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quarta-feira, 15 de março de 2023

Apontamentos: HURD 1903 - crescimento urbano axial e central

Última edição em 02-05-2023

"Crescimento axial e central: excertos". Extraído de HURD R M, Principles of City Land Values, New York: Record and Guide 1903
https://docs.google.com/document/d/15g10RjkDmqBxl9onF5OPYvHBRrmGiE1A6McoKzBeSeE/edit?usp=sharing


Montagem: Àbeiradourbanismo
O que aqui apresento aos leitores é uma compilação de seções e passagens de Richard Hurd (Principles of City Land Values, 1903) sobre sua concepção de “crescimento urbano axial e central”.

Para além da imensa riqueza de observações históricas, geográficas, urbanísticas e até arquitetônicas que este profundo estudioso do parque imobiliário das grandes cidades estadunidenses de inícios do século XX tem a oferecer, e que justifica por si só a leitura atenta do material aqui reunido, o postulado de que o crescimento das cidades se dá necessariamente sob aquelas duas formas combinadas é, provavelmente, a mais instigante e profícua contribuição de Hurd ao estudo da organização espacial urbana.

Vejo-o como uma promissora pista para avançar no entendimento da relação entre “centro” e “periferia”, ou da estrutura tendencialmente radioconcêntrica da cidade moderna e contemporânea, cronicamente obscurecida pela noção intuitiva e geralmente aceita de que a cidade se expande a partir de um centro axiomaticamente estabelecido. 

Em sua obra magna de 1998 Espaço Intra-Urbano no Brasil [1] (Cap. 10, Os centros principais), Villlaça observou a impossibilidade lógica e histórica de um centro que pré-existe à sua própria periferia, e vice-versa, contradição que se apresenta já em 1925 na descrição feita por Burgess daquele que veio a ser conhecido como “o modelo de estrutura urbana em círculos concêntricos”:

Esta figura é uma representação ideal da tendência que tem toda cidade de se expandir radialmente a partir de seu distrito central de negócios – no esquema, ‘The Loop’ (I). [2] 

O problema reaparece, na década de 1960, no modelo alonso-thuneniano da economia espacial, tal como apontado pelo professor Correia da Silva, da Universidade do Porto, num trabalho de doutoramento do ano de 2004 intitulado “Space in Economics — A Historical Perspective”:

A relevância contemporânea do modelo de Von Thunen reside na sua adaptação à economia urbana, que permitiu o estudo da renda urbana e suburbana e da localização das famílias e atividades econômicas nas cidades. (..) A característica fundamental da economia urbana refletida no modelo é a necessidade que têm as famílias de ir ao centro para trabalhar usando um sistema radial de transportes. (..) Um defeito [fault] dessa abordagem é pressupor [it assumes] algo que está por ser explicado [we want to explain]: a existência do centro comercial urbano [urban central market].[3]

Com uma redundância que talvez não seja casual, Batty assim expressa, em recente artigo aqui divulgado sobre as cidades lineares, a fórmula geral de Burgess nos termos da economia espacial alonso-thuneniana:

“As cidades tendem a crescer ao redor de algum centro, em zonas concêntricas de uso do solo ordenadas de acordo com sua capacidade de pagar aluguel [ofertar renda], ligadas ao núcleo por meio de rotas radiais bem definidas que convergem para o centro”.[4]

Em contraste, e ainda que não se pretenda uma teoria da configuração radial-concêntrica da cidade moderna, o crescimento urbano simultaneamente “axial” e “central” a partir do ponto de origem postulado e descrito por Hurd em 1903 estabelece uma clara relação de reciprocidade e interdependência espacial, não valorada por ele em termos monetários mas inegavelmente econômica, entre o comércio de varejo e os residentes urbanos que dele dependem para se prover de bens e serviços. Trata-se, para os varejistas, antes de mais nada, de se agrupar no “lugar que mais convém aos clientes” para "assegurar-lhes que não deixarão de encontrar aquilo de que precisam".

O ponto de vista das firmas de varejo, neste caso, aponta para o que veio mais tarde a ser batizado na teoria econômica como “economia de aglomeração”, porém com um conteúdo distinto. Não se trata de externalidades positivas da concentração geográfica para as firmas individualmente consideradas, mas de benefícios coletivos diretos para o comércio de varejo agrupado no lugar mais conveniente ao conjunto das famílias do assentamento urbano: "os lojistas não se aglomeram para transacionar uns com os outros, mas para poupar aos seus potenciais fregueses os inconvenientes [custos diretos e indiretos] de buscar o que precisam em lojas dispersas pela cidade. O fato de uma loja atrair o freguês e outra fazer a venda tende a ser compensado, no longo prazo, pelo intercâmbio de fregueses”.

