A interação entre a força fundamental da construção da cidade moderna, que costumamos chamar eufemisticamente de “o mercado”, e o conjunto de práticas estatais de controle, regulação e intervenção abrigadas sob a rubrica “planejamento”, é um aspecto crítico da organização espacial urbana, portanto de seu estudo.
Não se trata, com efeito, de um casamento entre iguais. A teoria e a experiência ensinam que o planejamento tem um papel subordinado relativamente às leis que regem a moderna organização espacial urbana, sejam da alçada da economia, da sociologia ou da geografia urbanas, mesmo em países onde ele tem um papel de grande relevo na configuração do espaço construído e, em todos os demais, também nos ciclos e conjunturas em que a ação regulatória, fiscal e interventiva do Estado parece assumir a dianteira.
As incessantes transformações das estruturas socioespaciais urbanas são comandadas, para bem ou para mal, pela ação das forças motrizes do processo reprodutivo das cidades, que, embora criadas pelo engenho humano, operam como forças naturais cujos efeitos a sociedade busca, pela via do planejamento governamental, ora mitigar ora canalizar, mas não tem, ou acredita não ter, o poder de controlar.
Dado que a construção das cidades modernas é uma instância particular, porém crucial em nossa época, da reprodução da riqueza à escala planetária, não há razão para crer que, em um ambiente de mercado, o planejamento urbano possa ir mais longe, ou ser mais bem-sucedido, em seu esforço de discipliná-la, que dirá dirigi-la, do que o planejamento governamental em seu empenho de "ordenar" a economia como um todo.
Não é por outra razão que advogo o estudo sistemático da organização espacial, ou estrutura, urbana, como premissa lógica e prática do estudo do planejamento urbano, suas possibilidades, efeitos, limites, sucessos e fracassos.
Esta postagem é dedicada a uma breve compilação, cronologicamente ordenada e aberta a acréscimos, de passagens sobre a relação entre urbanização "de mercado" e planejamento urbano, escritas por autores de distintas áreas do conhecimento, em textos de distintas épocas e distintas características e finalidades. Noves fora tudo isso, serve como convite à reflexão.
If cities grew at random the problem of the creation, distribution and shifting of land values would be insoluble. A cursory glance reveals similarities among cities, and further investigation demonstrates that their structural movements, complex and apparently irregular as they are, respond to definite principles. The basis of this similarity is that the same factors create all modern cities; commerce and manufactures, with political and social forces, being everywhere operative, the chief difference in influence coming from variations in their relative power. [HURD 1903]
It is these
costs of friction [transportation cost and site rental] which the city planner
must seek to reduce to the lowest possible level; of two cities otherwise
alike, the better planned, from the economic point of view, is the one in which
the costs of friction are less. [HAIG 1926, p. 423]
Urban geography is not about planning. It is concerned with certain aspects of the inherent spatial or geographical structure of society on which planning must be based [DICKINSON R 1947 xiii)
So long as the market, circumscribed as it may be by public policy, is the principle machinery allocating urban space among competitive use, this interaction will be the dominant city shaping force in our society." [WINGO 1961, p.93]
O urbanismo moderno não nasceu junto com o processo técnico e econômico que gerou e modelou a cidade industrial. Veio mais tarde, quando se evidenciou que os efeitos quantitativos dessas transformações se tornaram conflitantes a ponto de tornar inevitável a necessidade de remediá-los. [De modo geral, a técnica urbanística aparece com atraso relativamente aos acontecimentos que tem por missão controlar e guarda um caráter curativo. [BENEVOLO 1963]
Para uma compreensão completa da estrutura das cidades
modernas devemos relaxar as hipóteses de livre mercado e tomar explicitamente
em conta o planejamento urbano e as decisões do poder público. [RICHARDSON
1969]
Almost precisely in 1900, as a reaction to the horrors of the 19th century slum city, the clock of planning history started ticking. But, paradoxically, as it did so, another much older and bigger timepiece started to drown it out. The very problem, that the infant planning movement sought to address, almost instantly began to change its shape. Most of the philosophical founders of the planning movement continued to be obsessed with the evils of the congested Victorian slum city – which indeed remained real enough, at least down to World War Two, even to the 1960s. But all the time, the giant city was changing, partly through the reaction of legislators and local reformers to these evils, partly through market forces. The city dispersed and concentrated. [HALL 1988]
