

Fosse a cidade mero espelho, ou materialização instantânea e imutável, desse arranjo ótimo e mutuamente vantajoso entre um pequeno número de assentados e seus respectivos varejistas e prestadores de serviços, essa seria a configuração urbana mais eficiente do ponto de vista econômico - o "plano urbano da mão invisível do mercado" -, cujo conteúdo já apareceria, aliás, como manifestamente social.

*

A hipótese sócio-histórica derivada do modelo econômico-espacial aqui proposto é a de que a interdependência entre o custo coletivo da distância e a rentabilidade do aglomerado comercial, assim como a configuração espacial radial-concêntrica que corresponde a essa relação, subjazem ao desenvolvimento de qualquer cidade na época moderna [2] ainda que não se apresentem, em sua forma pura, em nenhuma, dentre outras razões a de que os processos urbanos reais, além de infinitamente mais complexos e contraditórios do que se pode representar em um modelo, se desenvolvem num ambiente espacial de grande rigidez e longa duração - fisiografia, estrutura parcelária, arruamento, casario - herdado da natureza e das épocas precedentes.

Como qualquer outro modelo de estrutura e/ou expansão urbana, este é uma reconstrução idealizada de fragmentos de realidade que o autor supõe existir, ou ter existido, em uma certa coleção de cidades em dada etapa ou trânsito de seu desenvolvimento histórico. A identificação e concatenação desses fragmentos é, portanto, o desafio que se apresenta à continuidade da pesquisa.

De imediato será aqui publicada uma versão completa deste texto, contendo: (1) uma exposição dos primórdios da ideia de expansão radial como lei geral da organização espacial urbana e suas forças socioeconômicas subjacentes; (2) uma crítica do caráter “apriorístico” do centro da cidade nos modelos de estrutura urbana oriundos da sociologia, da geografia e da economia espacial; (3) um esboço de enquadramento histórico da hipótese principal aqui apresentada com elementos extraídos, dentre outros, desses mesmos textos básicos.

___
[1] HURD R M, Principles of City Land Values. New York, Record and Guide 1903
https://archive.org/details/principlesofcity00hurdrich/page/n4/mode/1up

HAIG Robert, "Toward an Understanding of the Metropolis: Part I and Part II". Quarterly Journal of Economics, 40 (1926), 179-208 e 402-434

BURGESS E W, “The Growth of the City: An Introduction to a Research Project", em BURGESS, E W e PARK R E, The City:Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment, The University of Chicago Press, 1984: Chicago e Londres
http://shora.tabriz.ir/Uploads/83/cms/user/File/657/E_Book/Urban%20Studies/park%20burgess%20the%20city.pdf

BURGESS E W, "Urban Areas", em SMITH e WHITE, Chicago, an Experiment in Social Sciences Research, Chicago: University of Chicago Press 1929, pp 113-38
https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=mdp.39015005490290&view=1up&seq=17


[2] Entendida como aquela em que já predominam o trabalho assalariado e a produção para o mercado, mas não necessariamente a grande indústria.


2021-03-08