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domingo, 3 de agosto de 2025

O VLT de Botafogo e o Metrô Rio-Itaboraí


Diário do Rio 25-07-2025
https://diariodorio.com/estudo-do-bndes-propoe-nova-linha-de-vlt-entre-botafogo-e-leblon-com-20-estacoes-na-zona-sul/

Montagem: Àbeiradourbanismo
A essa altura, a frase "O projeto prevê integração com o Metrô" quer dizer que o VLT de Botafogo, assim como o da Portuária / Centro, [1] terá uma tarifa própria com um desconto irrisório para a 'viagem integrada'. 

Ou seja, o sistema de transportes do Rio de Janeiro seguirá sendo um emaranhado de lucrativas permissões e concessões que, tudo considerado, provavelmente sai muito mais caro para os usuários e para o próprio Estado do que se fosse administrado como um sistema único verdadeiramente integrado. 

Como escrevi em outra postagem há mais de três anos: 

(..) sistemas de transporte urbano em grandes cidades são inapelavelmente deficitários pela simples razão de que a tarifa que cobre seus custos de implantação e operação já não cabe, faz tempo, no bolso da imensa maioria dos usuários. A circulação é a mãe de todas as deseconomias metropolitanas e o subsídio coletivo à mobilização - e ao custo! - da força de trabalho a primeira lei do transporte urbano. (..) 

A ideia recorrente de que a privatização dos transportes de grande capacidade reduz o déficit é um embuste: os privados não arcam com os custos de implantação e aquisição de material rodante e a fragmentação do sistema gera desarranjos em cadeia que o tornarão ainda mais caro a longo prazo. As concessões são meras oportunidades de gestão monopolista de pedaços da rede e seus componentes - a operação, de preferência - às expensas do conjunto. [2]

Falando nisso, se a IA não serve para otimizar a gestão econômica de sistemas públicos complexos, ainda que deficitários, para quê serve, afinal?    
 
E vamos combinar: por que razão só a Zona Sul tem direito a uma melhoria de transporte patrocinada pelo BNDES e o Ministério das Cidades? 

Sim, é verdade. Foi anunciado recentemente pela imprensa o início dos trabalhos para a implantação da Linha 3, ligando o Rio de Janeiro a Niterói, São Gonçalo e Itaboraí. 

Contudo, no saite do Metrô Rio não há qualquer menção a essa linha e esse plano, assim como a nenhum outro. Seus principais links são, muito sintomaticamente, “Relação com Investidores” e “Informações para o Mercado”. O saite da RioTrilhos, instituição que carrega o nome pomposo de Companhia de Transporte sobre Trilhos do Estado do Rio de Janeiro, é uma viagem ao nada. 

Mas ficamos sabendo, pelo saite do Programa de Engenharia de Transportes da COPPE UFRJ, [3] que em 3 de de junho foi lançado o “projeto PRISMA”, descrito como “uma iniciativa inovadora da COPPE/UFRJ que vai dar suporte técnico à implantação da tão aguardada Linha 3 do Metrô do Rio de Janeiro”. 

A pergunta é: se não é foi a RioTrilhos, nem o Metrô, nem a COPPE (cuja missão aqui é dar suporte técnico à implantação da Linha 3), quem, afinal, propôs, quem analisou e quem decidiu que a ligação Rio-Itaboraí é o projeto de expansão prioritário do Metrô do Rio?

É por intermédio do jornal O Globo de 08-06-2025 [4] que ficamos sabendo (?) a origem e o percurso desse plano:

“O estudo para a criação da nova linha metroviária, que deverá conectar São Gonçalo, Niterói, Itaboraí e Rio de Janeiro, é fruto de um pedido do governo federal, via emendas parlamentares, no valor de R$ 26 milhões. O valor será repassado em três parcelas, e a primeira já foi encaminhada. O estudo tem prazo de 30 meses para conclusão. De acordo com a Coppe, o projeto busca oferecer uma base técnica para decisões estratégicas sobre o traçado, a viabilidade econômica e os impactos sociais da linha, prometida pelos prefeitos do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, e de Niterói, Rodrigo Neves, caso as duas cidades vençam a disputa pela organização dos Jogos Pan-Americanos de 2031. As emendas parlamentares foram encabeçadas pelo senador Flavio Bolsonaro (PL) e envolve mais um senador e quatro deputados federais.”

Dos sofismas do urbanismo Panamericano e Olímpico já falamos muito neste blog. A novidade nesta matéria é dizer, de um modo um tanto capcioso, que o estudo para a criação da Linha 3 provém de "um pedido do governo federal via emendas parlamentares" (!?) cuja procedência só (muito) mais adiante se esclarece: "(..) foram encabeçadas pelo senador Flavio Bolsonaro (PL) e envolve mais um senador e quatro deputados federais".      

A única boa notícia aqui é que a seriedade e qualidade técnica do estudo em questão está garantida. Diz O Globo:

“O estudo é coordenado pelo professor Rômulo Orrico, do Programa de Engenharia de Transportes (PET) da Coppe. Questionado sobre o objetivo do projeto, ele comparou a iniciativa a trabalhos anteriores e disse que busca um estudo técnico “que funcione”.

— Sobre o itinerário, por exemplo, levantamos oito estudos anteriores, inclusive um dos anos 1960, do Negrão de Lima (governador do então estado da Guanabara, de 1965 a 1971). Nosso projeto não está preso aos itinerários pensados pelos anteriores. Vamos examiná-los, mas é importante lembrar que a implementação não cabe a nós. A intenção é trazer as melhores informações e análises, e o gestor toma a decisão — diz.

Ele destacou os desafios que o estudo deve enfrentar ao longo dos próximos 30 meses, como o apagão de dados sobre mobilidade e comportamento do trânsito.

— É histórica no Brasil a carência de dados nesse campo. A morfologia das cidades mudou, subcentros cresceram. Duque de Caxias, por exemplo, era uma cidade dormitório nos anos 1970, e veja a centralidade dela hoje em dia. Essas mudanças implicam na necessidade de novos estudos. Vamos lidar com uma cidade complexa. Niterói não é um subúrbio do Rio. A ligação entre Niterói e São Gonçalo, pelos dados do IBGE, é a segunda mais importante ligação intermunicipal do país, quando consideramos origem e destino. Só perde para São Paulo e Guarulhos. Vamos precisar de um baita projeto técnico — reconhece.

Desejo, de coração, boa sorte ao PET COPPE, minha alma mater em matéria de transportes urbanos, nessa empreitada - interessantíssima, mas, dadas as circunstâncias, não menos espinhosa e arriscada. 

2025-08-03

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[1] O VLT da Portuária/Centro agora é “tarifa zero”. Por qual razão, ainda não sei. Até há pouco a "tarifa integrada" era um pequeno desconto sobre a soma das duas tarifas, que, salvo engano, continua sendo a regra geral na cidade.

[2] “Transmilenio:quem vai pagar a conta?"À beira do urbanismo 08-01-2022
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2022/01/transmilenio-quem-vai-pagar-conta.html

[3] "Coppe inicia estudo milionário para Linha 3 do metrô, que ligaria Rio a Niterói sob a Baía de Guanabara"
https://oglobo.globo.com/rio/bairros/niteroi/noticia/2025/06/08/coppe-inicia-estudo-milionario-para-linha-3-do-metro-que-ligaria-rio-a-niteroi-sob-a-baia-de-guanabara.ghtml

domingo, 25 de maio de 2025

Aluguel rotativo é o nome do negócio


Diário do Rio 19-05-2025
https://diariodorio.com/studios-e-unidades-de-ate-50-m%C2%B2-puxam-alta-no-mercado-imobiliario-do-rio/

A preferência dos cariocas por imóveis menores vem deixando de ser uma tendência para se consolidar como realidade no mercado imobiliário. Segundo o Secovi Rio, o Estado registrou o lançamento de 1.667 studios no último período. E o movimento não é pontual. Nos anos anteriores, houve um crescimento de 35% nos lançamentos de apartamentos compactos, enquanto os imóveis com quatro quartos despencaram quase 40%. (..) 
De acordo com a Ademi-RJ, cerca de 80% das unidades com até 50 metros quadrados são vendidas ainda na planta — muitas vezes, como opção de investimento para locação. (..)

