Mostrando postagens com marcador Coeficiente de Aproveitamento. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Coeficiente de Aproveitamento. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Outorga Onerosa: a determinação da contrapartida nos termos do Estatuto da Cidade

Reeditado em novembro de 2017

I - O valor da contrapartida em função de V, Cs e Cb

Reza o Estatuto da Cidade (Lei 10.257 de 10 de julho de 2001):
SEÇÃO IX 
Da Outorga Onerosa do Direito de Construir 
Art. 28. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário. 
§ 1o Para os efeitos desta Lei, coeficiente de aproveitamento é a relação entre a área edificável e a área do terreno.
§ 2o O plano diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único para toda a zona urbana ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana. 
§ 3o O plano diretor definirá os limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento, considerando a proporcionalidade entre a infraestrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área. (..)

Admitindo-se, então, que

  • o máximo valor V exigível por contrapartida a um empreendimento imobiliário corresponde ao coeficiente de aproveitamento de terreno de serviço Cs,
  • a cada m2 construído corresponde igual quantidade de valor V
  • Cb é o coeficiente de aproveitamento isento de contrapartida por Outorga Onerosa,


deduz-se que

  • o excedente construtivo medido em coeficiente de aproveitamento é dado pela expressão [Cs - Cb]
  • a proporção do excedente construtivo sobre o total é dada pela expressão [1 - Cb/Cs]
  • o valor de contrapartida K que corresponde ao excedente construtivo [Cs - Cb] é dado pela expressão


K = V * (1 - Cb/Cs).


Ressalvada a precisão que se fará na parte III sobre o valor de referência V, este é o método correto de determinação do valor da contrapartida por OODC nos termos do Estatuto da Cidade, vale dizer K = f (V, Cs, Cb).

Pode-se traduzi-lo da seguinte maneira: Se V representa, digamos, o valor venal VV do terreno que ancora a totalidade da construção, a contrapartida K representa a porção do valor venal VV que corresponde ao excedente construtivo. Dito de outra forma, K é a valorização do terreno derivada do potencial construtivo excedente, relativamente ao valor de referência V.

Para se cobrar, a título de Outorga Onerosa, 10% do valor V atribuído a terrenos edificáveis com coeficiente de aproveitamento Cs=3, bastaria estipular Cb=2,7. Analogamente, para se cobrar 20% do valor V atribuído a terrenos edificáveis com coeficiente de aproveitamento Cs=1, bastaria estipular Cb=0,8.

A consistência do método se testa atribuindo à variável Cb os valores máximos e mínimos admissíveis:


  • Se Cb = 0 ⇒ K = V
  • Se Cb = Cs ⇒ K = 0

A contrapartida por OODC varia, de fato, necessariamente, entre zero e V.


II - Ajuste do método ao coeficiente básico Cb = 1

Com a adoção generalizada do Cb = 1 preconizado por um grande número de urbanistas de formação jurídica, o Cb perde o papel de “variável de ajuste” do valor da OODC.

Com Cb = 1, a contrapartida K tende a resultar, em regiões urbanas de alta densidade, em proporções demasiado elevadas do valor total V.

Torna-se necessário, então, introduzir um "fator de ajuste" Fa para conduzir K a valores econômica e politicamente praticáveis:


K = V * (1 - Cb/Cs) * Fa,


sendo este o método pelo qual se há de estipular o valor da OODC, nos termos do Estatuto da Cidade, quando o Cb não é a variável determinante da proporção de V a ser paga como contrapartida.

Para se cobrar, então, a título de Outorga Onerosa, 15% do valor V atribuído a terrenos edificáveis com coeficientes de aproveitamento Cs=4 e Cb=1 (excedente construído = 0,75 * Cs) seria neecessário estipular um fator de ajuste Fa=0,2.


K = V * (1 - 1/4) * 0,2 = V *0,15


O fator de ajuste Fa pode ser interpretado como multiplicador do patamar de isenção Cb, como desconto sobre o valor da terra V ou como uma combinação de ambos.


Clique na imagem para ampliar 



III - crítica do método do EC

Valor de mercado vs. valor residual

O Estatuto da Cidade não estabelece relação entre a Outorga Onerosa do Direito de Construir e a recuperação da renda da terra para fins de financiamento urbano.