Significa que as famílias precisam residir o mais próximo possível do comércio tanto quanto as firmas precisam se estabelecer à menor distância agregada possível das famílias.

O assentamento dos residentes ao longo dos eixos radiais e suas adjacências, sempre o mais próximo possível do centro da rede, e a aglomeração dos varejistas no assentamento original e segmentos radiais contíguos aparecem, portanto, como manifestações economicamente interrelacionadas do mesmo fenômeno quintessencialmente urbano da aglomeração em geral. Toda a cidade é aglomeração.

Vale recuperar aqui a noção hurdiana de “crescimento urbano simultaneamente axial e central, em todas as direções a partir do ponto de origemnão do centro da cidade, que ainda está por se formar. A formação do centro urbano como desdobramento histórico do assentamento resulta de um processo de “contínua especialização nos negócios e diferenciação nas classes sociais”, que começa com “a separação de comércio e residência”, originalmente unidos em edificações de altos e baixos agrupadas junto aos elementos primordiais: embarcadouros, encruzilhadas, travessias fluviais etc. Ao passo que “mesmo nos menores povoados é vantajoso para as poucas lojas existentes estar aglomeradas”, as novas residências buscam a periferia imediata do assentamento, "onde os preços do solo são mais baixos", porém à menor distância possível dos comércios “para que os lojistas possam se deslocar a pé até o trabalho”. "Com o crescimento da cidade, a tendência é a concentração dos negócios no núcleo comercial e a dispersão periférica das residências ao longo dos eixos radiais. Toda expansão periférica será acompanhada de uma correspondente adaptação do centro de negócios."

Esses fragmentos reunidos compõem uma razoável descrição de como se dá o processo de especialização espacial pelo qual as residências formam a(s) periferia(s) urbanas e os negócios o centro e os subcentros. 

Aqueles dois tipos interrelacionados de economia de aglomeração poderiam, consequentemente, ser ditos primários, de natureza 100% social, explicativos da configuração geral e da dinâmica expansiva das cidades modernas, ao passo que as economias de aglomeração descritas e estudadas no âmbito da economia neoclássica, como os benefícios privados do agrupamento de fábricas em distritos especializados, do varejo em shopping centers e dos bancos no centro financeiro, seriam formas específicas que poderíamos considerar secundárias, ou derivadas. A metrópole capitalista não surgiu da fábrica, do shopping center, nem da Bolsa: tipicamente, ela expandiu e reconstruiu, de acordo com suas necessidades, a própria "cidade moderna", definida por Park como sendo, antes de tudo, um “lugar de trocas, que nasceu e cresceu ao redor do mercado”. [5]

A propósito, cabe registrar aqui a forma como Borrero Ochoa (2018), com base em Camagni, descreve a relação entre o "princípio da aglomeração" e o desenvolvimento das cidades: 

“O princípio da aglomeração nasce nas aldeias rurais e povoados que vivem dos camponeses ou agricultores da região. (..) aos domingos, dia de descanso, o comércio e praças de mercado desses povoados se abrem para que os habitantes rurais venham comprar alimentos, insumos agrícolas e buscar serviços de saúde ou mecânica automotriz. (..) Assim se desenvolve uma cidade a partir de um pequeno povoado dotado de certa dinâmica econômica. [6]

A hipótese de uma relação quantitativa, vale dizer monetária, entre aqueles dois tipos interdependentes de economias de aglomeração teria, naturalmente, de levar em conta a parte dos rendimentos das famílias e do lucro das firmas de varejo que a propriedade da terra reclama como renda de aluguel, aquela tanto maior quanto menor a distância ao núcleo varejista, portanto inversamente proporcional ao custo de deslocamento, e esta tanto maior quanto menor a distância agregada ao conjunto das famílias residentes, vale dizer mais próximo do centro geométrico da rede. Não tenho a pretensão de desenvolvê-la. Basta-me aqui referir que a redução do poder de consumo dos residentes por aumento de distância ao centro comercial, e consequente gasto de transporte, além de imediatamente dedutível dos efeitos de curto prazo das políticas contemporâneas de “tarifa zero” nos transportes urbanos, é uma restrição logicamente inquestionável da teoria dos lugares centrais de Christaller (1933):

