quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Vila do Pan – o retorno II

Por Antônio Augusto Veríssimo, Arq. 

Em 13 de dezembro de 2011, publiquei neste blog um artigo intitulado “Vila do Pan – o retorno”. Esse artigo foi motivado por matéria publicada no jornal O GLOBO de 10 de dezembro daquele ano, em que se anunciava a obra de estabilização do solo que, segundo a matéria, poria fim ao impasse na Vila do Pan, provocado pelos frequentes recalques verificados nas ruas que cercam aquele empreendimento. Na oportunidade, questionei se efetivamente tais obras representariam o fim do problema ou apenas mais um exemplo do tipo de “legado” que nos havia deixado o evento dos jogos Panamericanos.

Passado quase um ano, vejo no mesmo O GLOBO que ainda não chegamos ao anunciado fim do citado impasse. Matéria publicada hoje, dia 17 de novembro de 2012, anuncia que a “Prefeitura gastará R$ 33 milhões para recuperar ruas que afundaram” informando ainda que o “orçamento original era de R$ 4,1 milhões”, ou seja, que as “reformas da Vila do Pan custarão oito vezes mais” que o planejado.

De forma extremamente simplista, atribui-se o problema a um eventual rompimento de “acordo” entre o prefeito da época e a empresa construtora da Vila. No entanto, as origens desta questão são mais complexas; foi o que procurei demonstrar no artigo que À beira do urbanismo reapresenta abaixo. 




Vila do Pan – o retorno

Matéria publicada no dia 10 de dezembro, no Jornal O GLOBO, informa que a realização de obra de estabilização do solo de rua, que poderia comprometer a imagem olímpica, põe fim a impasse na Vila do Pan. Será?

                A Vila do Pan está construída na Subzona A-39 que está compreendida entre o Canal do Anil e a Av. Alvorada, sendo limitada ao sul pela Lagoa do Camorim e ao norte pela Via 7 do PA 8997. Esta subzona é constituída por duas áreas: uma denominada “Área A” abrangida pelo PA 9822 e pelo PAL 35457, limitada ao norte pela Via 7 do PA 8997, ao sul pela Via Parque Projetada C, e ao leste, pela Avenida Canal do Anil e a Oeste pela Avenida Alvorada; e outra, denominada “Área B” entre a Avenida Parque Projetada C do PA 9822 e a Lagoa do Camorim, limitada a leste pela Avenida Canal do Anil e a oste pela Avenida Alvorada.
            No mapa a seguir pode-se visualizar graficamente a descrição realizada acima da Subzona A-39 e na imagem seguinte a sua sobreposição sobre uma foto aérea onde se pode conferi a localização da Vila do Pan na Área B da desta Subzona.


Mapa 1- ZE 5 Subzona A-39 do Decreto 3.046/81

Figura 1 – Localização da Vila do Pan em relação à Subzona A-39
                A Legislação vigente para a Área B da Subzona A-39, definida no Decreto 3.046/81, estipulava que o lote mínimo permitido naquele local era de 3 mil metros quadrados com uma testata mínima de 40 metros. Nestes lotes poderiam ser construída, apenas, uma unidade habitacional com, apenas, um pavimento por lote. Estas unidades habitacionais não poderiam ocupar mais do que dez por cento do terreno. O uso comercial somente era admitido em lotes com frente para a Avenida Alvorada, limitada a sua altura a dois pavimentos, sendo admitida uma ocupação do terreno de, no máximo, vinte por cento, além de estarem afastadas 10 metros da Avenida e 4 metros das demais edificações.
            Como pode ser observado, tais parâmetros urbanísticos restritivos induziam a uma ocupação de pouca densidade e pouca carga. A legislação estabelecida para o local levou em consideração as frageis condições de resistência do solo naquela região e, por isso, não incentivava a sua ocupação intensiva.
                Não obstante serem previamente conhecidas as precárias condições daquele solo, a partir do ano de 2002 foram aprovadas uma série de leis e editados decretos que alteraram profundamente os parâmetros urbanísticos e edilícios para o local.
                Em 27 de setembro de 2002 foi aprovada a Lei Complementar  N.º 59 que definiu usos para os lotes 1 a 41 da Q.4 do PAL 18 328  em função dos Jogos Panamericanos de 2007.
                Em 22 de novembro de 2002 foram aprovadas as Lei Complementares N.º 60 e 61 que alterou parâmetros edilícios e dispositivo da LC N.º 59/2002.
                Em 11 de dezembro de 2003, foi editado o Decreto N.º 23811 que alterou parâmetros edilícios;
                Em 08 de janeiro de 2004, foi editado o Decreto N.º 23900 que alterou parâmetros edilícios.
                As alterações realizadas na legislação para o local atribuiram aos lotes ali existentes um potencial de edificabilidade muitas vezes superior àquele vigente na legislação de 1981. Isto quer dizer que, se um proprietário de um lote com 3 mil metros quadrados poderia construir anteriormente apenas uma edificação unifamiliar com 300 metros quadrados, a partir da edição das novas normas poderia edificar, no mesmo lote, 24 apartamentos com  300 m² cada ou 72 apartamentos com 100 m2 cada.
                Comparando-se os potenciais construtivos permitidos pela legislação antes e depois de 2002/2004, pode-se concluir que o valor no mercado desses lotes multiplicou-se muitas vezes neste curto período, aumentando significativamente o patrimonio econômico dos seus proprietários.
                Não bastasse o intenso incremento do potencial construtivo que se reflete - por consequencia - em um intenso aumento do valor dos lotes no mercado, resolveu também a Prefeitura investir na colocação da infraestrura necessária para a construção dessas edificações, obrigação que deveria ser assumida, legal e lógicamente, pelo empreendedor, já que o preço de venda dos imóveis, comercializados livremente no mercado, já incorpora este tipo de investimento.
                Não fossem suficientes as benesses concedidas ao empreendedor pela Prefeitura, por meio das alterações nos parâmetros legais e pela sua desoneração na execução da infraestrutura, resolveu também o Governo Federal conceder uma linha de financiamento privilegiada para a comercialização das unidades, utilizando-se os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador o FAT, com condições muito mais favoraveis de financiamento que aquelas disponíveis no mercado na ocasião.