2025-05-24

domingo, 2 de fevereiro de 2025

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Porto Maravilha: Sem plano nem projeto - como não fazer uma Operação Urbana


O Globo 16-12-2024
https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/12/16/novo-porto-do-rio-comeca-a-ter-moradores-mas-ainda-espera-por-comercio-e-servicos-como-e-viver-num-bairro-que-nasce.ghtml

Região já tem 14 empreendimentos residenciais, que somam 22 prédios e quase dez mil apartamentos; pelo menos mais quatro serão lançados em 2025
(..) Um dos primeiros a passar a morar com a esposa Bárbara no [condomínio residencial] Praia Formosa, há três meses, Grijó tem pressa.

— A gente está aguardando chegar shopping, banco, um grande supermercado, mais farmácias, lanchonetes e restaurantes melhores, uma padaria adequada, mais escolas e um novo posto de saúde, porque o que tem não vai dar conta — enumera o ex-gari e hoje operador de máquinas da Comlurb, que já varreu a Rua Geógrafo Milton Santos, onde vive hoje. (..)

(..) na sua rotina diária os recém-chegados contam, na Rua Santo Cristo, apenas com estabelecimentos modestos para atender quem vive nos velhos casarões do lugar: um supermercado, uma farmácia, bares e restaurantes pequenos, papelaria e oficina, entre outros. Encontram pelo menos uma igreja evangélica. Na praça que corta a via, há uma paróquia católica. E, no número 242, funciona há cerca de três anos a filial do Centro Educacional Santo Cristo, de Madureira, com 150 crianças, do berçário ao terceiro ano do ensino fundamental (..)

Para os meninos maiores, a única opção na redondeza é uma unidade pública municipal. O Ginásio Educacional Tecnológico Benjamin Constant atende 413 alunos do ensino fundamental I e II e de turmas de correção de fluxo. (..)

A educação dos gêmeos João Pedro e Maria Luz, de 9 meses, é uma preocupação, mas está longe de ser a única do casal Pedro Henrique Brandão e Kelly Cozini, que se mudou em setembro do Estácio para o Praia Formosa:

— Deveria ter um sinal de pedestres em frente ao condomínio, onde passam ônibus — reivindica a contadora Isabel. 

Pedro, que é empregado da Transpetro, acrescenta:

— Aqui está parecendo com a Cidade Nova, onde morei na adolescência. Não temos para onde ir, principalmente à noite e com criança pequena. Não tem uma pizzaria, um shopping. Mas estou na expectativa da chegada do Flamengo. (..)


Leia neste blog: No Porto Maravilha, a moradia é à bangu
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2021/07/no-porto-maravilha-moradia-e-bangu.html

2024-12-18

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Rio de Janeiro: Adeus aos PEUs?


Engenharia em Revista 30-09-2024
https://portalclubedeengenharia.org.br/artigo/plano-diretor-revoga-planos-de-estruturacao-urbana-dos-bairros-cariocas/

O Plano Diretor de Urbanismo de uma metrópole de mais de 6 milhões de habitantes, ocupando um território de 1.200 km2, profundamente diverso em todos os sentidos da palavra, não pode existir sem, pelo menos, uma dupla dimensão espacial: municipal e local - para não falar da metropolitana.

A revogação dos Planos de Estruturação Urbana (PEUS)
é uma insanidade, só compreensível no marco da ofensiva que vem sendo empreendida, em todas as grandes cidades brasileiras, pela indústria imobiliária, muitas vezes encoberta por generalidades sobre o adensamento urbano e a cidade de 15 minutos, em prol de sua máxima liberdade de ação, vale dizer da mínima regulação, ou até mesmo da não regulação urbanística.

Sinal inequívoco, creio, da generalização do “vale tudo por dinheiro” que estamos vivendo - haja vista a proliferação irrefreável dos negócios de apostas - e que, no urbanismo, se expressa como total liberdade na competição pela rentabilidade dos investimentos imobiliários. O objetivo é, nos nichos urbanos de valorização imobiliária, construir o máximo em cada terreno para extrair do empreendimento algum lucro de escala e o máximo em renda fundiária.

Como vamos sair desse buraco eu não sei, mas me ocorre que os Planos Diretores e os PEUS, assim como a “função social da propriedade" e seus derivados (outorga onerosa, IPTU progressivo etc), que lhe dão suporte, se tornaram institutos respeitados e amplamente aceitos como resultado do movimento social que desembocou na Assembleia Constituinte de 1988. Vale a pena lembrar. 

2024-10-02

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Mercado e plano, para variar


O Globo 29-07-2024
https://oglobo.globo.com/blogs/capital/post/2024/07/a-nova-tendencia-imobiliaria-poucos-metros-muitos-investidores.ghtml

Se você tem dúvida de que os mercados de bens imóveis e serviços urbanos são a força motriz da construção da cidade e o planejamento urbano o fator subordinado - que, como escreveu Benevolo no já longínquo ano de 1963, "aparece, de modo geral, com atraso relativamente aos acontecimentos que tem por missão controlar e guarda um caráter curativo" [1] -, considere a notícia ao lado.

Nada menos do que 1,9 bilhão de reais serão investidos este ano, nas regiões centrais e pericentrais da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, em aquisição de "quitinetes gourmetizadas" para fins de aluguel por temporada.

Como de praxe, a notícia é dada em tons ufanistas e sem qualquer menção ao déficit habitacional na RMRJ, estimado pela Fundação João Pinheiro em 410 mil domicílios. [2] O que reflete, independentemente do contexto, o fato sobejamente conhecido de que o "mercado" está pouco se lixando para o problema da moradia da população urbana.

E como se fosse pouco, 99,99% do farto noticiário sobre o mercado de imóveis que o Google me manda todos os dias se refere a uma dimensão mágica do mundo da economia concorrencial onde os preços relativos sempre sobem e inexistem a crise climática e a emergência ambiental. 

Por isso eu insisto: o planejamento urbano será tanto mais relevante e eficaz quanto mais clara seja, na cabeça dos planejadores e na política das instituições de planejamento, a consciência de suas limitações - que podem, com certeza, ser maiores ou menores a depender dos ciclos econômicos e das conjunturas políticas. 

Imaginar, porém, em nossa sociedade, o planejamento urbano no comando da construção das cidades, ou fazer de conta que o problema não existe, mais parece flerte com o autoengano.

2024-08-07

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[1] BENEVOLO L (1963), Aux Sources de l'urbanisme moderne. Horizons de France 1972, p. 5
[2] “Estudo mostra que déficit habitacional no Rio é o maior dos últimos anos: mais de meio milhão de moradias”. O Globo 15-05-2024, por Carmelio Dias.
https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/05/15/estudo-mostra-que-deficit-habitacional-no-rio-e-o-maior-dos-ultimos-anos-mais-de-meio-milhao-de-moradias.ghtml

domingo, 23 de junho de 2024

Política urbana ou pirataria rentista?


Metrópoles 15-06-2024
https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/estadio-do-flamengo-percalcos-de-transferir-o-potencial-construtivo
Supervasco 19-06-2024
https://www.supervasco.com/noticias/imagens-do-projeto-de-reforma-de-sao-januario-aprovado-na-camara-394221.html


Montagem: Àbeiradourbanismo

É assim que a transferência do potencial construtivo, um instrumento de manejo de mais-valias fundiárias de grande utilidade em projetos de desenho urbano com acréscimo de espaço público - aplicado com sucesso, por exemplo, na implantação da 3a Perimetral de Porto Alegre -, está em vias de se tornar, no Rio de Janeiro, um maná especulativo de interesse dos grandes clubes de futebol e da incorporação imobiliária, com a bênção do prefeito Eduardo Paes e o Aprovo da Câmara dos Vereadores.