"Assim, um consumidor que tenha de se deslocar a um lugar central para adquirir um bem terá menos dinheiro disponível do que um que viva no próprio lugar central, porque tem de pagar o custo do transporte. Ficará, assim, sujeito a comprar menos. Este efeito de fricção da distancia, causado pelo custo do transporte (pressuposto 1) provoca o decréscimo da procura com a distância ao lugar central." [7]

O postulado hurdiano do “crescimento urbano em todas as direções, simultaneamente axial e central”, parece reforçar a hipótese, avançada em artigo já publicado neste blog, [8] de que a estrutura da grande cidade moderna é um arranjo sócio-espacial derivado da disputa incessante entre consumidores e fornecedores por vantagens individuais de localização, sim, de tal maneira, porém, que à economia coletiva do “crescimento residencial axial regulado pelo princípio da [máxima] acessibilidade”, que traduzo como mínimo custo generalizado de deslocamento ao(s) aglomerados(s) comercial(is), corresponde, descontado o montante pago em aluguéis, o benefício coletivo do “crescimento central dos negócios regulado pelo princípio da [máxima] contiguidade [proximity]", que se traduz em menor distância agregada ao conjunto das famílias.

Das vantagens recíprocas, indicadas por Hurd, da localização relativa das famílias e firmas na cidade em expansão, vale dizer do crescimento urbano simultaneamente “axial” e “central”, podemos derivar a hipótese de que a configuração tendencialmente radial-concêntrica das cidades modernas resulta de um princípio de economia de aglomeração generalizado e socialmente construído, algo como o yin-yang da cidade capitalista, em que o “crescimento axial” é a forma de aglomeração própria dos residentes, que minimiza os custos coletivos de deslocamento, e o “crescimento central” a forma de aglomeração própria das firmas, que converte a economia coletiva das famílias em lucros comerciais (e industriais), primeiro sob a forma elementar da maximização das vendas de varejo e, logo, sob a forma complexa da maximização da mão de obra disponível ao mínimo custo de transportes, vale dizer do barateamento relativo da força de trabalho.

fundamento da configuração tendencialmente radio-concêntrica da cidade capitalista madura não é, portanto, a renda do solo, mas o próprio processo de produção-distribuição-consumo de bens e serviços. As famílias se aglomeram o mais próximo possível dos fornecedores e empregadores, e estes o mais próximo possível do conjunto das famílias, para obter o maior benefício, respectivamente, de seu trabalho e de seu capital - sujeitando-se, por conseguinte, a pagar mais aluguel. Espécie de imposto privado sobre o privilégio de ocupar as localizações urbanas mais centrais e proveitosas, a renda, ou preço, da terra urbana opera, como eficazmente demonstrado pelo modelo alonso-thuneniano da distribuição dos distintos usos, como dispositivo de medição 
de sua escassez constitutiva e arbitragem do direito à ocupação

Dado que a produção de riqueza na formação social capitalista supõe, e é tanto maior quanto maior for o consumo de mercadorias, materiais e imateriais, segue-se que a aglomeração radial-periférica dos residentes urbanos ao redor da aglomeração central dos varejistas e prestadores de serviços ou, mais simplesmente, a configuração tendencialmente radioconcêntrica das cidades em expansão, é, em si mesma, um dispositivo espacial facilitador e acelerador do processo de acumulação do capital em geral, uma máquina de economia social a seu serviço, sobre a qual irá se desdobrar, diversificar e expandir - a ponto de produzir o seu contrário, vultosas deseconomias sociais - a organização espacial intrinsecamente desigual da grande metrópole contemporânea. 
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NOTAS

[1] VILLAÇA Flavio, Espaço Intra-Urbano no Brasil. FAPESP São Paulo 2001

[2] BURGESS E W, “The Growth of the City: An Introduction to a Research Project", em PARK R E, BURGESS E W e MCKENZIE R D, The City: Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment, The University of Chicago Press, 1984: Chicago e Londres, p. 50.
http://shora.tabriz.ir/Uploads/83/cms/user/File/657/E_Book/Urban%20Studies/park%20burgess%20the%20city.pdf

[3] CORREIA da SILVA J (2004), "Space in Economics — A Historical Perspective".
https://www.fep.up.pt/docentes/joao/material/space.pdf

[4] BATTY M, "The Linear City: illustrating the logic of spatial equilibrium". Comput.Urban Sci. 2, 8 (2022)
https://link.springer.com/article/10.1007/s43762-022-00036-z

[5] PARK R E, “The City: Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment”, em  PARK R E, BURGESS E W e MCKENZIE R D, The City. The University of Chicago Press, 1984: Chicago e Londres, p.12.
http://shora.tabriz.ir/Uploads/83/cms/user/File/657/E_Book/Urban%20Studies/park%20burgess%20the%20city.pdf

[6] BORRERO OCHOA O, Economía Urbana y Plusvalia del Suelo. Bogotá: Bhandar Editores 2018, p. 65.