A contrapartida surge como um “preço”, arbitrariamente estabelecido, do m2 de construção excedente ao coeficiente básico de aproveitamento do terreno.

Dá-se, no entanto, que a contrapartida total a ser paga deve necessariamente provir da economia do empreendimento e a ela se adequar. Decorre daí que ela não pode ser superior ao valor residual do terreno a incorporar.

O valor residual VR, lucro do empreendimento excedente à Taxa Mínima de Atratividade (TMA) considerada pelo incorporador, ou à soma custo de capital + lucro econômico mínimo admissível, é o máximo preço que este poderia, teoricamente, pagar pelo terreno ao seu proprietário. Num ambiente hipotético em que se considere a recuperação integral da renda da terra, VR é também o máximo valor conceitualmente admissível da contrapartida por OODC.

Algumas fórmulas de cálculo da OODC estabelecem como valor de referência da contrapartida V o “valor de mercado” do terreno objeto da incorporação. Embora a totalidade do valor de mercado seja “renda da terra”, ou “resíduo” do valor de venda dos produtos que ela abriga, a recíproca não é verdadeira: o valor de mercado não representa a totalidade da renda ou resíduo.

O valor de mercado VM é o preço provável da compra-venda do terreno para incorporação, o que equivale a uma parcela do valor residual total - sendo 50% uma proporção razoável em regiões de intensa renovação urbana, onde o comprador precisa comprar tanto quanto o vendedor precisa vender; dito de outra forma, onde se dá alguma concorrência entre compradores e vendedores de terrenos.

Outras fórmulas utilizam o valor venal estabelecido na Planta de Valores, utilizada para fins do Imposto Predial e Territorial Urbano. Por motivos que não cabem discutir aqui, o VV é um valor de mercado cronicamente defasado, que especialistas admitem equivaler, em muitos casos, a algo como 50% do valor de mercado, isto é, 1/4 do resíduo total VR.

A renda total é o "valor residual" VR, aquele pelo qual o incorporador revende o terreno, em forma de frações ideais, aos adquirentes de unidades imobiliárias, e cuja apropriação, na maior proporção possível, constitui a alma do seu negócio: a parte do valor residual do terreno não paga ao ex-proprietário como preço de transação e não recuperada pela coletividade como Outorga Onerosa do Direito de Construir, instituto que materializa a "obrigação de urbanizar", se converte em lucro extraordinário do incorporador.

Portanto atenção: ao recair sobre o resíduo, o ônus da Outorga Onerosa reduz o montante a ser repartido entre o incorporador e o proprietário do terreno a incorporar, consequentemente o preço de transação e daí o próprio valor de mercado VM dos terrenos incorporáveis. Moral da história: é o valor de mercado VM que depende do valor da OODC, não o contrário. Toda "fórmula" de OODC que adota VM como variável independente é viciosa por "circularidade".

Sendo assim, a nossa fórmula geral passa a ser




K = VR * (1 - Cb/Cs) * Fa




Construção bruta vs. produto imobiliário

O valor residual de um terreno resulta da subtração dos custos totais, incluído o de capital, ao Valor Geral de Vendas da combinação mais rentável de produtos imobiliários que ele pode receber. O VGV é o somatório dos preços de todos as unidades imobiliárias colocadas à venda - mais exatamente produzidas, dado que unidades podem ser cedidas em pagamento ao proprietário do terreno - e o "m2 privativo médio” a unidade de produto imobiliário ao redor da qual gravita toda a economia do empreendimento.

O “m2 construído” não é a unidade mais adequada para estudo, cálculos e determinação da contrapartida por Outorga Onerosa do Direito de Construir como instrumento de recuperação da renda do solo pela razão elementar de que ele não tem preço de venda nem resíduo.

O uso do VR (ou Vr/m2) como unidade de valor da Outorga Onerosa recomenda que conceitos como “m2 construído” e “excedente construtivo” sejam computados com base em m2 privativos médios e que o "coeficiente de aproveitamento do terreno" seja entendido como "líquido", isto é, referido à área privativa total do empreendimento.


