Muitos, nos dias de hoje, enquadrariam o objeto
dessa matéria na categoria ‘financeirização da moradia’. Eu me pergunto se é o
caso.
A moradia – assim entendo - é financeirizada desde
que passou a ser produzida para o mercado, pela simples razão que são poucos os
que podem comprá-la sem financiamento parcial de seu preço. Tradicionalmente,
os contratos de hipoteca preveem que o próprio imóvel é a garantia do
empréstimo para a sua aquisição.
A propósito vale recordar um instrutivo texto, do
ano 1981, em que o economista Martim Smolka descreve a operação de compra-venda
de um imóvel como transferência ao adquirente, por parte da imobiliária, a um
dado preço, do ‘direito de especular’ no mercado de imóveis [1] - que traduzo
como o direito de vender ou alugar por uma renda maior do que a sua dívida.
A financeirização da moradia deu um salto de
qualidade quando, com a desregulamentação de fins do século passado, generalizou-se
nos EUA e Inglaterra a prática dos empréstimos bancários garantidos pelo valor
da residência para a compra de bens de consumo, viagens, universidade
etc. Famílias com rendimentos estagnados, e até decrescentes, passaram a
consumir… o valor futuro de suas casas! [2] [3]
Uma vez re-hipotecado o imóvel em troca de liquidez
a curto prazo, o título da dívida podia ser vendido pelo banco para credores de
que o devedor nunca ouvira falar, nos mais diversos países – a pirâmide financeira que desmoronou em 2007,
levando milhões de pequenos investidores, boa parte deles trabalhadores cooptados
para a mítica “república dos pequenos proprietários’, à perda de seu capital,
isto é, de suas próprias moradias que, afinal, eram o lastro de tudo!
Aqui o que ocorre é algo diferente: a concentração
da propriedade imobiliária nas mãos de um pequeno número de firmas de capital
de investimento em alugueis. O senhorio deixa de ser o dono da padaria e passa
a ser, digamos, George Soros. Este fenômeno parece ter-se acelerado na última
década com a recessão e a baixa generalizada das taxas de juros, na Europa e
EUA, subsequentes à debacle de 2007. Em tempos de investimentos produtivos
de rentabilidade duvidosa, o aluguel residencial em grande escala pode ser um
ótimo negócio. [4]
Poder-se-ia argumentar, é certo, que George Soros
é, ele próprio, um financista. Mas isto significa que, sob o ângulo do capital
proprietário, a ‘financeirização’ não é privilégio exclusivo da moradia,
tampouco do parque imobiliário como um todo: é a forma ‘pura’ do capital que
controla todas as grandes cadeias de negócios na economia planetária -
indústria, comércio e serviços.
“Desfinanceirizar a moradia” é uma causa que tem o
meu apreço; mas seria interessante, nesse caso, que começássemos a discutir do
que exatamente estamos falando e, é claro, como fazê-lo.
[1] “(..) al comercializar um inmueble, la inmobiliaria no sólo vende um activo
fijo, sino que, además, negocia el derecho que capacita al muevo propietario a
especular (..)” [SMOLKA M, “Precio de la tierra y valorización inmobiliaria
urbana: esbozo para una conceptualización del problema”. Revista
Interamericana de Planificación Vol XV, No 60, Dez 1981, p. 78
[2] A
indústria do refinanciamento hipotecário foi uma forma de os estadunidenses
"tomarem emprestado e consumir como se os seus rendimentos estivessem
crescendo". STIGLITZ J, O Mundo em Queda Livre – Os Estados
Unidos, o mercado livre e o naufrágio da economia mundial. Trad. José
Viegas Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Cap. 1: A formação da
crise
[3] “(..) no
Reino Unido e nos EUA, os empréstimos pessoais garantidos pelas residências
(EGR) produziram um aumento do consumo: quanto maior o valor da garantia, maior
o nível de consumo. (..) Desde a desregulamentação do crédito na década de
1970, a EGR contribuiu de forma importante para a demanda do consumidor no
Reino Unido, ainda que somente nos períodos de alta dos preços da moradia (..) A
década anterior à crise financeira registrou níveis sem precedentes de EGR, com
proprietários valendo-se do aumento dos preços das residências para tomar mais
empréstimos e consumir mais. O sociólogo Colin Crouch (2009) descreveu o
fenômeno como uma espécie de 'keynesianismo privatizado': ao passo que no
período 1950-70 a demanda foi sustentada pelo Estado pela via da expansão
fiscal, no período 1980-2007, de declínio dos salários médios, ela foi
alimentada pela dívida hipotecária”. RYAN-COLLINS, LLOYD e MACFARLANE, Rethinking
the Economics of Land and Housing. Zed Books 2017, edição do Kindle, p.
146.
[4] “(..) Residential demand shifts mainly with demography and is less
buffeted by the business cycle. People will still need somewhere to sleep, says
Lawrence Bowles of Savills, a property firm: “You can’t digitalise a bed.” And
in an era of low interest rates, steady rental income becomes more attractive.
(..)” THE ECONOMIST 28-08-2021 “Big British companies are
entering the rental market”
https://www.economist.com/britain/2021/08/28/big-british-companies-are-entering-the-rental-market