[7] [BRADFORD M G e KENT W A, Geografia Humana e Suas Aplicações (Tradução do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Supervisão de Raquel Soeiro de Brito e Paula Bordalo Lema)

[8] JORGENSEN P, “Distância, aglomeração, centralidade: uma hipótese”. À beira do urbanismo  (blog) 08-03-2021

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Sobre este mesmo tema, leia também neste blog: “Distância, aglomeração, centralidade: uma hipótese” (08-03-2021)

2023-03-15

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Apontamentos: Hurd 1903, o pioneiro do espaço intra-urbano

HURD R M, "Chapter XI - Summary", em Principles of City Land Values. New York: Record and Guide, 1903
https://docs.google.com/document/d/1DpC1cKyp8bHu_MAyegpfnGOYmlcZoYR18urRW1w_BUQ/edit?usp=sharing


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Embora rotineiramente mencionado em textos de economia regional e urbana como um dos precursores dessa ciência no início do século XX, Richard Melancthon Hurd (1865-1941) não pertence à ilustre linhagem de autores dos modelos ditos "de equilíbrio" que constituem o cerne da teoria econômica da localização.

Sua presença na árvore genealógica da economia espacial, em cujo tronco figuram nomes como Ricardo (1817), Von Thunen (1830), Haig (1920), Christaller (1933), Losch (1940), Isard (1956), Wingo (1961) e Alonso (1964), é geralmente associada, quase diria limitada, a uma célebre formulação relativa ao problema crucial do custo da distância, apresentada em seu livro de 1903 intitulado Principles of City Land Values:

Dado que o valor [da terra] depende da renda, a renda da localização, a localização da conveniência e a conveniência da proximidade, podemos eliminar os passos intermediários e dizer que o valor [da terra] depende da proximidade. [1]

É na imediata continuação desse aforismo, contudo, geralmente esquecida pela literatura econômica, que reside a essência do pioneirismo de Hurd no campo dos estudos urbanos:

A pergunta que se segue é, proximidade a que? — o que nos conduz aos requisitos dos diferentes aproveitamentos da terra, sua distribuição na área urbana e a consequente criação e distribuição de valor.[2]

Ao contrário do que sugere o título, Principles of City Land Values é uma obra precursora, se não da economia - creio que também é, sob um aspecto que comentarei adiante -, mas da geografia urbana e, por extensão, de um urbanismo que acolha em seu âmbito o estudo dos processos de estruturação, obsolescência e reestruturação das cidades modernas, aí incluídos os bairros, os parcelamentos, as ruas e as edificações. Para provável surpresa do urbanista contemporâneo, todas essas dimensões do espaço construído têm lugar no estudo de Hurd.

E por um bom motivo. No prefácio da obra, seu autor resume em poucas linhas as circunstâncias peculiares em que o economista e avaliador Richard Hurd se defrontou com o problema dos valores do solo urbano e o modo como se propôs a resolvê-lo:

Ao assumir, em 1895, a direção do Departamento de Hipotecas do U. S. Mortgage & Trust Co., [Hurd] buscou em vão, na Inglaterra e nos EUA, livros sobre a ciência da propriedade imobiliária urbana que o ajudassem no trabalho de avaliação. Tendo encontrado apenas artigos fragmentários e, nos livros de economia, somente breves referências ao solo urbano, decidiu esboçar uma teoria da estrutura das cidades e, com base nela, estabelecer as escalas de preços médios gerados pelos diferentes aproveitamentos da terra. (Itálico meu).[3]