                 No quadro abaixo pode-se comparar as taxas de juros oferecidas pelo mercado com aquela concedida para a comercialização dos imóveis da Vila do Pan.

                Tendo em vista os generosos benefícios concedidos ao empreendedor - cumulativamente - pelos governos municipal e federal, seria plenamente justificavel, e esperado, que o responsável pelas edificações alí construídas disponibilizasse em contrapartida os imóveis para a utilização pelos atletas e delegações durante o decorrer dos jogos Pan e Para Panamericanos. Porém não foi isso que aconteceu. Apesar de todas as benesses concedidas, resolveu o Governo Federal, adicionamente, pagar ao empreendedor, antecipadamente, ou seja, antes das edificações estarem concluídas, o valor de 25 milhões de reais a título de “aluguel” para a utilização futura das unidades durante os jogos[1].
                Mais uma vez ainda seria possível justificar tanto aporte de recursos públicos a um empreendimento privado se, ao fim do dia, tais unidades, produzidas substancialmente com recursos advindos dos impostos arrecadados da população, fossem finalmente destinadas a um uso social, ou seja, estivessem a serviço da redução do défict habitacional da cidade. Mas não foi isso que aconteceu. A despeito dos volumosos subsídios públicos incorporados ao valor de venda[2], estes imóveis foram comercializados livremente no mercado, sem nenhuma restrição, havendo casos, como amplamente divulgado, de um mesmo comprador ter adquirido mais de uma unidade no empreendimento[3].           
            Não bastasse, como visto, os volumosos recursos públicos investidos em um empreendimento privado, que sequer teve muito trabalho e despesa para ser comercializado, já que a grife de Vila do PAN já lhe garantia uma intensa exposição midiática; restou ainda para o contribuinte municipal arcar com os custos[4] dos reparos dos danos - mais do que previsiveis - causados à infraestrutura pela já conhecida instabilidade do solo no local.
            Mais um caso típico de parceria público privada, onde os lucros se privatizam e os prejuizos são socializados.

Rio, 10 de dezembro de 2011
Antônio Augusto Veríssimo
Arquiteto.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Incontornável indiferença? (04-07-2012/ republicação)

Deu n’O Fluminense
http://jornal.ofluminense.com.br/editorias/cidades/desapropriacao-da-contorno-deixa-moradores-inseguros

Desapropriação da Contorno deixa moradores inseguros
Por: Ciro Cavalcante 18/05/2012


Conforme anunciado pela Autopista Fluminense, concessionária responsável pela duplicação da Avenida do Contorno, 103 famílias de um trecho da Avenida do Contorno, no Barreto, podem sofrer desapropriação para realização das obras de duplicação da via. (...)

“Há cerca de dois meses apareceram pessoas que se apresentaram e informaram que talvez seja necessário que abandonemos nossas residências para dar espaço para as obras. Eles percorreram cerca de dez casas aqui da Travessa e em todas foi realizada o mesmo procedimento: o cadastramento dos moradores, recolhendo os respectivos documentos pessoais e dos imóveis, fazendo medição das casas e do terreno, além de documentar tudo através de fotografias. Eles declararam que um engenheiro viria nos informar sobre os próximos passos, dizendo quais casas efetivamente vão ser desapropriadas e tratariam conosco toda a questão de indenização”, disse a aposentada Laureci de Jesus, de 63 anos.