Industry now plans on a colossal scale: the production of a new model of a car, or a personal computer, has to be worked out long in advance of its appearance in the shops. And all this is true whatever the nature of the economic system. Wether labeled free enterprise of social democratic or socialist, no society on earth today provides goods and services for its people, or schools and colleges for its children, without planning. One might regret it and wish for a simpler age when perhaps things happens without forethought; if that age ever existed it, has gone forever. [The reason is the fact of life everybody knows: that modern society is immeasurably more complex, technically and socially, than previous societies. [HALL 1996, p.2]
Explicações sobre a inexistência de uma orla verticalizada em Salvador baseadas em restrições da legislação urbanística municipal não convencem. Trata-se de processos sociais que se desenvolvem por muitas décadas e que determinam a legislação urbanística em vez de serem determinados por ela. Imaginar que a legislação urbanística possa dobrar os interesses de um poderosíssimo setor de mercado - o setor imobiliário - é uma ilusão. Num país de Estado fraco como o Brasil, especialmente na esfera municipal e mais ainda no Nordeste, é ilusório imaginar que uma frágil lei municipal, defendida apenas por um punhado de bem-intencionados funcionários municipais, possa derrotar os interesses de dois poderosos grupos por tanto tempo: os proprietários da classe média-alta e alta e o setor imobiliário. [VILLAÇA, 2001]
In Town and Regional Planning, Peter Hall, another Englishman, similarly commented on both the strangeness (as he saw it) of U.S. planning and the key role of U.S. zoning: “To many Europeans, even well-informed ones, planning in the United States is a contradiction in terms” (2002, 189). He also noted that “the real core of the American system of land-use control is not planning, but zoning” (205). [HIRT 2014]
El conocimiento e identificación de la fase de desarrollo en que se encuentra cada sector de una ciudad es igualmente importante para los organismos de planeación de esa ciudad para saber en qué momento conviene adoptar una determinada política para estimular un proceso de rehabilitación, de renovación o de desarrollo de un sector. (..) Cuando la planeación urbana va en contra de las necesidades sociales y las leyes del mercado, genera un mayor caos urbano. La planeación debe ir delante de la demanda encauzando las necesidades. [BORRERO 2005]
“Brasília é talvez o exemplo máximo da falência do planejamento urbano no Brasil. Quando vejo que esse mesmo processo aconteceu em Belo Horizonte setenta anos antes, fico muito desapontado. Em Brasília, como em Belo Horizonte nas primeiras décadas do século XX, a parte planejada da cidade ficou sub ocupada, por décadas, enquanto a cidade crescia fora da parte planejada. Em ambas as cidades dentro de poucas décadas a população que vivia fora do plano já era bem maior que aquela dentro do plano. Então para que plano? (..) Não há planejamento imune à desigualdade social.” [VILLAÇA 2005].
La crisis del fordismo urbano se manifiesta, sobre todo, a través de dos ejes de cambio: por una parte, la tendencia hacia la flexibilización urbana por sobre el urbanismo modernista y regulador; y por otra, la caída en el financiamiento estatal de la materialidad urbana (vivienda, equipamientos e infraestructura) y de algunos servicios urbanos colectivos. En ambos casos, el mercado resurge como mecanismo principal de coordinación de la producción de la ciudad, ya sea a través de la privatización de las empresas públicas o por la hegemonía del capital privado en la producción de las materialidades residenciales y comerciales urbanas. Este predominio del mercado como mecanismo de coordinación de las decisiones de uso del suelo constituye un rasgo característico de la ciudad neoliberal, en contraste con el periodo del fordismo urbano, cuando el papel del mercado en la producción de las materialidades urbanas estaba fuertemente mediado por el Estado a través de la definición tanto de las reglas de uso del suelo como de las características de tales materialidades. La crisis del fordismo urbano implica, por tanto, el “retorno del mercado” como elemento determinante en la producción de la ciudad neoliberal. [ABRAMO 2012]
___
REFERÊNCIAS
HURD R M, Principles of City Land Values. New York, Record and Guide 1903
HAIG Robert, "Toward an Understanding of the Metropolis: Part I and Part II". Quarterly Journal of Economics, 40 (1926), 179-208 e 402-434
DICKINSON Robert E, City region and Regionalism: a geographical contribution to human ecology, Londres 1947
WINGO Lowdon, Transportation and Urban Land. Washington, D. C, Resources for the Future, 1961.
BENEVOLO Leonardo, Le Origini dell’Urbanistica Moderna, 1963
RICHARDSON Harry W, Economia Regional, 1969
HALL, Peter (1988). Cities of Tomorrow [1988], edição atualizada Blackwell, Londres, 1996, p. 48
VILLAÇA, F. Espaço Intra-Urbano no Brasil, Capítulo 8: "Os bairros residenciais das camadas de alta renda", Nota 15. p 224. São Paulo 2001: Studio Nobel; FAPESP; Lincoln Institute
HIRT Sonia, Zoned in the USA. Cornell University Press, Ithaca e Londres 2014. Edição Kindle
BORRERO Oscar, “Formación de los precios del suelo urbano”. Lincoln Institute of Land Policy, EAD, 2005.
ABRAMO Pedro, “La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latino-americanas”, EURE vol 38 no 114 mayo 2012 pp. 35-69
2020-11-18