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Se a pretensão de “esboçar uma teoria da estrutura das cidades” parece remeter à tradição dos grandes tratados de meados do século XIX - como é o caso, em nossa disciplina, da Teoria Geral da Urbanização, de Ildefonso Cerdà -, o resultado final da obra, atendendo ao objetivo precípuo de “estabelecer as escalas de preços médios gerados pelos diferentes aproveitamentos da terra”, condiz muito mais com a cultura técnico-científica proveniente do establishment industrial e comercial de sua época, cultura que no âmbito dos estudos urbanos antecedeu, na Inglaterra e Estados Unidos, à consolidação da universidade como usina e agência reguladora da produção do conhecimento na segunda metade do século XX. Ainda em 1925, no clássico The City: 
Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment, uma espécie de programa da vertente sociológica que veio a ser conhecida como Escola de Chicago, Park e Burgess mencionam o papel decisivo das concessionárias de serviços públicos e grandes cadeias varejistas na produção de conhecimentos relacionados à organização espacial urbana:

O recente desenvolvimento de cadeias de varejo tornou a localização um tema de grande interesse para as empresas. O resultado foi o surgimento de uma nova profissão. [ Existe agora uma classe de especialistas cuja única ocupação é descobrir com precisão científica, levando em conta as mudanças esperadas das tendências atuais, os melhores endereços para restaurantes, tabacarias, drogarias e outras unidades varejistas cujo sucesso depende fortemente da localização. [4]

Salvo melhor juízo, Richard Hurd é o fundador da linhagem de “urbanólogos de mercado” a que pertencem dois outros eminentes economistas-avaliadores, o estadunidense Homer Hoyt, criador do modelo de estrutura urbana por setores de círculo, em 1939, e o colombiano Oscar Borrero, especialista contemporâneo em preços imobiliários, recuperação de mais-valias fundiárias e organização espacial urbana na América Latina.

Um notável exemplo da conexão técnico-científica entre Hurd e Borrero é a importância que ambos atribuem ao ciclo de vida do valor imobiliário, conceito fundamental para a compreensão das mudanças na estrutura e composição do espaço urbanizado. Os mesmos processos de valorização e desvalorização das localizações descritos por Hurd e por ele sintetizados, em 1903, com uma analogia caracteristicamente organicista

A vida do valor do solo, seja de uma cidade inteira, de um setor urbano ou de um simples lote de terreno, guarda uma estreita analogia com a vida de tudo mais: um pequeno começo, o crescimento e fortalecimento graduais até o ápice, seguindo-se um declínio mais ou menos prolongado (..) um ciclo de mudanças que vai da não-existência à extinção, ou renascimento, quando o processo se repete sobre o mesmo solo. [5]

reaparecem muito mais precisa e detalhadamente explicados por Borrero, um século depois, na linguagem da análise matemática:

Os estudos citados permitiram concluir que o comportamento da valorização real do solo (em pesos constantes) de uma área se assemelha a uma curva de Gompertz ou a uma função logística (..) [6]

No plano estritamente econômico, foi Hurd quem formulou, em 1903, o princípio fundamental da preempção da terra-localização urbana pelo uso - negócio ou residência - que puder fazer por ela a maior oferta de renda. 

Em geral, a base da distribuição de todos os usos comerciais é puramente econômica: a terra é arrematada pela maior oferta e o ofertante aquele que pode obter dela o maior ganho. Observe-se que quanto melhor a localização maior a quantidade de usos que ela pode ter e, consequentemente, maior a quantidade de ofertantes. A base do valor da terra de uso residencial, por sua vez, é social, não econômica – ainda que também arrematada pela maior oferta: os ricos escolhem as localizações que mais lhes agradam, os de rendimentos médios procuram estar o mais perto deles que consigam, e assim por diante na escala de riqueza, ficando os trabalhadores mais pobres nas piores localizações, como as adjacências de fábricas, ferrovias, docas etc., ou longe da cidade. [7]

Na terminologia contemporânea de Smolka e Goytia,

A concorrência entre pretendentes com diferentes funções de oferta de renda define os padrões de uso do solo, correspondendo o aproveitamento econômico da terra ao seu maior e melhor uso. Este conceito, baseado na técnica da avaliação imobiliária, postula simplesmente que a atividade que extraia o maior benefício de uma dada localização é aquela que provavelmente fará por ela a maior oferta de renda. (..) Enquanto houver um uso superior competindo pela localização, o proprietário receberá uma oferta maior pelo terreno. Quando cessarem as ofertas, o terreno terá alcancado o seu 'maior e melhor uso'. [8]

É significativo da primazia dos modelos econômicos de localização no moderno estudo da organização espacial urbana o fato de tal princípio só se ter tornado amplamente difundido e aplicado depois de ajustado por William Alonso, em 1964, à teoria econômica do consumidor.