Há quanto tempo os responsáveis pela duplicação Avenida do Contorno – cujo atraso tem pelo menos 1/4 de século – já não sabiam que seria necessária a realocação de mais de 100 famílias afetadas pelas obras?

Será possível que até hoje as autoridades fluminenses ainda não entenderam que a mera “desapropriação” de moradores informais, ou de poucos recursos, é um injustificável ato de violência e que a sua realocação em novas residências, o mais próximas possível do local onde moram, tem de fazer  parte do planejamento, projeto e execução de qualquer obra viária?

Faz sentido gastarmos centenas de milhões com ações de urbanização de favelas  e subsídios do Minha Casa Minha Vida e ao mesmo tempo condenar, nas mesmíssimas cidades, moradores afetados por uma obra viária à política do "tomem o dinheiro e se virem” - num mercado imobiliário violentamente inflacionado? 

De que serve, neste caso, a experiência acumulada em 50 anos de projetos de reurbanização de favelas e loteamentos populares no Brasil? Até na Linha Amarela, Rio de Janeiro, via expressa que está longe de poder ser chamada de "projeto urbanizador", construíram-se novas moradias para os desalojados das obras - por iniciativa da Secretaria Municipal de Habitação! 

Como podem as autoridades fluminenses, numa época em que o governo da cidade do Rio de Janeiro se propõe a gastar milhões na demolição de infraestruturas viárias anti-urbanas construídas na onda desenvolvimentista dos anos 1950-70,  não ter ainda percebido que toda obra viária em meio urbano tem de ser concebida como uma ação urbanizadora?

Será a onda desenvolvimentista dos anos 2005-2015 tão cega, surda e muda em relação ao ambiente urbano e seus usuários quanto a sua antecessora? 

Olhem a foto aérea, leitores,  e digam se lhes parece particularmente difícil combinar-se a duplicação da Av. do Contorno com uma ação de reurbanização e reassentamento das famílias desalojadas no mesmíssimo bairro onde residem, com recursos do PAC e do programa Minha Casa Minha Vida! 

De que se trata? Incontornável indiferença burocrática ou mera incapacidade de aprender?




sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Rolnik: Nosso déficit não é de casas, é de cidade

Fonte: Internet
Imperdível a entrevista de Raquel Rolnik* ao Jornal do Brasil, em 22-10-2012, em que  discute, dentre outros temas, a relação entre financeirização do negócio imobiliário, política habitacional e os programas Minha Casa Minha Vida e PAC, a democracia nas cidades, a (ausência de) uma política nacional de desenvolvimento urbano, a promessa e a realidade do Estatuto da Cidade, etc. 

O blogueiro não resiste à tentação de dizer que se sentiu perfeitamente representado e pronto para dormir o sono dos justos ao ler, na entrevista, a seguinte afirmação:
"A economia política das cidades ainda é conduzida pelos setores que têm na cidade o seu negócio. São interesses econômicos mais ligados ao setor imobiliário e ao setor das empreiteiras de obras públicas, concessionárias de serviço público. Isso aí manda nas cidades, nas câmaras municipais, e portanto nós não conseguimos romper essa lógica da hegemonia desse setor nas cidades." (Raquel Rolnik, entrevista ao JB em 22-10-2012). 
Não foi por outra razão que, às vésperas das recém-findas eleições municipais, propus a formação, em Niterói, de uma "coligação em defesa da cidade" e apoiei os candidatos do PSOL e do PT pedindo-lhes para formar "uma aliança com todos os que desejam uma administração livre da influência de bancos, empreiteiras, imobiliárias e concessionárias de serviços públicos". CQD! A proposta não vingou, mas continua valendo. 

Leia a íntegra da entrevista em
http://raquelrolnik.wordpress.com/2012/11/06/nosso-deficit-nao-e-de-casas-e-de-cidade/

*Raquel Rolnik é urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada.



terça-feira, 6 de novembro de 2012

O traseiro da TV e o lucro imobiliário - republicação

Publicado originalmente em 07-07-2011

Apesar de paulatina e inexorável, a diminuição do tamanho dos apartamentos nas grandes cidades é uma fonte permanente de novos espantos. Anos atrás, o mundo se estarreceu com a notícia de que os trabalhadores do centro de Tóquio moravam em armários embutidos. 