Adivinhem para onde vai o "potencial construtivo não utilizado" a ser transferido dos terrenos dos novos estádios localizados no bairro - que já foi aristocrático e industrial e agora poderá se tornar "futebolístico" - de São Cristóvão: para a Barra da Tijuca, a Meca imobiliária do Rio de Janeiro, ora bolas!

Cabe perguntar, aliás: como se calcula “o potencial construtivo não utilizado”? Seriam os campos de jogo cercados de arquibancadas classificados como ‘volumes não edificados’?

E como se não bastasse, os novos estádios de Flamengo e Vasco da Gama, que são as maiores torcidas do Rio de Janeiro (a do Flamengo é, de longe, a maior do Brasil), ficam a cerca de 1km um do outro e a menos de 2km… do Maracanã - que, ao custo de bilhões jamais amortizados, e sob o patrocínio do mesmíssimo prefeito Eduardo Paes, foi reconstruído duas vezes neste século: para os Jogos Pan Americanos de 2007 e para os Jogos Olímpicos de 2016!

Montagem: Àbeiradourbanismo
2024-06-23

Sobre os percalços do complexo desportivo do Maracanã no século XXI, leia:
“Julio Delamare e Célio de Barros: NÃO à destruição dos bens do patrimônio desportivo e educacional brasileiro”. À beira do urbanismo 01–04-2013.
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2013/03/julio-delamare-e-celio-de-barros-nao.html

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Predestinado (com licença de J Simão)


Diário do Rio 16-04-2024
https://diariodorio.com/terreno-em-guaratiba-que-seria-sede-da-jmj-deve-ser-novo-autodromo-do-rio/
O Rio de Janeiro pode voltar a ter um autódromo para receber corridas de carros e motos. Isso porque um projeto de lei publicado no dia 22 de março no Diário Oficial da Câmara do Rio, prevê a construção de um “autódromo parque” em Guaratiba, na Zona Oeste. O projeto estabelece o trecho do Rio Piraquê, situado entre a Avenida Dom João VI e a Estrada da Matriz, como local de construção. Trata-se do terreno onde seria a sede da JMJ, local que tem o empresário Jacob Barata como um dos sócios. A área, que é imensa, tem dois milhões de metros quadrados. (..)
O melhor lugar para as corridas de baratinhas...
é o terreno do Barata!

2024-04-17

sábado, 25 de novembro de 2023

Apontamentos: Passos 2016 e a formação de Belo Horizonte

Estes apontamentos são parte de um processo de estudo compartilhado. À beira do urbanismo está à disposição dos autores cujo trabalho aqui se comenta para suas considerações.

PASSOS D, “A formação do espaço urbano da cidade de Belo Horizonte: um estudo de caso à luz de comparações com as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro”. Mediações - Revista de Ciências Sociais, UEL, v. 21, n. 2, p. 332–358, 2016.
https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/22406/pdf

RESUMO (da autora)

O presente trabalho procura analisar como se constituiu o espaço urbano e social da cidade de Belo Horizonte, no final do século XIX e início do século XX, à luz de comparações com as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro no mesmo período. Inaugurada em 1897, a nova capital mineira se tornou a primeira cidade planejada do país. O objetivo deste ensaio é o de explicitar como as ideias republicanas inspiraram a experiência urbanística da cidade, seu aspecto modernizante e ao mesmo tempo sua estratificação social, que classificava e hierarquizava o território belorizontino no intuito de assegurar as condições de vida para uma população em rápido crescimento, adequando a cidade aos negócios, e criando mecanismos de controle social para a população carente e trabalhadora de Belo Horizonte.



Ótima proposta - comparar a formação do espaço urbano de Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro.

Inteiramente focado, porém, como muitos textos no campo da História Urbana brasileira, na ideologia subjacente aos projetos modernizadores de inícios do século XX - como se fosse minimamente provável haver diferenças substanciais, sob este aspecto, em três das principais unidades territoriais da conservadoríssima República recém-criada -, o artigo perde a chance de abordar um aspecto pouquíssimo tratado e, a meu juízo, da maior relevância, que tento resumir numa pergunta:

Como podem as três maiores metrópoles brasileiras dos anos 1950-1975 apresentarem, como diz Villaça em Espaço Intra-Urbano no Brasil (1998), “importantes traços comuns de organização intra-urbana” se um século antes eram, respectivamente, (1) uma cidade inexistente, (2) um "arraial de sertanistas"* e (3) a capital de um império de 8 milhões de km2?

2023-11-29

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* “Nos primeiros anos dos Oitocentos, a cidade possuía ainda feições claras de um arraial de sertanistas, que funcionara como entreposto comercial.” ASSUNÇÃO P, “As condições urbanas da cidade de São Paulo no século XIX”. Histórica (São Paulo. Online) , v. 37 , p. 3 - , 2009.
http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao37/materia03/texto03.pdf

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Apontamentos: Medeiros & Medeiros 2022 - o subúrbio de Lima Barreto

Estes apontamentos são parte de um processo de estudo compartilhado. À beira do urbanismo está à disposição dos autores cujo trabalho aqui se comenta para suas considerações.

MEDEIROS, Juliane P. C. e MEDEIROS, Ana Elisabete de A. “Os subúrbios cariocas no olhar de Lima Barreto”, Thésis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, p. 160-173, dez. 2022.
https://thesis.anparq.org.br/revista.../article/view/303/314

Montagem: Àbeiradourbanismo
Lima Barreto é, com toda certeza, uma valiosíssima testemunha da formação dos subúrbios do Rio de Janeiro e, provavelmente, dos subúrbios brasileiros em geral. Sua obra corresponde, muito precisamente, ao período apontado por mais de uma fonte - Queiroz Ribeiro para o Rio de Janeiro[1] e Strohaecker para Porto Alegre [2] - como sendo o da formação do mercado de terras periféricas às nossas capitais recém convertidas ao status de republicanas. Esse artigo é, portanto, absolutamente oportuno e relevante para leitores interessados na história urbana brasileira e, particularmente, na formação das metrópoles capitalistas em nosso país. Vale uma análise muito mais atenta e profunda do que trago nesses apontamentos. 

Apenas adianto aqui algumas observações, derivadas de meus estudos para o artigo "Porto Alegre cidade radiocêntrica (2)"[2a], de maio de 2o2o, acompanhadas de esclarecedoras citações da obra de Queiroz Ribeiro.
 
Não penso que a suburbanização em geral possa ser dita “política urbana”[3], tampouco que a suburbanização retratada na obra de Lima Barreto seja “resultado da estratégia de afastamento da classe proletária do centro urbano”[4], como foi o caso, por exemplo, da transferência de favelados da Zona Sul do Rio de Janeiro para conjuntos habitacionais periféricos nas décadas de 1960 e 1970.

Como nas demais capitais provinciais do Império brasileiro, a suburbanização do Rio de Janeiro tem início nas décadas de 1880-90 com o surgimento do mercado de terras periféricas à capital, e suas companhias loteadoras, ainda à margem de políticas e regulamentos urbanísticos e sujeitas somente às leis do próprio mercado. 