O coeficiente básico Cb

O Estatuto da Cidade estabelece o coeficiente básico de aproveitamento do terreno como "patamar de isenção" da cobrança da Outorga Onerosa do Direito de Construir.

O conceito de coeficiente básico provém do instituto francês do plafond de densité (Cb = 1), cuja razão de ser e trajetória não cabem no escopo desta discussão. 

O Cb é um mecanismo de regulação do valor da contrapartida por OODC esculpido na linguagem técnica do próprio urbanismo: quanto mais próximo o Cb do coeficiente de serviço Cs, menor o excedente construtivo e, portanto, menor a contrapartida a ser paga pelo empreendedor.

Com a adoção do "coeficiente básico único e unitário" em um grande número de cidades brasileiras, o Cb perde a função de variável reguladora do valor da contrapartida com a agravante de gerar, via de regra, "excedentes de renda" impensáveis para o status atual da indústria da incorporação: numa zona urbana de alta densidade onde o coeficiente máximo de serviço é Cs = 5, o excedente ao Cb =1 determina contrapartidas equivalentes a 4/5 do valor de referência V! Esse efeito indesejado é, então, compensado pela adoção de reguladores alternativos que atendem pelos nomes de "redutor", "fator social", "fator de planejamento" etc.

Não nos iludamos: quaisquer que sejam as virtudes do Cb =1, elas são algebricamente violadas sempre que o método de cálculo da contrapartida adota um valor de referência V < VR e/ou introduz um fator de ajuste que faça aumentar o valor de Cb, seja dito “social” ou “de planejamento”.

Além disso, o valor real da OODC - para o empreendedor como para a coletividade - não é o “preço do m2 excedente”, mas quanta OODC o empreendimento paga, ao final, por m2 privativo produzido. Se um empreendimento de 1000m2 construídos/ produzidos pagou, a título de outorga onerosa, R$ 300,00 por cada um de 400m2 declarados “excedentes”, num total de R$ 120.000,00, terá pago R$ 120,00 por m2 construído/ produzido; igual valor teria pago se lhe fosse cobrado, a título de outorga onerosa, R$ 200,00 por cada um de 600m2 declarados “excedentes” ou R$ 120.000,00 por 1 único m2 declarado "excedente".

Em suma, as "fórmulas de cálculo" da Outorga Onerosa se converteram em uma babel metodológica que dificulta enormemente, se é que não impede, a "transferência de tecnologia" das cidades que arrecadam razoavelmente para aquelas que arrecadam pouco ou nunca o fizeram.

O modo mais simples e transparente de aplicar-se a Outorga Onerosa do Direito de Construir é a imposição da contrapartida à totalidade dos m2 privativos produzidos no empreendimento. Iguala-se, assim, o valor da contrapartida ao custo do empreendedor. Nos termos do Estatuto da Cidade, isto significa, em todos os casos, considerar Cb = 0. Daí,


K = Vr * 1 * Fa


A taxa de recuperação do resíduo

Com Cb = 0, o "fator de ajuste" se converte em "taxa de recuperação do resíduo", mais exatamente do “valor residual da fração de terreno que corresponde a cada m2 privativo médio produzido”.


K = Vr * Tr


A Tr não se pode calcular: respeitada a relação entre rentabilidade do empreendimento e progressividade da contrapartida, ela há de ser a maior possível considerados os limites teóricos e práticos, econômicos e políticos, da recuperação da renda da terra na indústria da incorporação.

E são esses limites - não as "fórmulas de cálculo"! - o aspecto crítico a que nós, gestores urbanos adeptos do instrumento da Outorga Onerosa precisamos, urgentemente, dedicar os nossos melhores esforços.



2017-04-30


Leia também, neste blog,

Outorga Onerosa do Direito de Construir: por um novo marco metodológico
http://abeiradourbanismo.blogspot.com.br/2017/05/outorga-onerosa-do-direito-de-construir_10.html


sábado, 23 de fevereiro de 2013

O coeficiente de aproveitamento e a valorização do solo

A Outorga Onerosa do Direito de Construir (direta ou via CEPACs) é uma das modalidades monetárias de recuperação da valorização do solo para fins de financiamento da infraestrutura e das redes de serviços urbanos que estão na raiz dessa mesma valorização.