*

Principles of Land Values é um livro de 160 páginas, profusamente ilustrado, que em muitos aspectos lembra um manual. 

Seu décimo primeiro e último capítulo, que trago ao leitor nesta postagem, é uma síntese dos dez anteriores, dos quais somente a primeira parte do Capítulo I - Princípios Gerais, parte do Capítulo VIII - Tipos de Edificações e a totalidade do Capítulo IX - Aluguéis e Taxas de Capitalização podem ser ditos especializados em teoria da renda da terra urbana e aplicações da ciência da avaliação.

Todos os demais capítulos constituem um estudo pioneiro da localização dos usos econômicos do solo, das mudanças relativas dessas localizações no processo de expansão urbana, da consequente valorização e desvalorização do solo e respectivas edificações e, mais amplamente, dos processos de estruturação e reestruturação espacial urbana. São eles:

Capítulo I - Princípios Gerais (2a. parte), onde Hurd postula o caráter não-aleatório do crescimento urbano como condição sine qua non da avaliação imobiliária e a sujeição da estrutura das cidades a um conjunto de leis, a primeira delas a da expansão em todas as direções a partir do ponto de origem;

Capítulo II - As Forças que Criam as Cidades, de viés sócio-histórico essencialmente funcionalista, talvez por isso mesmo o mais sucinto e insuficiente de toda a obra;

Capítulo III - Localização das Cidades, dedicado às condicionantes fisiográficas, econômicas e políticas do surgimento das cidades - dos EUA principalmente, foco principal do trabalho;

Capítulo IV - O Plano do Chão (título aqui traduzido literalmente com uma expressão cara ao urbanista português Nuno Portas), dedicado ao exame histórico e econômico dos arruamentos e parcelamentos do solo urbano;

Capítulo V - Direções da Expansão, estudo da influência dos corredores de acessibilidade na formação da configuração espacial da cidade; categoria analítica crucial na obra magna de Flávio Villaça “Espaço Intra-Urbano no Brasil” (1998);

Capítulo VI - Distribuição Espacial dos Usos, dedicado ao exame da especialização e diferenciação dos usos, de seus determinantes locacionais e de sua movimentação no espaço conforme o rumo da localização mais valorizada.

Capítulo VII – Feixes de Deslocamento, onde Hurd analisa as localizações dos distintos usos como categorias relacionais derivadas das viagens regulares dos habitantes urbanos e os impactos dessas mesmas correntes de tráfego e seus meios físicos e operacionais sobre o valor das localizações.

Capítulo VIII - Tipos de Edificação (parte), dedicado ao exame da adequação econômica do uso e arquitetura das edificações às localizações, incluindo problemas relativos à verticalização e espaço aéreo;

Capítulo X - Escala de Valores Médios, que traduz em mapas os esforços teóricos e analíticos de Hurd em termos de sua atividade-fim, a avaliação de terrenos, aplicada a um significativo número de cidades estadunidenses de sua época.
 
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As ilustrações são um capítulo à parte em Principles of City Land Values, não por serem belas e vistosas - muito ao contrário -, mas abundantes e comentadas. Incluem uma série de mapas da evolução de Paris entre os anos 56 a.C. e 1705  (ano de sua publicação) e uma preciosa coleção de imagens históricas de cidades dos Estados Unidos. Um interessante acervo fotográfico ilustra a crítica da arquitetura de grandes edificações centrais herdadas do século XIX por inadequação ao princípio do máximo valor da “frente de rua” ou à própria localização.

*

Foi por meio da proficiência técnica, principalmente, mas também do descortino cientificista de Richard Hurd que a grande cidade capitalista começou, em 1903, a tomar ciência de sua constituição espacial e da mecânica - não da natureza social e histórica, aspecto para o qual o economista pragmático e conservador não estava aparelhado - de suas transformações.

De seu objeto Hurd soube, no entanto, extrair e ensinar uma lição básica nada menos que revolucionária: a de que a cidade é uma entidade espacial maleável, cujas localizações são sempre relativas e seus valores uma estrutura em permanente estado de “equilíbrio instável” que arrasta consigo, para bem e para mal, o parque edificado:

Toda redução do custo das edificações, todos os aperfeiçoamentos na construção, todas as invenções tendem a destruir o valor das edificações existentes. Todas a melhorias em transportes, como os bondes, os elevados, o metrô, a bicicleta, o automóvel – e no futuro talvez as máquinas voadoras– tendem a destruir o valor das localizações que dependem dos transportes existentes. [9]

Faz todo o sentido que sua obra seja arrematada com um parágrafo que começa dizendo: “A mudança é a lei da vida”.