Importa destacar que este primeiro ciclo da suburbanização carioca não se baseia no assentamento de proletários, que não tinham crédito para adquirir lotes e casas nem recursos para arcar com deslocamentos diários ao centro urbano: 

(..) o desenvolvimento dos transportes coletivos por trens e bondes irá incorporar ao tecido urbano uma grande quantidade de terras, diminuindo fortemente o poder monopolista dos proprietários de cortiços, estalagens e casas-de-cômodos localizados na parte central da cidade. Num primeiro momento, porém, não há um deslocamento das camadas mais pobres para os subúrbios recém-urbanizados, em razão do elevado preço dos trens e bondes e da precariedade dos serviços. Para aquelas camadas sociais, o morar no centro é vital, pois seu sustento depende da “viração” diária e seu rendimento muito magro para cobrir os custos do deslocamento. (..) [QR p. 216]

Essa circunstância dará outro destino à maioria dos trabalhadores residentes nos cortiços e casas de cômodos das áreas centrais afetadas pelas grandes obras de modernização urbana da primeira década do século XX (Rua Mem de Sá,  Avenidas Central e Rodrigues Alves):       

A crise do sistema rentista de produção de moradias gera uma piora nas condições de vida das “classes pobres” da cidade. Deslocadas do centro, elas irão aumentar a densidade de ocupação das casas-de-cômodos nas zonas contíguas ao centro, especialmente na Gamboa, Sant’Anna, Santa Rita e São José. (..) [QR p. 217]

A proliferação de loteamentos suburbanos no Rio de Janeiro de Lima Barreto supunha, dentre outras coisas, a existência de uma camada social de adquirentes de imóveis com algum patrimônio e/ou capacidade de endividamento. Essa "demanda solvável" provinha dos estratos inferiores da nascente classe média, formados por pequenos comerciantes, barnabés, militares, artesãos e, em pequena medida, operários qualificados. [5] [6] 

O surgimento de "camadas médias" na cidade também terá um importante papel na expansão da zona suburbana da Central do Brasil  e da zona norte verificado nas últimas décadas do século XIX e nos primeiros anos deste século. [QR p. 230] 

Ainda que extraordinariamente matizado, o ambiente em que se desenrola a trama de Clara dos Anjos é regido por personagens ciosos de suas conquistas materiais e expectativas de ascensão em uma sociedade até há pouco marcada pelo contraste primordial entre senhores (proprietários de terras, de casas de comércio e seus prepostos) e trabalhadores escravizados. O primeiro dentre esses personagens é o próprio Joaquim dos Anjos, pai de Clara:

"(..) Toda sua ambição se cifrou em obter um pequeno emprego público que lhe desse direito a aposentadoria e a montepio, para a família que ia fundar. Conseguira, ao fim de dois anos de trabalho, aquele de carteiro, havia bem quatro lustros, com o qual estava muito contente e satisfeito da vida, tanto mais que merecera sucessivas promoções. Casara meses depois de nomeado; e, tendo morrido sua mãe, em Diamantina, como filho único, herdara-lhe a casa e umas poucas terras em Inhaí, uma freguesia daquela cidade mineira. Vendeu a modesta herança e tratou de adquirir aquela casita nos subúrbios em que ainda morava e era dele. O seu preço fora módico, mas, mesmo assim, o dinheiro da herança não chegara, e pagou o resto em prestações." (..)" [LB p. 1035 ]

Assim também os pais de Cassi: 

Ao melhorarem as suas condições financeiras, com uma promoção a propósito e a compra daquela casa, na estação do Rocha, com o produto de uma herança que tocara à mulher, Manuel de Azevedo veio encontrar, aos treze anos, o filho completamente viciado (..)  [LB p.1062] 

Propôs, dias depois, à sua esposa, que pusesse o rapazola a aprender um ofício, a fim de discipliná-lo. Dona Salustiana revoltou-se e esbravejou: — Meu filho aprender um ofício, ser operário! Qual! Ele é sobrinho de um doutor e neto de um homem que prestou muitos serviços ao país.  [LB p. 1063]

E outros mais:

O armazém em que Marramaque era empregado havia de tudo: ferragens, roupas feitas, isto é, camisas, calças, ceroulas grosseiras, para trabalhadores; armas, louças etc. etc. Comprava diretamente nos atacadistas da Corte; além disso, o seu proprietário era intermediário entre os pequenos lavradores e as grandes casas da Capital do Império, isto é, comprava as mercadorias àqueles, por conta destas, com o que ganhava comissão. [LB p. 1065]

Num dos subúrbios, na proximidade da casa de Cassi, veio a residir um casal. A mulher era moça, fruída de carnes, alta, louçã, grandes olhos negros, um tipo do Sul, ao que parece do Rio Grande. O marido, que era oficial de Marinha, maquinista, era amorenado, tirando a mulato, baixo, sempre triste, curvado e pensativo. (..) Tomavam comida fora e só tinham uma rapariguita preta, de uns dezesseis anos, para os serviços leves da casa. [LB p. 1071]

Não me parece razoável, portanto, qualificar-se o subúrbio de Lima Barreto como “lugar de segregação da classe proletária”,[7] atributo que no início do século XX pertencia, principalmente, aos cortiços, casas de cômodos e favelas do nascente centro metropolitano. 

No subúrbio de Lima Barreto habitavam proletários, com certeza - e esta é uma relevante exceção à regra geral enunciada por Queiroz Ribeiro -, principalmente biscateiros e serviçais, geralmente mulheres, empregadas e agregadas às famílias da nova classe média suburbana, além de comerciários e uns poucos trabalhadores fabris. Vejamos um simples exemplo:

— Qual calúnia, qual nada! Este rapaz é um perverso, é sem-vergonha. Eu sei o nome das outras. Olhe: a Inês, aquela crioulinha que foi nossa copeira e criada por nós; a Luísa, que era empregada do doutor Camacho; a Santinha, que ajudava a mãe a costurar para fora e morava na rua Valentim; a Bernarda, que trabalhava no “Joie de Vivre”… [LB p. 1048]

Contudo, as vívidas imagens com que Lima Barreto descreve os assentamentos mais afastados da ferrovia deixam claro que eram as franjas do subúrbio, tipicamente as encostas e grotas das elevações ao longo do "eixo da Central do Brasil", os lugares onde se reproduziam, em alguma medida, os processos de segregação proletária já materializados nos cortiços e casas de cômodos da região central, e que mais tarde iriam generalizar-se por toda a cidade em forma de favelas mais ou menos vizinhas aos bairros de classe média que são a fonte principal do seu sustento. 

A segregação proletária, já nessa época, era portanto a dos que não tinham acesso ao mercado de terras, todos "pretos ou quase pretos de tão pobres" [8], incluídos obviamente os trabalhadores recém-liberados do regime de escravidão. 

O subúrbio pequeno-burguês de Lima Barreto é, sem dúvida, bastante distinto dos bairros pequeno-burgueses de José de Alencar e Machado de Assis - Laranjeiras, Tijuca, Andaraí -, antigas "estações de repouso e prazer"[9] já incorporadas à cidade do terceiro quarto do século XIX. Mas a segregação social, neste caso, é um aspecto inerente à urbanização de mercado: a imensa maioria dos adquirentes de imóveis, vale dizer as famílias de classe média, busca morar o mais próximo possível dos que lhe parecem 'superiores' na hierarquia social e decididamente apartados dos 'inferiores'. 

É suficientemente clara, no relato de Lima Barreto, a acentuada redução da qualidade da habitação e da urbanização, consequentemente dos níveis de rendimento familiar, com o aumento da distância à linha férrea da Central (itálicos meus):

Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto das ruas muda. Não há mais gradis de ferros, nem casas com tendências: há o barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo isto muito espaçado e separado; entretanto, encontram-se, por vezes, “correres” de pequenas casas, de duas janelas e porta ao centro, formando o que chamamos “avenida”.

As ruas distantes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros de grama e de capim, que são aproveitados pelas famílias para coradouro. De manhã até à noite, ficam povoadas de toda a espécie de pequenos animais domésticos: galinhas, patos, marrecos, cabritos, carneiros e porcos, sem esquecer os cães, que, com todos aqueles, fraternizam. [LB p. 1117]

Também significativa é a diferença social observada por Lima Barreto entre os bairros suburbanos de 1920 e a nascente periferia metropolitana:  

Nessas horas, as estações se enchem, e os trens descem cheios. Mais cheios, porém, descem os que vêm do limite do Distrito com o estado do Rio. Esses são os expressos. (..)

