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quarta-feira, 1 de março de 2023

Traçado ortogonal, cidade radial

Última edição em 30-07-2023

The Economist 20-12-2022
https://www.economist.com/interactive/christmas-specials/2022/12/20/the-decline-of-the-city-grid

Montagem: Abeiradourbanismo
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Esse artigo, como tantos outros dedicados ao tema fascinante da urbanização em grade ortogonal, também chamada malha hipodâmica, discute o seu objeto como se as estruturas espaciais urbanas fossem meras opções projetuais: “no último século a quadrícula saiu de moda”.

Um loteador poderá optar, de acordo com a preferência e o poder de compra de seus clientes, entre diversos tipos de traçado. Mas as circunstâncias que geraram o grid de Chicago nada têm a ver com critérios projetuais de urbanismo, preferências do consumidor ou modismos, embora o confirmem como o sistema mais simples e rentável de parcelamento e comercialização do solo: para financiar o Estado recém-criado, a Lei de Terras estadunidense de 1785 (Land Ordinance) dividiu os territórios do Oeste, ainda nem bem conquistados e essencialmente desconhecidos, em townships de 6x6 milhas, subdivididas em 36 sections parceláveis e renegociáveis de 1x1 milha, de modo a facilitar a venda de propriedades agrícolas a colonos nacionais e estrangeiros. Com referência ao uso urbano, que veio a se tornar um maná especulativo, diz a Britânnica de 1963: “Sua vantagem particular era que uma nova cidade podia ser planejada nos escritórios das imobiliárias do Leste e as terras vendidas sem que nem comprador nem vendedor tivessem nunca visto o lugar". [1]

Apesar de generalizado nos Estados Unidos desde o início do século XIX, o uso da malha urbana ortogonal pela indústria da urbanização tem raízes mais antigas e menos plebeias. Em seu clássico La Ciudad en la Historia, Mumford observa que
Stuttgart 1794, Edimburgo 1773, Berlim 1789
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El único hecho que lo hace [este tipo de trazado urbano] más notorio en los Estados Unidos que en el Viejo Mundo es la ausencia, excepto en zonas como las de los establecimientos iniciales de Boston y Nueva York, de tipos anteriores de planificación urbana. A partir del siglo XVII, las extensiones de ciudades occidentales, tanto en Stuttgart y Berlín como en Londres y Edimburgo, se hicieron del mismo modo, excepto donde antiguos cursos de agua, caminos o límites de campos habían establecido líneas que no era fácil anular. (..) Estos planos servían únicamente para una rápida división de la tierra, una rápida conversión de solares en lotes y una rápida venta. La carencia misma de adaptaciones más específicas al paisaje o a las necesidades humanas solo aumentaba, por su misma imprecisión e indeterminación, su utilidad general para el mercado. [1a] 

O que, por outro lado, não se pode deixar de observar, e que os textos sobre a grade ortogonal em geral desconsideram, é o fato de que a "economia da ocupação do solo", tão bem descrita pelo articulista, que fez da grade ortogonal o traçado padrão da moderna urbanização de mercado, é obrigada por essa mesma urbanização de mercado a coexistir com estruturas de acessibilidade urbana de tipo radial-concêntrico derivadas da “economia da localização” - como representada, por exemplo, no modelo geral da distribuição dos usos do solo na metrópole contemporânea, sintetizado por William Alonso na década de 1960. [1b]

Imagem: Àbeiradourbanismo

Essa relação nem sempre amigável entre as estruturas espaciais da apropriação/ocupação do solo para fins urbanos - que remontam aos primórdios das cidades e variam significativamente conforme a época e o lugar - e da moderna acessibilidade urbana - que são essencialmente as mesmas em todo o planeta - constitui a meu juízo um aspecto capital e inescapável do urbanismo de nosso tempo. 
Em artigo recente, escrevi:

 “(..) As forças que regem a organização sócio-espacial das metrópoles modernas não se subordinam, apenas se adaptam na medida da necessidade, aos traçados pré-existentes. A "economia da localização" se sobrepõe mais ou menos despoticamente à "economia da ocupação" segundo regras que lhe são próprias. As leis da organização sócio-espacial urbana são as mesmas, e seus efeitos análogos, na cidade radiocêntrica de Porto Alegre e nos vastos reticulados de Barcelona e Chicago. (..)” [2]


Corrijo-me, agora: as leis da “economia da localização urbana” são as mesmas em todas as cidades modernas, vale dizer construídas pela economia de mercado, mas os efeitos de sua coexistência com as regras da "economia da ocupação do solo” variam - segundo a resistência que esta última lhes ofereça. Em 1903, Hurd postulou tal relação nos seguintes termos: as cidades crescem em todas as direções a partir do ponto de origem salvo quando obstaculizadas pela topografia ou pela estrutura da propriedade fundiária pré-existente. [3] Na década de 1920, Burgess reafirmou o postulado acrescentando, como fatores de resistência, eventuais elementos construídos (ferrovias, aquedutos) e, muito importante, as próprias comunidades previamente assentadas no território. [4] 
Falta acrescentar um aspecto capital: os planos reguladores.