Para ser transparente e eficaz, ela tem, ou deveria ter, como pedra de toque o conhecimento de quanta valorização é criada pela indústria da incorporação imobiliária e quanta valorização a municipalidade se propõe a recuperar – quer seja em um empreendimento isolado, em um bairro em expansão e até numa cidade inteira em dado exercício fiscal.

R$ 1 milhão recuperado da valorização do solo em um único empreendimento imobiliário residencial pode representar 50% ou 5% dessa valorização – a exata diferença entre uma política consistente e outra pífia de recuperação de mais-valias (esta, mais provavelmente, uma política pública de doação de mais-valias) – a depender, obviamente, do montante da renda total gerada pela intensidade de uso do terreno e da valorização proporcionada pelo acréscimo de edificabilidade.




Sem que se saiba quanta renda e quanta valorização há para ser recuperada, é impossível, creio, avaliarem-se as políticas municipais de recuperação da valorização do solo por intensificação do uso da terra. Sem que se saiba quanta renda e quanta valorização são geradas nos empreendimentos imobiliários, é impossível, creio também, avaliar-se a efetividade do instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir.

Este artigo apresenta um modelo simplificado de cálculo da valorização baseado no conceito de valor residual do solo e no esquema de repartição da renda da terra discutido no artigo anterior desta série.

Sua utilidade prática é propiciar estimativas rápidas do efeito do acréscimo de edificabilidade sobre a renda gerada pelo solo em um empreendimento imobiliário e apoiar a construção de  uma metodologia eficaz de análise, cálculo e previsão de receitas da Outorga Onerosa do Direito de Construir nas cidades brasileiras – uma questão, a meu juízo, ainda em aberto por motivos que serão discutidos na última postagem desta série.

Intensificação do uso do solo e rentabilidade
Como qualquer outro ramo da indústria, a incorporação imobiliária é movida pela busca incessante de acréscimos de rentabilidade. Isto se dá pelas vias normais do aumento da produtividade do trabalho e do ganho de escala, mas, em especial, pela intensificação do uso desse insumo absolutamente peculiar que é a terra urbanizada. (Para uma visão geral do tema, recomendo a leitura, neste mesmo blog, do artigo "A braços com as peculiaridades da mercadoria terra urbana  http://abeiradourbanismo.blogspot.com.br/2012/01/bracos-com-as-peculiaridades-da.html.)

A intensificação do uso da terra urbanizada se dá de duas maneiras combinadas: pelo aumento da quantidade de m2 edificados, via o aumento do número de pavimentos e da taxa de ocupação do terreno, e pelo aumento do número de unidades imobiliárias que essa quantidade contém, via a redução de seu tamanho médio. Ao passo que a primeira modalidade multiplica a quantidade de produto imobiliário por m2 de terreno, a segunda promove a valorização relativa da unidade de produto (m2 privativo). A resultante de seus efeitos associados é a valorização do m2 de terreno.

O aumento da quantidade de unidades propiciada pela redução das respectivas metragens não aumenta, evidentemente, a quantidade de m2 privativos à venda, mas aumenta o seu preço médio muito mais que proporcionalmente ao seu custo médio. É este preço médio que, totalizado em Valor Geral de Vendas e subsequentemente “drenado” dos custos totais do empreendimento (construção e comercialização + custo de capital), transforma-se em valor residual (acrescido) do terreno. Deduzidos deste último o preço pago ao antigo proprietário e os encargos impostos pela municipalidade (Outorga Onerosa do Direito de Construir, obrigações urbanísticas etc.), resta ao incorporador um lucro imobiliário líquido (objeto da sua atividade) acrescido pela redução do tamanho das unidades. É por isso que a entidade abstrata “metro quadrado privativo” é a coisa mais concreta que existe em toda a indústria da incorporação imobiliária, aí incluídos o ferro, o cimento e o tijolo.

Na medida de sua sanção, a cada momento e lugar, pela legislação urbanística e pelos demandantes de produtos imobiliários, as duas dimensões da intensificação do uso do solo são inseparáveis na busca da indústria da incorporação por acréscimos de rentabilidade.