Toda essa gente que vai morar para as bandas de Maxambomba e adjacências, só é levada a isso pela relativa modicidade do aluguel de casa. Aquela zona não lhes oferece outra vantagem. Tudo é tão caro como no subúrbio, propriamente. Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos do Distrito Federal, que o governo federal caridosamente supre em algumas bicas públicas; não há esgotos; não há médicos, não há farmácias. Ainda dentro do Rio de Janeiro, há algumas estradas construídas pela prefeitura, que se podem considerar como tal; mas, logo que se chega ao estado, tudo falta, nem nada há embrionário. [LB p. 1120]

Pergunto-me a esta altura se a qualificação, por Medeiros & Medeiros, do subúrbio de Lima Barreto como "lugar de segregação proletária" não teria origem na passagem em que o autor, num arroubo de indignação em face da significativa distância social tantas vezes assinalada entre a "cidade" e o "subúrbio", bem como das péssimas condições de moradia e trabalho dos proletários em geral, atropela a complexa tessitura sócio-espacial do seu próprio romance e pontifica:

O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes deem alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos. [LB 1119-20]

*

Assim como Clara dos Anjos começou a ser escrito em 1904, foi publicado como conto em 1920, transformado em romance em 1922, publicado postumamente em folhetim em 1923-24 e como livro em 1948, [10] também esta pesquisa, de correção em correção, de acréscimo em acréscimo, será um dia publicada neste blog sob o título "O Subúrbio de Lima Barreto", com uma análise bastante mais minuciosa de seus textos, enriquecida com maior quantidade de referências acadêmicas e acrescida de uma introdução, que julgo pertinente, sobre o uso de material literário como fonte de investigação urbanística.

2023-10-11

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REFERÊNCIAS 

BARRETO, Lima. Lima Barreto Completo I: Sátiras e Romances Completos. Edição do Kindle

MEDEIROS, Juliane P. C. e MEDEIROS, Ana Elisabete de A. “Os subúrbios cariocas no olhar de Lima Barreto”, Thésis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, p. 160-173, dez. 2022.
https://thesis.anparq.org.br/revista.../article/view/303/314

QUEIROZ RIBEIRO L C, Dos Cortiços aos Condomínios Fechados - As formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro, p. 32. Observatório das Metrópoles, 2015
http://www.observatoriodasmetropoles.net/new/images/abook_file/dos_corticos_aos_condominios_fechados.pdf

NOTAS

[1] QUEIROZ RIBEIRO L C, Dos Cortiços aos Condomínios Fechados - As formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro, p. 32. Observatório das Metrópoles, 2015
http://www.observatoriodasmetropoles.net/new/images/abook_file/dos_corticos_aos_condominios_fechados.pdf

[2] STROHAECKER T M, “Atuação do Público e do Privado na Estruturação do Mercado de Terras de Porto Alegre (1890-1950)”. Scripta Nova - Revista Electrónica de Geografía Y Ciencias Sociales / Universidade de Barcelona, Vol. IX, núm. 194 (13), 1 de agosto de 2005.
http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-194-13.htm

[2a] JORGENSEN P, “Porto Alegre cidade radiocêntrica (2)”, À beira do urbanismo (blog), 21-05-2020.
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2020/05/porto-alegre-cidade-radiocentrica-2_30.html

[3] "Como política urbana, a suburbanização é um modo de alienar os trabalhadores da vida citadina, resumindo o cotidiano do proletariado a grandes deslocamentos casa-trabalho-casa, afastando-o da verve da capital e do sentido da vida urbana". MEDEIROS & MEDEIROS p. 165.

[4] "(..) os subúrbios cariocas são resultado da estratégia de afastamento da classe proletária do centro urbano." MEDEIROS & MEDEIROS p. 160 / Resumo.

[5] "A consideração dos operários qualificados como "camada média" justifica-se se atentarmos para o fato de que desde 1870 forma-se um grande contingente de "pobres" na cidade, pessoas que vivem de trabalhos temporários e intermitentes (..). QUEIROZ RIBEIRO p. 231.

[6] "(..) operários das Oficinas do Engenho de Dentro, nos quais se incluíam os cargos de operários, guardas, feitores, serventes e jornaleiros. Esses, correspondiam a quase totalidade dos empregados da oficinas, que submetidos a 4ª Divisão da companhia, somavam em 1907 cerca de 1.217 funcionários, ao passo que as categorias superiores de chefes, mestres e ajudantes de mestre somavam 22 empregados na mesma data". SERFATY E R C, Pelo trem dos subúrbios: disputas e solidariedades na ocupação do Engenho de Dentro (1870-1906). Dissertação de Mestrado, PUC Rio de Janeiro 2017, p. 75.
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/32190/32190.PDF

[7] "Para Fernandes, o conceito carioca de subúrbio representa um “rapto ideológico”, pois a corrupção do significado da palavra é um recurso da ideologia capitalista para legitimar a segregação da classe proletária. Assim, o sistema capitalista reinterpreta a noção de subúrbio para atender a sua ideologia: (..)" MEDEIROS & MEDEIROS p. 165.

[8] VELOSO C & GIL G, Haiti. 1993

[9] BARRETO, Lima. Lima Barreto Completo I: Sátiras e Romances Completos. Edição do Kindle p. 1038.

[10] NASCIMENTO A S et al, “Clara dos Anjos, de Lima Barreto: o conto e o romance”. Encontros de Vista, Recife, 21 (1): 106-119, jan./jun. 2018
https://www.journals.ufrpe.br/index.php/encontrosdevista/article/download/4743/482484409

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Retrofit animal


O Globo 15-06-2023

Montagem: Àbeiradourbanismo
Clique na imagem para ampliar
 "Quase dois anos após, enfim, conseguir seu primeiro inquilino, o prédio que é considerado o maior ‘elefante branco’ do Rio ocupa seus andares a passos de tartaruga. A única locatária do Eco Sapucaí, na Cidade Nova, continua sendo a companhia de óleo e gás franco-americana TechnipFMC, que preenche hoje 9,2 mil metros quadrados (..) ainda restam quase 70 mil metros vazios, ou 88% de todo o edifício. (..) Imóvel “triplo A” com projeto de Oscar Niemeyer, o Eco Sapucaí tem vista privilegiada para o Sambódromo, ocupando terreno da antiga fábrica da Brahma. (..)"

A solução é simples: transformar o elefante em camelo, isto é, a converter o edifício em uma torre de super-camarotes do Sambódromo, a serem cedidos por tarifas triliardárias aos xeiques de Doha, Dubai, Abu Dahbi, Manama, Neom e adjacências para quatro noites de esbórnias momescas que valerão por mil e uma. 

2023-06-21

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Câmara dos lordes


O Globo 29-11-2022
https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2022/11/camara-de-vereadores-do-rio-quer-comprar-tradicional-edificio-serrador-para-nova-sede-da-casa.ghtml
Gasto para aquisição do imóvel é estimado em R$ 146,4 milhões. Custos de intervenções no prédio podem chegar a pelo menos R$ 20 milhões, segundo a mesa diretora


No Brasil do orçamento público secreto, não admira que o negócio mais rentável do Rio de Janeiro seja a Câmara Municipal. 

Suas Excelências poderão exercer o árduo ofício de representação da cidadania carioca confortavelmente instalados num monumento da arquitetura decô brasileira, apreciando algumas das mais belas paisagens que a cidade lhes pode proporcionar.  

2022-11-30

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Taxa condominial, essa desconhecida


Portal Loft 08-06-22 Atualizado 08-11-2022
https://portal.loft.com.br/taxa-condominio-rio-dados-loft/

Pesquisa do núcleo de dados Loft Dados realizada em 36 bairros nos últimos dois anos mostra quanto os cariocas estão pagando por mês em taxa de condomínio

Do ponto de vista da economia urbana, a taxa condominial pode ser assimilada a um imposto privado, complementar ao IPTU: o valor do aluguel é o máximo que a demanda está apta e disposta a pagar pelo uso do bem/localização, descontados o IPTU e a taxa condominial – sendo essa a razão pela qual, nas assembleias condominiais, os proprietários-locadores são tão refratários aos aumentos de taxas, ainda que seu pagamento caiba por contrato aos inquilinos. 