Se defrontadas por um rígido plano regulador de urbanismo, como em Brasília, as leis da economia da localização impor-se-ão à metrópole em expansão como coroa exterior de cidades satélites. 
Brasília - Plano Piloto e cidades satélites
Montagem: Àbeiradourbanismo
  


Montagem: Àbeiradourbanismo
Em face de uma grade parcelária pré-estabelecida, como no caso de Chicago, o arruamento e o reparcelamento do solo para fins urbanos acompanharão a grade e a preferência locacional dos usos residenciais recairá, como observou Burgess num texto de 1929,[5] sobre as principais artérias ortogonais de acesso ao centro de negócios, com a desvalorização relativa dos lotes urbanos situados nas direções diagonais. 
Por esse exato motivo, observou Burgess no mesmo texto, as manchas urbanas de cidades de planície do Meio-Oeste dos EUA tenderam a se expandir em forma de cruz de malta. Nos dois casos citados, Ft. Worth e Columbus, o próprio grid parece ter sido ajustado para deixar aos obstáculos geográficos as direções diagonais. 

Esse efeito é particularmente nítido na expansão das cidades argentinas nascidas do processo de colonização agrícola do Pampa Bonaerense na segunda metade do século XIX, como Chivilcoy, situada a 160km de Buenos Aires. Como mostra o mapa de Qualidade da Vida Urbana de DICROCE et al, [5a] Chivilcoy, com cerca de 56 mil habitantes em 2010, se expande ao longo das ortogonais principais de acesso ao Centro muito mais rapidamente do que nas direções diagonais, inclusive no que tange às quadras de maior qualidade de urbanização, consequentemente de maior rendimento familiar. A expansão da urbanização de melhor qualidade ao norte deriva,
Acréscimos e montagem: Àbeiradourbanismo
provavelmente, da proximidade da Estação Rodoviária, que desde 1975 dá acesso à capital em substituição à Estação Ferroviária Norte. Para as camadas empobrecidas, a acessibilidade ao centro urbano proporcionada pelos prolongamentos das ortogonais principais aparece aqui como determinante absoluto, a despeito da maior distância. A concentração de quadras de urbanização precária a sudeste, por sua vez, estaria relacionada à presença da Estação Ferroviária Sul, que serve a um ramal destinado ao transporte de cargas. 
Na ilustração acima, construída sobre o mapa original de DICROCE et al, são perceptíveis dois aspectos da expansão tendencialmente radio-concêntrica da cidade contemporânea: (1) a distribuição decrescente dos padrões de urbanização e rendimento familiar por coroas circulares e gradientes de preços da terra resultantes; (2) a formação de um “cone de altos rendimentos” [5b] para além do núcleo fundacional na direção norte. A singularidade que distingue Chivilcoy das cidades de crescimento "orgânico" é a ocupação da totalidade (180 graus) do núcleo fundacional pelas famílias de mais altos rendimentos, produto da enorme diferença histórica de padrão de urbanização relativamente ao seu entorno.

Na Barcelona de Cerdà, a comunicação direta e projetualmente privilegiada da cidade medieval-renascentista com a Vila de Gràcia determinou tanto 
Montagem: àbeiradourbanismo
a formação do corredor principal de acesso ao novo centro de negócios (Plaça de Catalunya / Portal de l'Àngel) quanto
 a preferência da localização residencial: o Passeig de Gràcia e a Rambla de Catalunya eram os endereços das mais importantes residências burguesas da primeira metade do século 20. Décadas mais tarde, a cidade radial-concêntrica se manifestaria em sua plenitude, como em todas as demais metrópoles, na configuração de seu sistema de Metrô.


Tal como as redes ferroviária e metroviária, o sistema rodoviário principal da grande metrópole também tende a apresentar a disposição radial-concêntrica determinada pelo princípio geral da menor distância, ou, mais exatamente, da maior acessibilidade das localizações residenciais ao centro urbano principal - superposto, por meio de obras públicas de 
grande envergadura, ao arruamento legado pelos ciclos de parcelamento e ocupação privada do solo que o precederam. [6] 
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Na ausência de ocupação prévia, de obstáculos físicos naturais e construídos, de grandes propriedades e de institutos reguladores, a urbanização de mercado imporá o princípio
Porto Alegre 1928 - linhas de bonde
geral
dos gradientes de custo-distância na forma “pura” da expansão radial-concêntrica – caso clássico da Porto Alegre de inícios do século XX. Abrindo-se em leque para ocupar toda a “coroa de 180 graus de terra firme disponível para a expansão urbana” [6a], a capital pós-colonial formou uma rede orgânica de vias radio-circunferenciais que ensejou a criação, no terceiro quarto do século XX, tanto de seu sistema de vias perimetrais quanto da região de planejamento batizada “cidade radiocêntrica”.