O Coeficiente de Aproveitamento dos terrenos
O padrão urbanístico de medida da quantidade edificada é o Coeficiente de Aproveitamento do terreno (CA), chamado, no Rio de Janeiro, Índice de Aproveitamento do Terreno (IAT).

O Coeficiente de Aproveitamento do terreno é o número que expressa a quantidade de m2 construídos, ou a construir, num terreno, como múltiplo da metragem do próprio terreno. Para esclarecimento do leitor leigo, isto significa que se o máximo Coeficiente de Aproveitamento vigente para um terreno de 1.000m2 é 2,5 o incorporador está autorizado a nele soerguer até 2.500 m2 de construção.

Por ter sido criado pelos urbanistas-arquitetos como mecanismo de controle da volumetria das construções e da densidade edificada na cidade, o CA exprime a relação entre os m2 brutos totais de construção, geralmente expurgados de uma série de elementos ditos não-computáveis (varandas externas, vagas de garagem etc.) e a metragem total do terreno.

Dado, porém, que está referido à quantidade de m2 construídos, esse padrão de medida só afere a primeira das duas dimensões da intensificação do uso da terra acima mencionadas, o que o torna insuficiente para o estudo do aproveitamento econômico do solo.

Para discutir o principal efeito econômico da intensificação do uso do solo, qual seja, a sua própria  valorização, proponho utilizarmos uma variante do Coeficiente de Aproveitamento do terreno que denomino “líquido”, isto é, o número que expressa a relação entre a quantidade total de produto imobiliário (m2 privativos ofertados no mercado) e a metragem total do terreno.

Por que usar o coeficiente líquido?
Porque a rentabilidade de um empreendimento, da qual deriva o valor do solo-localização, só pode ser medida pela relação receita/custo da unidade de produto colocado à venda no mercado. Só essa relação é capaz de exprimir  a  rentabilidade proporcionada pela operação simultânea das duas modalidades de intensificação do uso do solo acima descritas.

Tal unidade de produto é o m2 privativo, portador direto, em frações ideais, iguais e proporcionais, dos principais elementos constitutivos da economia do empreendimento: o Valor Geral de Vendas (VGV), o custo total de construção e comercialização, a Taxa Mínima de Atratividade (TMA, ou retorno líquido mínimo esperado) e, finalmente, a renda da terra (sobrelucro), igual ao resíduo da dedução, ao VGV, dos custos totais de construção e da TMA. 

É da relação entre a receita e o custo total de construção e comercialização contidos em 1m2 privativo que derivam os parâmetros de  rentabilidade, bruta e líquida, de qualquer empreendimento.

O m2 privativo é, portanto, a unidade de produto que resume todos os elementos essenciais ao estudo da renda e da valorização do solo na indústria da incorporação, cruciais para o desenho de políticas de recuperação da valorização do solo.

O m2 bruto é um indicador indireto, bastante imperfeito e problemático, da rentabilidade do empreendimento e da renda do solo gerada: para obter 1m2 de mercadoria pronta para a venda, o incorporador precisa realizar 1*n metros brutos de construção. Em outras palavras, não se pode atribuir ao m2 bruto de construção um preço e um custo médios que não sejam, por sua vez, função da “unidade de produto industrial de bens imobiliários”, o m2 privativo.

Por isso, sempre que os Coeficientes de Aproveitamento NÃO forem usados para estabelecer uma proporção da renda total – caso em que o multiplicador 1*n manterá constante a proporção – uma transformação prévia é obrigatória.

Para complicar, o m2 bruto de construção a que se refere o Coeficiente de Aproveitamento do terreno é, em geral, por motivos de administração urbanística que não cabe discutir aqui, afetado por um sem número de elementos ditos não-computáveis que variam de cidade em cidade – deformando ainda mais o cálculo da valorização e sua comparabilidade.

Recapitulando
Figura 1 (Clique na imagem para ampliar)
Revisitemos a estrutura de um empreendimento imobiliário multifamiliar sob o ângulo da formação e distribuição da renda da terra.