Com a “industrialização” da moradia de aluguel nas grandes metrópoles brasileiras[*], a tendência deverá ser a inclusão da taxa no “pacote do aluguel” com pagamento a cargo da empresa locadora, ou a sua internalização como “custo de produção” da empresa proprietária. A vantagem para os inquilinos é o fim da prática proprietária de lhes imputar gastos de investimento nas edificações (reformas) com a conivência das administradoras.

Para fins de estudo, melhor seria um gráfico de taxa condominial por m2 privativo, que é a unidade básica do mercado imobiliário. Pelo valor médio das taxas, o resultado parece corresponder à ordem decrescente dos preços/m2 privativo segundo os bairros, exceção feita, quem sabe, a São Conrado em 1º, Barra da Tijuca em 5º, além de Jacarepaguá, Freguesia e Recreio, devido ao tamanho dos terrenos (menor densidade construída) e respectivas despesas com ajardinamento, instalações e manutenção. 

__
[*] Ver, por exemplo, “Incorporadoras montam primeiro grande negócio de locação residencial no Rio”. O Estado de São Paulo, por Circe Bonatelli 03-11-2022
https://economia.estadao.com.br/blogs/coluna-do-broad/incorporadoras-montam-primeiro-grande-negocio-de-locacao-residencial-no-rio/

2022-11-16

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

De 'cidade' a 'centro': juntando as peças

Por seres tão inventivo e pareceres contínuo,
Tempo tempo tempo tempo, és um dos deuses mais lindos...
Tempo tempo tempo tempo...
Oração ao Tempo (Caetano Veloso 1979)

Pesquisando a origem do bairro da Cidade Nova, Rio de Janeiro, encontrei na Wikipedia a seguinte afirmação:

Rio de Janeiro 1835
O nome "Cidade Nova" tem registros que remontam ao período do reinado de D João VI. Até o início do século XIX, a região era um alagadiço que servia de rota de passagem entre o Centro e as zonas rurais da Tijuca e São Cristóvão. [1]

Chamou-me a atenção que o autor tenha descrito a Cidade Nova como um lugar situado "entre o Centro e as zonas rurais da Tijuca e São Cristóvão". A pergunta inevitável é: no início do século XIX, quando Tijuca e São Cristóvão eram 'zonas rurais', existia 'o Centro'?

Em busca de respostas, recorri ao testemunho de romances clássicos da segunda metade do século XIX, ambientados no Rio de Janeiro.

Em A Pata da Gazela, de José de Alencar (1870), podemos ler:

“Naquela mesma tarde em que o deixamos na sua casa de Botafogo, terminado o jantar, mandou aprontar o tílburi e voltou à cidade. Seu aparecimento àquela hora na Rua do Ouvidor causou estranheza: um leão de raça, como ele, não passeia ao escurecer, sobretudo no centro do comércio, onde só ficam os que trabalham.” [2]

Em O Cortiço (1890), romance que tinha como cenário uma habitação coletiva em Botafogo, diz Aluísio de Azevedo:

"Uma verdadeira patuscada esse passeio à cidade! (..) Ninguém tomou bonde; e por toda a viagem discutiram e altercaram em grande troça, comentando com gargalhadas e chalaças gordas o que iam encontrando, a chamar a atenção das ruas por onde desfilava a ruidosa farândola. [3]

Em “Maria Cora”, conto de Machado de Assis ambientado no Rio de Janeiro de 1893, o narrador-protagonista Correia, que reside numa casa de pensão no Catete, diz:

“De manhã tinha o relógio parado. Chegando à cidade, desci a Rua do Ouvidor, até a da Quitanda (..)” [4]

Essas passagens literárias me sugerem: (a) que a noção de 'centro' urbano era, se não estranha, ao menos pouco familiar aos autores de obras de ficção passadas no Rio de Janeiro do último quarto do século XIX, portanto muito provavelmente também aos habitantes da cidade; (b) que já existia, a essa altura, uma “urbe exterior à ‘cidade’” formada por lugares como Catete, Botafogo, São Cristóvão, Engenho Velho e Andaraí, vale dizer um processo já em curso de suburbanização; (c) que termo 'cidade', herdado do período colonial, ainda era o designativo preferencial da centralidade metropolitana em gestação; (d) que a expressão 0 'centro do comércio', utilizada por José de Alencar para definir a Rua do Ouvidor, contém uma ambiguidade própria da transição em curso e da pena de um autor de romances históricos impregnados de referências e insaites geográficos - de que logo veremos outro exemplo. 

O surgimento do “Centro” - com maiúscula porque já não se trata de uma entidade geométrica, mas de um lugar urbano - supõe, precisamente, o amadurecimento do processo de suburbanização pela via do mercado de terras, construções e serviços urbanos, muito especialmente os de transportes de passageiros, e sua consolidação em uma nova forma de expansão urbana radiada e tendencialmente concêntrica, ainda que desigualmente distribuída no espaço por força de condicionantes naturais, sociais e institucionais e da desigualdade de rendimentos das famílias e de rentabilidade dos negócios, portanto de seu poder de preempção locacional baseado na oferta de renda.

Tal processo, que identifico com o nascimento da urbanização capitalista em nosso país, está analisado com base em evidências empíricas em meu artigo “Porto Alegre cidade radiocêntrica (2)”, publicado em 21-05-2020 neste blog. Replico a primeira de uma série de generalizações que considero relevantes para esta discussão:

As duas primeiras décadas do século XX marcam, no Brasil, o nascimento das metrópoles capitalistas, cujo traço distintivo é a urbanização de mercado: de um lado as empresas loteadoras, construtoras e prestadoras de serviços públicos urbanos, de outro uma classe média ascendente - comerciantes, militares, funcionários, especialistas, artesãos e trabalhadores qualificados - capaz de arcar com custos de transportes e financiamentos a longo prazo. (..)

É a indústria da urbanização, ou urbanização de mercado, que dá conteúdo e forma à urbe radiocêntrica. É ela que converte as chácaras semi-rurais em bairros residenciais, os antigos caminhos rurais em vetores radiais de expansão, os aldeamentos satélites estrategicamente situados em embriões de futuros subcentros e, finalmente, a própria “cidade” em “centro”! [5]

Isso não significa, em absoluto, que o fenômeno quintessencialmente geográfico da centralidade seja exclusivo da cidade capitalista, mas que o vértice da estrutura radiada da grande metrópole, conhecido na literatura técnico-científica internacional como Central Business District (CBD), é a sua forma mais desenvolvida, símbolo maior de uma ruptura radical nos padrões de adensamento e expansão territorial urbana vigentes, nas capitais brasileiras, pelo menos até o início do Segundo Império, em 1840:

Não se trata de que inexistam tendências radiocêntricas na cidade colonial, isto é, de que sua organização sócio-espacial não manifeste a lei do menor custo-distância, mas de que aqui ela é uma força débil relativamente a outros determinantes - a pré-existência de um traçado fundacional, a pequena extensão dos percursos, o máximo aproveitamento das quadras e parcelas -, materializando-se via de regra como expansão linear ao longo da via principal do assentamento e, em menor medida, como reprodução mais ou menos regular da quadra padrão no sentido transversal. [6]


A forma tipicamente "cartesiana", ou ortogonal, da expansão urbana colonial brasileira corresponde às observações de Hurd em seu "vôo de pássaro" de 1903 sobre as "direções de expansão" das cidades comerciais. Ele observa que, nos assentamentos marítimos, fluviais e lacustres, o crescimento começa ao longo da costa, "seja porque as novas docas e os edifícios fronteiros formam um eixo de tráfego ou porque a própria margem constitui um caminho natural para os assentados". [7] Segue-se a
formação de um feixe de ruas paralelas que, com o tempo, converte-se em malha reticulada mais ou menos regular 'centrada' no ponto de partida das transversais principais, tipicamente a 'praça do mercado'. 