*

Flavio Villaça (1929-2021)
Até onde chegam meus conhecimentos atuais, Principles of City Land Values é o estudo pioneiro dessa categoria do espaço geográfico que o recém-falecido Flávio Villaça propôs designar, em discussão a que dedica toda uma seção de sua obra magna, como "intra-urbano"
[10]

título desta postagem é uma homenagem do blog ao notável arquiteto, urbanista, geógrafo, pesquisador e professor.   

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NOTAS

[1] HURD R M, Principles of City Land Values. New York: Record and Guide, 1903, p. 13: “Since value depends on economic rent, and rent on location, and location on convenience, and convenience on nearness, we may eliminate the intermediate steps and say that value depends on nearness.”
https://archive.org/.../principlesofcity.../page/n4/mode/1up

[2] Id., p.13: “The next question is, nearness to what? – which brings us to the land requirements of different utilities, their distribution over the city's area and the consequent creation and distribution of values.”

[3] Id. Prefácio: “When placed in charge of the Mortgage Department of the U. S. Mortgage & Trust Co. in 1895, the writer searched in vain, both in England and this country, for books on the science of city real estate as an aid in judging values. Finding in economic books merely brief references to city land and elsewhere only fragmentary articles, the plan arose to outline the theory of the structure of cities and to state the average scales of land values produced by different utilities within them.”

[4] BURGESS E W, “The Growth of the City: An Introduction to a Research Project", em BURGESS, E W e PARK R E, The City: Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment, The University of Chicago Press, 1984: Chicago e Londres, p.5.
http://shora.tabriz.ir/Uploads/83/cms/user/File/657/E_Book/Urban%20Studies/park%20burgess%20the%20city.pdf

[5] HURD R M, op. cit., p. 18. "The life of value in land, whether the unit taken is a city, a section of a city, or a single lot, bears a close analogy to all other life in being normally characterized by a small beginning, gradual growth and increased strength, up to a point of maximum power, after the attainment of which comes a longer or shorter decline to a final disappearance.  (..) undergoes a continuous evolution from a state of non-existence through a cycle of changes to a final dissolution, or to a new birth, when the process is repeated on the same land.”

[6] BORRERO Oscar, “Formación de los precios del suelo urbano”, Lincoln Institute of Land Policy, Educación a Distancia, 2000, pp.27-28.  "Los estudios citados han permitido concluir que el comportamiento de la valorización real de la tierra (en pesos constantes) de un área se asemeja a una curva de Gompertz o a una logística (..) Partiendo de mínimo precio determinado, que puede ser el valor agrícola, al ser incorporada dicha área dentro del perímetro urbano, bien sea espontáneamente o en forma planificada, la tasa de valorización real se acelera inicialmente en los primeros años, debido al proceso de urbanización, hasta llegar a su máximo nivel de crecimiento que coincide con el punto inflexión de la curva, identificado en el gráfico como "B". A partir de entonces, el valor continúa aumentando en términos constantes (por encima de la inflación) aunque su tasa anual de crecimiento o valorización se hace cada vez menor. Al llegar al punto C, los precios del terreno están creciendo paralelamente al ritmo de valorización real es entonces cero. A partir de dicho momento, los precios no compensarían la inflación monetaria, o la pérdida del poder adquisitivo de la moneda y la tasa de valorización real es negativa. Por otra parte, en ciertas zonas centrales (o de aglomeraciones intensiva y consolidada de actividades económicas) que presentan síntomas de deterioro económico y/o físico, su renovación urbana como resultante de inversiones del Estado o de los particulares, puede hacer que en un momento dado la tasa negativa que venían registrando se frene y durante un tiempo se obtengan nuevas tasas positivas de valorización para luego continuar a un ritmo similar a la inflación durante el período que dure el efecto de la renovación. Este efecto de renovación urbana estaría representado en el Gráfico por la línea punteada a partir del punto "R".
https://drive.google.com/file/d/12719bJhO6ztK8uQ2cj6MhJzEwVuiH6Vv/view?usp=sharing

[7] HURD R M, op. cit., p.77-8: “In general the basis of the distribution of all business utilities is purely economic, land going to the highest bidder and the highest bidder being the one who can make the land earn the largest amount. We may note that the better the location the more uses to which it can be put, hence the more bidders for it. On the other hand, the basis of residence values is social and not economic—even though the land goes to the highest bidder—the rich selecting the locations which please them, those of moderate means living as near by as possible, and SO on down the scale of wealth, the poorest workmen taking the final leavings, either adjacent to such nuisances as factories, railroads, docks, &c., or far out of the city.”