Figura 2 (Clique na imagem para ampliar)
A figura 1 exprime a formação da renda total, a figura 2 a repartição da renda entre os agentes privados envolvidos na incorporação, a figura 3 o esquema dessa repartição quando entra em cena a municipalidade impondo um encargo sobre a renda da terra.
Figura 3 (Clique na imagem para ampliar)

Aqui, é fundamental observar a distinção entre valor residual, preço e valor de mercado do terreno. Em qualquer empreendimento imobiliário, o preço de transação do terreno é o "termo de repartição" de seu valor residual (renda) entre o incorporador e o proprietário (conforme o poder de barganha de cada um) - depois de deduzidos eventuais encargos impostos pela municipalidade. O valor de mercado, por sua vez, é a medida de referência dos preços efetivamente praticados em cada localidade. 

Vale recordar, também, que a reivindicação da coletividade a uma cota na repartição da renda total  provém de que 100% da renda da terra gerada em qualquer empreendimento imobiliário  não é, salvo eventuais inovações, "lucro do investimento produtivo", mas sobrelucro gerado pelo privilégio (direito de propriedade) de exploração exclusiva de fatores extrínsecos ao capital de  investimento, a saber, a localização do terreno no espaço urbanizado.

O Coeficiente de Aproveitamento Líquido e o cálculo da valorização.
Figura 4 (Clique na imagem para ampliar)
Reportando ao modelo geral da incorporação imobiliária, onde a renda gerada se obtém por subtração sucessiva dos custos totais (de construção + comercialização e retorno de capital) ao VGV e admitindo-se que cada m2 líquido (privativo) contém frações iguais e proporcionais das quantidades de valor deduzidas, podemos estabelecer o gráfico da Figura 4, em que o VGV, o Retorno Bruto (RB)[i] e o Valor Residual (VR, ou seja, a renda) aparecem como funções lineares do que chamamos de Coeficiente de Aproveitamento Líquido (CAL).

Concentremo-nos, agora, no exame  da variação do Valor Residual segundo a variação do Coeficiente de Aproveitamento Líquido, crucial para o entendimento do instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir.

Figura 5 (Clique na imagem para ampliar)
C2 é o “coeficiente de aproveitamento de serviço” de um dado empreendimento, que produz o seu VGV, o seu Retorno Bruto (RB) e a renda total (o valor residual VR). Havendo demanda apta a pagar o custo de produzir uma edificação multifamiliar e gerar uma Taxa Mínima de Atratividade (TMA), o coeficiente de serviço será, quase sempre, o máximo que a legislação urbanística permite construir.[ii]

C1 é um coeficiente de aproveitamento qualquer, que nos fornecerá valores proporcionais do Valor Geral de Vendas (VGV), Retorno Bruto (RB) e Valor Residual, ou simplesmente, Renda (VR).

A expressão algébrica da Figura 6, deduzida pelo método da semelhança de triângulos, nos dá a valorização do terreno (acréscimo de valor residual) resultante do acréscimo de coeficiente de aproveitamento líquido C2-C1.

Em outras palavras, a valorização é simplesmente a diferença entre o valor residual do terreno se aplicado, para dado empreendimento, o coeficiente de aproveitamento líquido C1 e o valor residual do mesmo terreno se aplicado o coeficiente de aproveitamento líquido C2.

Aplicando o Coeficiente Líquido a um caso real
Consideremos o caso de um empreendimento real, situado à rua Duque Estrada no. 39, bairro de Santa Rosa, Niterói, lançado em 2010.

O problema, aqui, consiste em estabelecer a valorização - como proporção do Valor Residual (renda total) - do acréscimo de edificabilidade do CA Líquido "de serviço” C2, aplicado pelo empreendedor de acordo com a normativa urbanística em vigor, sobre o CA C1=2 (definido pela norma como “básico” para fins da Outorga Onerosa do direito de Construir e aqui tomado como "líquido"). 

A tabela de preços no prospecto de lançamento contém os seguintes dados: Total de unidades: 80; total de m2 privativos: 6661,28. Área do terreno: 1084,21m2.

A Figura 7 nos mostra o cálculo da valorização.


Comparemos, agora, esse resultado com a valorização obtida com o uso do coeficiente de aproveitamento de terreno tal como definido na legislação urbanística.