A predominância da organização 'cartesiana' da rede urbana, à base de quadras mais ou menos regulares adaptadas à topografia do terreno, significa que nessa etapa do processo formativo das cidades, em que a distância ainda não tem um papel decisivo na vida econômica da coletividade - salvo, evidentemente, para os negócios diretamente relacionados à atividade portuária -, a 'economia da ocupação' do solo se impõe à 'economia da localização'.

Essa mesma configuração está presente no relato alencariano do processo expansivo do Rio de Janeiro colonial (1659) contido nas crônicas ficcionais reunidas em Alfarrábios, de 1873. Trocando momentaneamente o chapéu de ficcionista pelo de historiador-geógrafo, diz Alencar:

"Com o incremento natural da população, foi a cidade descendo das encostas da colina e estendendo-se pelas várzeas que a rodeavam, sobretudo pela orla da praia que cinge o regaço mais abrigado da formosa baía, e corre em face à Ilha das Cobras. Aí, fronteiro ao ancoradouro dos navios, com o fomento do comércio, se ergueram as tercenas e os cais, onde não tardaram a agrupar-se em volta das casas das alfândegas e dos contos as lojas e armazéns dos mercadores. Após essas, embora já mais arredadas da beira-mar, vinham as outras classes trazidas pelo desejo de estarem mais próximas ao centro do povoado, onde é mais ativo o tráfego." [8] [destaques meus]  

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Pode-se inferir desse relato que, numa época muito anterior à Rua do Ouvidor alencariana [8a], a centralidade urbana do Rio de Janeiro, ainda funcionalmente dividida entre o paço, a sé e o mercado, era comandada pela localização do ancoradouro, principal ponto de contato com o mundo exterior. A julgar pelo mapa de 1713, vale dizer meio século passado dos eventos narrados no romance, as expressões “ao redor” e “centro do povoado” provêm de uma retórica mais condizente com o ano de publicação da obra (1873): o casario, boa parte do qual abriga residência e negócio, se estabelece à menor distância possível do ancoradouro em ruas transversais e paralelas ao caisPode-se extrair daqui uma importante lição: em cidades pré-existentes, a nascente centralidade moderna é constrangida pela inércia do espaço urbanizado a engatinhar ziguezagueando por arruamentos de tipologia ortogonal. 

Uma passagem do capítulo VI sugere a inevitável ambiguidade entre o novo padrão de centralidade urbana em formação à época em que escreve o romancista e a permanência de um passado colonial em que o centro geográfico da vida econômica era a própria “cidade”, agrupada em um pequeno tabuleiro às margens da baía, por oposição ao “campo”:

“Ficou o Ivo como queria, vivendo à mangalaça pelas ruas de São Sebastião, e nos arrabaldes, que a pouco e pouco se foram transformando em bairros, e estão agora dentro da cidade.” [destaque meu] 
 
Este mapa de 1907, aparentemente produzido e editado nos Estados Unidos, se intitula “Rio de Janeiro City – Commercial District”, expressão que naquele país precede em algumas décadas o contemporâneo CBD - Central Business District.
Fonte: ImagineRio https://www.imaginerio.org/iconography/maps/2589147

A começar pela separação de comércio e residência, o advento da urbanização de mercado modifica radicalmente a dinâmica espacial da expansão urbana, e com ela a sua geometria, à qual o núcleo reticular herdado do período colonial é obrigado a se adaptar - o que, em se tratando da urbe, é um processo secular. 

Para além de seus aspectos estritamente urbanísticos, e da ideologia subjacente tantas vezes assinalada, o conjunto de obras modernizadoras executadas no Rio de Janeiro ao longo do século XX - abertura das avenidas Mem de Sá (1906), Beira-Mar (1906), Rodrigues Alves (1910), Presidente Vargas (1944), Av. Chile (1960) e Parque do Flamengo (1960) - são intervenções destinadas a consolidar a estrutura radiada de acesso ao Centro da metrópole.      

Direções de expansão do Rio de Janeiro colonial
e republicano, lançadas sobre mapa do ano 1935

Um importante marco da transição de uma a outra modalidade de expansão no Rio de Janeiro é a inauguração, em 1858, do primeiro trecho da Estrada de Ferro D. Pedro II, que "permitiu, a partir de 1861, a ocupação acelerada das freguesias suburbanas por ela atravessadas" - o que supõe o advento de um mercado de terras periféricas à 'cidade', uma nova classe média capaz de adquiri-los e uma estrutura empresarial capaz de financiá-los -, seguida, em 1868, da implantação das primeiras linhas de bondes de tração animal, que vieram a "facilitar a expansão da cidade em direção aos bairros das atuais zona sul e zona norte". [9] 


Recapitulando: Porto Alegre

A mudança da matriz espacial da expansão urbana, de ortogonal a radial, e a consequente transformação da 'cidade' em 'Centro', é, portanto, um problema tanto de forma quanto de conteúdo. Aqui vale a pena recuperar, do mesmo texto sobre Porto Alegre, a discussão sobre a ideia de 'centro' na transição da cidade colonial-imperial para metrópole capitalista tal como interpretada por Villaça. Ele nos diz:

Quando, nos primeiros vinte anos deste século, o quadro imobiliário do centro de nossas cidades foi totalmente renovado com a demolição do colonial e a implantação do neoclássico e do ecletismo, não houve alteração na estrutura urbana, pois esses centros não perderam sua importância, sua posição, natureza nem localização. [10] 
Porto Alegre: direções de expansão
(1) expansão cartesiana: planta de 1772
(2) transição sobre planta de 1881
(3) expansão radiada: planta 1928 

Esta passagem resume o que me parece uma importante lacuna teórica de Espaço Intra-Urbano no Brasil: a omissão da mudança qualitativa imposta ao processo urbanizador brasileiro, em fins do século XIX, pela urbanização de mercado. Implícito na afirmação de que “no final do século XIX havia [em Porto Alegre] uma coroa de 180 graus de terra firme disponível para a expansão urbana” [11], esse salto histórico é por outro lado negado – inadvertidamente, por certo – pela ideia de que “nos primeiros vinte anos deste século (..) não houve alteração na estrutura urbana, pois esses centros não perderam sua importância, sua posição, natureza nem localização”.  [destaques meus]

Como dito no artigo,

Por não considerar o salto qualitativo contido na transição da urbanização mercantil-escravista para a urbanização capitalista, Villaça perde de vista que é assim que nasce o “centro” no que até então era a “cidade”. Embora não perca a sua "localização, importância e posição", o velho núcleo colonial-imperial perde, sim, a sua “natureza”: sobre a cidade que comanda o campo ao seu redor, nasce o centro que comandará a metrópole. O novo centro da urbanização de mercado começará, então, a se estender na direção da migração dos abastados e a se desdobrar em subcentros em todas as direções. Em algum deles poderá se fixar, muito mais tarde, o novo polo financeiro da metrópole. [12]

O fato de os Centros metropolitanos brasileiros terem se erguido sobre e ao redor das aglomerações comerciais das cidades coloniais-imperiais, portanto em alguma medida como suas continuidades históricas, não apaga o fato de que se trata, agora, de centralidades qualitativamente distintas sob todos os pontos de vista:

Refluindo sobre o núcleo colonial-imperial, a cidade radiocêntrica em contínua expansão e adensamento o revoluciona de acordo com as necessidades da economia de mercado e as exigências culturais e estéticas dos novos segmentos sociais econômica e politicamente dominantes, vale dizer pela renovação acelerada do estoque edificado, pela multiplicação de edifícios de escritórios e galerias comerciais, pela formação de um hipercentro financeiro, pela busca incessante de uma arquitetura própria dos arranha-céus, pela inserção da cidade no circuito das exposições agrícolas e industriais, pela elaboração de um Plano de Melhoramento e Embelezamento da Capital e por intervenções urbanas modernizadoras como a ampliação do porto, o ajardinamento do Campo da Redenção com base em projeto de Alfred Agache e, fechando com chave de ouro este primeiro ciclo, a abertura da Avenida Borges de Medeiros, a partir de 1925, para a ligação do núcleo urbano ao bairro do Menino Deus e daí a toda a margem sul do Guaíba, aí incluída a construção do Viaduto Otávio Rocha - provavelmente a obra urbana mais emblemática da história de Porto Alegre. [13]