[8] SMOLKA O e GOYTIA C, “Land Markets”, em The Wiley Blackwell Encyclopedia of Urban and Regional Studies 15-04-2019, Wiley Online Library: "Competition among users with different bid-rent functions thus defines urban land-use patterns, with land developed at its “highest and best use.” This concept, widely relied upon for real estate assessments, simply states that the activity drawing the most benefit from a certain location is likely to be in a position to offer the highest bid for that location. (..) As long as there is a superior use competing for a location, the landowner receives a higher bid for the parcel. When the bidding stops, the parcel is said to be at its highest and best use.

[9] HURD R M, op. cit, p. 159: “All cheapening of the cost of buildings, all improvements in construction, all inventions, tend constantly to destroy the value of existing buildings. All improvements in transportation, such as the trolley, the elevated, the underground, the bicycle, the automobile - and in future possibly the flying machine - tend to destroy the value of these locations which depend on existing transportation.”


[10] VILLAÇA F (1998), Espaço Intra-Urbano no Brasil. São Paulo: FAPESP 2001


2021-05-10

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Hurd 1903: a estrutura das cidades

HURD R M, Principles of City Land Values. New York, Record and Guide 1903 https://archive.org/details/principlesofcity00hurdrich/page/n4/mode/1up

(..) Beginning with the structure of cities, if cities grew at random the problem of the creation, distribution and shifting of land values would be insoluble. A cursory glance reveals similarities among cities, and further investigation demonstrates that their structural movements, complex and apparently irregular as they are, respond to definite principles. The basis of this similarity is that the same factors create all modern cities; commerce and manufactures, with political and social forces, being everywhere operative, the chief difference in influence coming from variations in their relative power.

Cities originate at their most convenient point of contact with the outer world and grow in the lines of least resistance or greatest attraction, or their resultants. The point of contact differs according to the methods of transportation, whether by water, by turnpike or by railroad. The forces of attraction and resistance include topography, the underlying material on which city builders work; external influences, projected into the city by trade routes; internal influences derived from located utilities, and finally the reactions and readjustments due to the continual harmonizing of conflicting elements. The influence of topography, all-powerful when cities start, is constantly modified by human labor, hills being cut down, waterfronts extended, and swamps, creeks and low-lands filled in, this, however, not taking place until the new building sites are worth more than the cost of filling and cutting. The measure of resistance to the city's growth is here changed from terms of land elevation or depression, and hence income cost, to terms of investment or capital cost. The most direct results of topography come from its control of transportation, the water fronts locating exchange points for water commerce, and the water grade normally determining the location of the railroads entering the city.

As cities grow, external influences become constantly of less relative importance, while the original simple utilities develop into a multitude of differentiated and specialized utilities, tending constantly to segregate into definite districts. Growth in cities consists of movement away from the point of origin in all directions, except as topographically hindered, this movement being due both to aggregation at the edges and pressure from the centre. Central growth takes place both from the heart of the city and from each subcentre of attraction, and axial growth pushes into the outlying territory by means of railroads, turnpikes and street railroads. All cities are built up from these two influences, which vary in quantity, intensity and quality, the resulting districts overlapping, interpenetrating, neutralizing and harmonizing as the pressure of the city's growth bring them in contact with each other.

The fact of vital interest is that, despite confusion from the intermingling of utilities, the order of dependence of each definite district on the other is always the same. Residences are early driven to the circumference, while business remains at the centre, and as residences divide into various social grades, retail shops of corresponding grades follow them, and wholesale shops in turn follow the retailers, while institutions and various mixed utilities irregularly fill in the intermediate zone, and the banking and office section remains at the main business centre. Complicating this broad outward movement of zones, axes of traffic project shops through residence areas, create business subcentres, where they intersect, and change circular cities into starshaped cities. Central growth, due to proximity, and axial growth, due to accessibility, are summed up in the static power of established sections and the dynamic power of their chief lines of intercommunication.  [HURD 1903, pp. 14-16]


2020-11-12