Considerando que, para um mesmo empreendimento, a proporção m2 brutos de construção/m2 privativos é, por definição, constante, essa discrepância de 5 pontos percentuais sobre o VR no cálculo da valorização provém, obviamente, da cota de m2 brutos construídos ditos "não computáveis". Contudo, isso não garante que o cômputo dos m2 construídos totais nos dê a valorização correta. Por quê?
  
O m2 bruto distorce o cálculo da valorização
Porque o m2 bruto não tem preço no mercado e não pode, por si mesmo, refletir o  balanço receita total/custo total que está na raiz da  rentabilidade do empreendimento.

A tendência da incorporação residencial contemporânea é o aumento progressivo da taxa m2 brutos/m2 privativos, caso em que o senso comum é tentado a deduzir ora que o uso do m2 bruto “exagera” a valorização, encarecendo, por conseguinte, as obrigações impostas pela municipalidade a essa valorização, como é o caso da Outorga Onerosa do Direito de Construir, ora que a municipalidade está “deixando de arrecadar” com a Outorga Não-Onerosa de uma grande quantidade de elementos não-computáveis de construção.

Ambas as deduções são, no entanto, mera ilusão de ótica.

É preciso considerar que, na conta decisiva, a da rentabilidade do empreendimento, o m2 bruto representa somente o lado do custo e que, em geral, a quantidade de m2 brutos de construção aumenta em troca da redução da área útil de cada unidade e do correspondente aumento do número de unidades, mais do que compensando com receita o aumento do custo por m2 privativo colocado à venda no estande. Em suma, o aumento do custo total de construção está a serviço do aumento mais que proporcional da receita total, o VGV, e consequentemente, da rentabilidade do empreendimento. 

Eis porque o melhor padrão de medida da valorização do solo na incorporação imobiliária é o Coeficiente de Aproveitamento Líquido: a valorização é uma proporção da renda e esta o resíduo da dedução de todos os custos ao preço de venda do m2 privativo.  Somente a relação entre o preço de venda e o custo total por unidade de produto (m2 privativo) é capaz de traduzir o efeito simultâneo das duas modalidades de intensificação do uso do solo – o aumento da quantidade de m2 construídos e o aumento da quantidade de unidades à venda por n m2 construídos – sobre a sua valorização.

Discutindo a validade do modelo
O modelo acima descrito é um análogo do procedimento recomendado por Carlos Morales Schechinger:

Se o que se quer é calcular o incremento do preço, ou mais valia, deve-se aplicar o mesmo cálculo duas vezes, primeiro um [cálculo] residual a partir da mercadoria a que se poderia dedicar o terreno antes do fato gerador da mais-valia e outro que parta da mercadoria que se poderá aplicar depois do fato gerador. (grifo nosso). [iii]

Por que análogo? Porque o procedimento proposto por Morales é a aplicação in totum do método residual dedutivo de avaliações imobiliárias, muito mais completo e preciso do que o nosso modelo para o estudo individualizado do efeito da variação do coeficiente de aproveitamento sobre o valor residual do terreno. Com efeito, a relação receita-custo por m2 privativo de um edifício de 4 pavimentos não pode ser igual à de um edifício de 8 pavimentos.

O problema é: como aplicar o modelo de avaliação residual dedutivo ao cálculo da valorização por acréscimo de edificabilidade em mercados urbanos de centenas de empreendimentos e centenas de milhares de m2 privativos produzidos anualmente?

Ora, da mesma maneira como, em um edifício de 12 pavimentos-tipo, todos os preços de apartamentos de diferentes tamanhos e posições de coluna e andar são subsumidos pelo incorporador, para fins de análise de rentabilidade do empreendimento e de suas perspectivas de negócios (VGV, retorno bruto, velocidade de vendas, etc), a um preço médio do m2 privativo, o estudo da valorização do solo por acréscimo de edificabilidade em larga escala também requer tomar a valorização por acréscimo de edificabilidade como função (linear) da quantidade de m2 privativos médios ofertados.