Outro exemplo: Ribeirão Preto


Não faz muito tempo encontrei, em um excelente artigo de Capretz e Manhas (2006) sobre a urbanização do Núcleo Colonial Antônio Prado, fundado em 1887 na periferia rural de Ribeirão Preto, a seguinte informação:

Havia três acessos do núcleo colonial para o núcleo urbano já existente, que era chamado de “cidade” (..). A Sede [área verde da figura abaixo] (..) foi concebida com a finalidade de constituir um prolongamento da “Cidade” e, por este motivo, esses lotes eram denominados “urbanos”. [17] [Aspas dos autores]

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Ao longo do século XX, toda a área do Núcleo Colonial Antônio Prado foi absorvida pela expansão urbana radiada de Ribeirão Preto - como ocorre, aliás, com a maioria, se não a totalidade, das cidades e urbanizações ditas planejadas. Como explica Capretz em outro texto, hoje a maior parte dos bairros oriundos da Colônia participa da “geografia social da cidade” como “território da pobreza”, por oposição ao vetor que parte do “quadrilátero central”, a antiga ‘cidade’, em direção ao sul, onde se concentram “valores imobiliários altos, habitações luxuosas, alto consumo e mais investimentos públicos”. [18] [Os termos entre aspas são da autora].

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De ‘cidade’ a ‘centro’: o testemunho da linguagem

Entre a emergência de novos fenômenos sociais, sua percepção pela inteligência coletiva e sua designação na linguagem corrente medeia, geralmente, um período, que pode ser mais ou menos longo a depender da “camada” da realidade de que se trate. 

A transformação da espacialidade urbana, embora onipresente, por não afetar imediata e simultaneamente a vida dos cidadãos leva tempo para ser percebida, e sobretudo assimilada, mesmo nas esferas mais especializadas da informação e do conhecimento. Dou como exemplo o tempo decorrido, na aurora do século XX, entre o loteamento das glebas suburbanas, que não exigia intervenções imediatas sobre o terreno, e seu registro nos mapas e plantas das cidades.

O verbete da Wikipedia que abre este comentário me sugere um curioso paradoxo temporal: parece que passamos, na primeira metade do século XX, por uma longa transição entre um tempo em que o Centro da metrópole já formada ainda era dito 'a cidade', como no período colonial-imperial, para uma época em que a cidade colonial-imperial é muitas vezes referida, por leigos mas também por especialistas, como se tivesse sido, todo o tempo, 'o Centro' da metrópole capitalista.

Como sugerem as referências literárias acima citadas, em fins do século XIX a centralidade urbana ainda era identificada, no Brasil, não com a nascente forma histórica do “Centro” metropolitano, mas com um conjunto de entidades, ou funções, centrais - o palácio, o cais do porto, a praça do mercado, o comércio, a sé - simbolicamente representadas, na literatura como no jornalismo, e não por acaso, pelo “passeio comercial” frequentado pela burguesia em ascensão.

Nos termos do texto sobre Porto Alegre já citado, o nascimento do “Centro” metropolitano é

(..) uma mudança geográfica radical e meteórica na escala temporal da modernidade urbana, portadora de uma percepção coletiva do espaço inteiramente renovada ainda que pouco acessível aos hábitos mentais das antigas gerações: sua transposição para a linguagem corrente levaria ainda algumas décadas para se completar. Trata-se, mais exatamente, de uma revolução semântica fundada na mudança de percepção da estrutura do espaço em que se vive: não mais uma coleção de arraiais ao redor da cidade, mas uma única urbe expandida por justaposição de parcelamentos lindeiros a vias radiais servidas por transportes mecânicos, que tudo ligam ao que agora é “centro”. [15]

Para corroborar o quão lenta parece ter sido, nas metrópoles brasileiras, a incorporação do novo fato geográfico - o Centro da cidade - à linguagem cotidiana, acrescentei às notas daquele artigo um depoimento pessoal:

Ainda na minha infância, na Niterói na década de 1960, meus pais diziam “vamos à cidade”. O ônibus 30 era a linha Martins Torres-Cidade. [16]

A emergência, no transcurso do século XX, do termo 'centro' para designar o que antes era apenas 'cidade' se apresenta, pois, como uma interessante linha de pesquisa acessória ao tema da transformação da urbe colonial-imperial em metrópole capitalista. Ainda que tardia, ela é uma prova material, e das mais convincentes, de que uma cidade radicalmente diferente surgiu da urbanização de mercado iniciada, no Brasil, em fins do século XIX.


Próxima parada: Salvador

A pesquisa continua. E a metrópole que escolhi para hospedar sua próxima etapa é Salvador, Bahia, onde a construção da centralidade recebe de Milton Santos, na "Nota Prévia" ao seu ensaio de 1959 intitulado O Centro da Cidade de Salvador, o seguinte relato:

O crescimento recente da cidade e a expansão de suas atividades conduziram à modificação da fisionomia do centro, provocando o aparecimento de grandes edifícios, construídos nos espaços vazios, ou substituindo velhas casas. É a esse conjunto que os baianos chamam "A Cidade", quando se referem à parte alta, e "O Comércio", quando falam da parte baixa do centro de Salvador. É aí que a vida urbana e regional encontra o seu cérebro e o seu coração." [19]



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NOTAS

[1] WIKIPEDIA, "Cidade Nova (Rio de Janeiro)", edição 03-09-2022
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade_Nova_(Rio_de_Janeiro)

[2] ALENCAR José de, A Pata da Gazela (1870), em Obras Completas de José de Alencar II: Romances Urbanos p. 454. Edição do Kindle.

[3] AZEVEDO Aluísio, O Cortiço (1890), em Obras Completas de Aluísio Azevedo II: Romances vol. 2 (1889-1901). Edição do Kindle.

[4] MACHADO DE ASSIS J M, "Maria Cora", em Relíquias da Casa Velha (1906). Edição do Kindle.

[5] JORGENSEN P, "Porto Alegre cidade radiocêntrica". À beira do urbanismo (blog) 21-05-2020
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2020/05/porto-alegre-cidade-radiocentrica-2_30.html

[6] Ibid. 

[7] HURD R M, Principles of City Land Values. New York: Record and Guide, 1903, p. 56
https://archive.org/details/principlesofcity00hurdrich/page/n4/mode/1up

[8] ALENCAR José de, Alfarrábios - crônicas dos tempos coloniais (1873). Edição do Kindle.

[8a] Ibid. 

[9] ABREU M, Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO 1997, p. 43.  

[10] VILLAÇA F, Espaço Intra-Urbano no Brasil p. 33.

[11] Ibid. p. 132.

[12] JORGENSEN P,  op. cit 

[13] Ibid. 

[14] VILLAÇA F, op. cit. 

[15] JORGENSEN P, op. cit. 

[16] JORGENSEN P, op. cit.

[17] CAPRETZ A e MANHAS M, "Traçado urbano e funcionamento do núcleo colonial Antônio Prado em Ribeirão Preto (SP), 1887". I Simposio Brasileiro de Cartografia Histórica, Paraty, Maio 2011.
https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio/CAPRETZ_ADRIANA_E_MANHAS_MAX_PAULO.pdf

[18] SILVA A C B, Campos Elíseos e Ipiranga: memórias do antigo Barracão. Ribeirão Preto SP: Editora COC 2006
https://aeaarp.org.br/upload/downloads/20200527153648acapretz-camposeliseosipiranga.pdf

[19] SANTOS M (1959), O Centro da Cidade de Salvador, p20.
https://www.academia.edu/38732387/MILTON_SANTOS_o_Centro_da_Cidade_do_Salvador



2022-09-27