Por aqui, ainda não chegamos a tanto. Ajudada, porém, pela tecnologia e design de fogões, geladeiras e armários modulados, a indústria da incorporação imobiliária vem conseguindo nos convencer, década a década, ano a ano, das inúmeras vantagens de uma vida cada vez mais “prática” e “econômica” em espaços cada vez mais exíguos.

Na minha rua foram recém lançadas unidades de dois quartos, sendo um de 10m2 e outro de 8m2, ao preço de R$ 3.000,00 o m2 privativo. Nos apartamentos de classe média de hoje em dia, é difícil ter uma estante de livros. Espera-se que você os leia pelo computador, de preferência num cubículo anexo ao “espaço-gourmet”!

A redução da metragem das unidades residenciais é uma das formas clássicas do aumento da parte do lucro imobiliário que atende pelo nome de renda da terra. Ela e a construção em altura compõem o capítulo da economia urbana intitulado “Modalidades da intensificação do uso da terra urbana”.

Salvo mudanças súbitas das normas de uso e edificabilidade e outros tipos de benefícios públicos, é difícil imaginar um salto de rentabilidade imobiliária tão espetacular quanto aquele proporcionado pela introdução das TVs de plasma e LCD. Em poucos anos, a largura típica dos cômodos foi reduzida de 3,00m para 2,70 e os sofás ganharam em comprimento e, sobretudo, onipresença. Já não há poltronas laterais: a sala de estar do apartamento típico é agora um largo corredor com um único sofá de frente para a teletela* onde a família se enfileira para assistir à imensa variedade de opções de entretenimento proporcionadas pelo Grande Irmão, o  Mercado: as novelas, o Jornal Nacional, o futebol das quartas e domingos, o Faustão e ele próprio, disfarçado de Pedro Bial.

O moderno apartamento compacto de sala e dois quartos (1 suite) para a demanda “não social” tem 72m2 de área privativa, com um “módulo social básico” (sala de estar e 2 quartos) de aproximadamente 9x4m. Multiplicando-se os 4m de largura por 3 faixas de 0,30m poupadas pela plástica radical operada no traseiro dos aparelhos de TV, temos uma economia de 3,60m2 por apartamento. A cada 20 apartamentos, a TV de plasma dá ao incorporador 72m2, vale dizer uma unidade inteirinha, um acréscimo de receita de 1/20 (5,0 %) em seu Valor Geral de Vendas (VGV)! Considerando para apartamentos do padrão aqui comentado cotas de terreno na faixa de 15-30%, temos que o aumento de rentabilidade proporcionado pelas TVs de plasma e LCD pode variar entre 0,75% e 1,50% do VGV.

Num lançamento de 2010 próximo à minha casa (não estranhe, leitor, eu vivo num bairro-cenário do espetáculo do crescimento nacional!), os apartamentos têm área média de 73,80m2, o m2 privativo é vendido a R$3.870,06 e o VGV soma R$23.935.000,00 – dados do incorporador. Aplicando o percentual de 1,50% (compatível com o preço do m2), eu estimo que a rentabilidade da poupança dos novos aparelhos de TV soma, neste empreendimento, R$359.025,00, o equivalente ao preço de venda de 1,28 unidade-tipo.

Aplicando o mesmo raciocínio, com a taxa mínima acima descrita de 0,75%, ao VGV total das empresas ADEMI informado para o ano de 2008 no Rio de Janeiro, (ver postagem anterior) obtemos um acréscimo de lucro imobiliário (em renda da terra), atualizado para dezembro de 2010, da ordem de 30 milhões de reais!

Ocorre-me uma pergunta: neste nosso estranho mundo em que o acesso à terra – um bem natural e irreprodutível, tão essencial à vida quanto o ar, a água e a energia – depende de que o usuário pague a totalidade de seu excedente de consumo ao detentor do direito de propriedade, e em que empresas de um país adquirem direitos econômicos sobre a diversidade biológica de outro, seria de estranhar que o cartel dos eletroeletrônicos cobrasse “direitos de externalidade” ao cartel das imobiliárias que ganham milhões com a extinção do traseiro gordo dos aparelhos de TV?

Acho que vou patentear essa idéia sob o nome de “recuperação privada da valorização da terra” (“recuperación privada de plusvalías”, em espanhol). Até já comecei a soprar nos ouvidos do Grande Irmão a justeza intrínseca do princípio liberal: “Toda externalidade (privada, é claro) será compensada”. Em breve, estarei mais rico do que o Carlos Slim e o Eike Batista juntos! 

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* Aos leitores mais jovens que porventura desconheçam o termo  teletela eu recomendo a leitura da  novela  futurista 1984, do escritor britânico George Orwell (1903-1950).