O modelo aqui sugerido é uma simplificação do método residual dedutivo de avaliação de terrenos baseado em edificações ideais inteiramente constituídas de m2 privativos (médios) tais como considerados pelos incorporadores em seus cálculos comerciais. [iv]

Como qualquer modelo operacional, ele deposita a sua expectativa de validade no benefício/custo, e conseqüente legitimidade social, contidos no grau de precisão de seus resultados. Na produção imobiliária em larga escala, governa a padronização. Sem a padronização de custos, preços e produtos, sem o VGV, o CUB e o preço médio do m2 privativo, a grande indústria de bens imobiliários simplesmente não poderia existir. De forma análoga, sem métodos generalizantes de avaliação imobiliária as cidades não poderiam arrecadar o IPTU e os avaliadores não poderiam estimar a "cota de terreno" no valor total dos imóveis residenciais de diferentes bairros da cidade.

Sem um modelo de cálculo da valorização e estimativa da renda do solo gerada na indústria da incorporação imobiliária capaz de simplificar, padronizar e outorgar transparência e comparabilidade à aplicação da OODC nas cidades brasileiras,esse  instrumento de financiamento urbano dificilmente  poderá ser aplicado de se maneira razoavelmente homogênea e generalizada à escala nacional.

Conclusão
Para fins do estudo da valorização da terra urbana por acréscimo de edificabilidade, medida como proporção do valor residual (renda total), a precisão recomenda o uso do Coeficiente de Aproveitamento Líquido do terreno (m2 privativos produzidos /m2 totais de terreno), por ser este o indicador de intensificação do uso do solo diretamente associado à  rentabilidade do empreendimento.

Isso não invalida, contudo, o uso tradicional do m2 bruto de construção, que, como vimos, também expressa de maneira razoavelmente aproximada a proporção do valor residual do solo implicada. Para fins de comparabilidade (entre cidades, por exemplo) será sempre necessário, no entanto, conhecerem-se a taxa m2brutos/m2 privativos e a taxa m2 totais construídos/m2 totais construídos computáveis.

Mais importante é estabelecer que a valorização se apresenta como proporção do valor residual do terreno (VR) em função da variação do seu coeficiente de aproveitamento.

A próxima postagem desta série será, portanto, dedicada ao problema crítico da estimativa da renda (VR) nos empreendimentos imobiliários. De sua solução depende a possibilidade de construir-se uma ferramenta de análise, cálculo e previsão de receitas da Outorga Onerosa do Direito de Construir baseada no princípio da  natureza residual do valor do solo para aplicação em larga escala.



[i] Deixaremos para o próximo artigo desta série (que tratará da estimativa da renda) o desenvolvimento das propriedades da Curva de Retorno Bruto, de grande interesse, sob vários aspectos, para o estudo tanto do negócio imobiliário como dos problemas da organização espacial urbana.

[ii] Quando discutirmos, na postagem dedicada à estimativa da renda, a curva de retorno bruto, mostraremos em que circunstâncias o máximo aproveitamento econômico de um terreno não corresponde ao seu máximo aproveitamento urbanístico.

[iii]  Morales Schechinger, Carlos, “Algunas reflexiones sobre el financiamiento de las ciudades con suelo urbano”, Texto preparado em 2007 com base nos materiais introdutórios desenvolvidos em 2005 para diversos módulos do curso a distância “Financiamiento de las ciudades latinoamericanas con suelo urbano”, ministrado em quatro edições pelo Lincoln Institute of Land Policy de março de 2005 a janeiro de 2007. Tradução livre do blogueiro.

[iv] Na verdade, é deste mesmo modelo que deriva - como já demonstrei algebricamente em 
"Contribución al estudio de la 'Outorga Onerosa do Direito de Construir' (Brasil): contenido económico y fórmulas de cálculo" (maio 2007)
(http://abeiradourbanismo.blogspot.com.br/2007/05/contribucion-al-estudio-de-la-outorga.html ) e voltarei a discutir no último artigo desta série – o método de cálculo da OODC chamado “do terreno virtual”. A diferença, crucial, é que o método aqui proposto permite estimar a  valorização e, consequentemente, determinar o seu  subproduto, a OODC, como proporções da renda total (valor residual do terreno antes de descontada a OODC), ao passo que o “método do terreno virtual” propõe calcular a OODC como função de uma variável que depende da própria OODC, qual seja, o valor venal do terreno - uma circularidade teoricamente problemática e geradora de sérias distorções.