*

Um caso singular de adaptação da estrutura radial-concêntrica às redes urbanas herdadas do passado é o centro comercial e de negócios. Devido às vantagens econômicas da aglomeração, os negócios tendem a se beneficiar da ocupação dos arruamentos pré- ou proto-modernos, mais ou menos irregulares, mas altamente concentrados. Nas palavras de Hurd: 

"Há quem pense que quanto mais larga mais valorizada é a rua, devido à maior capacidade de tráfego. Mas em uma rua comercial, a largura é praticamente irrelevante (..). A pouca largura facilita o intercâmbio entre os dois lados, o que é de alguma forma vantajoso para os negócios quando não implica em limitação à altura dos edifícios". [7]
Boston 1814 (esq, acima), Boston CBD 1896 (esq abaixo) e Devonshire St atual (dir)
Essa propriedade dos arruamentos herdados do passado pré- ou proto-capitalista das metrópoles contemporâneas suscita uma interessante questão: serão os traçados regulares das cidades ex novo, com amplas avenidas centrais, ruas largas e baixa densidade construída um fator historicamente inibitivo do desenvolvimento de suas aglomerações comerciais e, por extensão, da própria economia urbana? 

Cruzamento da Av Soárez com Alvear, centro comercial de Chivilcoy, Argentina
Imagem Google 07-2023 

*

Em sua forma ‘pura’, vale dizer ‘determinada pelos imperativos fundamentais da 'economia da ocupação do solo' e 'da economia da localização urbana’, a estrutura físico-espacial da metrópole capitalista pode ser descrita como uma malha viária radial-concêntrica ‘preenchida’ por uma colcha de retalhos de parcelamentos reticulados de distintos tamanhos e padrões projetuais, tendo ao centro, ou em área contígua ao centro de negócios, o tecido remanescente das cidades pré- e proto-capitalistas. 

Nas metrópoles reais, essa estrutura impõe a sua soberania, que procede do capital em geral, de maneiras infinitamente diversas, amoldando-se aos fatores de resistência geográfica, econômica, social, cultural e política herdados do passado próximo ou distante.


*

Retornando ao artigo que deu origem a essa postagem, a ideia de que “o grid está em declínio” me parece uma dedução meramente circunstancial relacionada, se tanto, às práticas correntes da indústria estadunidense dos loteamentos suburbanos - que orientam a parte final do texto. Relativamente a qualquer outro país, o grid não pode estar em declínio nos EUA: ele é o marco regulador, indelével e indestrutível até onde alcança a perspectiva histórica, de seu singular processo de urbanização, simbolizado nas icônicas imagens de aglomerados de arranha-céus em meio a vastos reticulados urbanos de baixíssima densidade.

Ft. Worth, Texas, década de 1950

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NOTAS

[1] Britannica 1963 V 5 p 816, “City Planning”

[1a] MUMFORD L (1961), “Capítulo XIV - Expansión Comercial y Disolución Urbana, 4. Los especuladores y el trazado de la ciudad”. La Ciudad en la Historia, Logroño (Esp): Pepitas de calabaza Ed., pp.701-709. [300-304 no link abaixo]
https://istoriamundial.files.wordpress.com/2013/11/la-ciudad-en-la-historia_lewis-mumford.pdf

[1b] ABRAMO P (2001) Mercado e Ordem Urbana: do caos à teoria da localização residencial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil 2001, pp. 65-87

[2] JORGENSEN P, “Porto Alegre cidade radiocêntrica (1)”. À beira do urbanismo (blog) 09-04-2019. https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2019/04/porto-alegre-cidade-radiocentrica-1.html

[3] HURD R M, Principles of City Land Values. New York, Record and Guide 1903
https://archive.org/.../principlesofcity.../page/n4/mode/1up

[4] BURGESS E W, “The Growth of the City: An Introduction to a Research Project", em BURGESS, E W e PARK R E, The City:Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment, The University of Chicago Press, 1984: Chicago e Londres
http://shora.tabriz.ir/Uploads/83/cms/user/File/657/E_Book/Urban%20Studies/park%20burgess%20the%20city.pdf

[5] BURGESS E W, "Urban Areas", em SMITH e WHITE, Chicago, An Experiment in Social Sciences Research, Chicago: University of Chicago Press 1929, pp 113-138

[5a] DICROCE L et al 2008, “Implementación de un Modelo de Calidad de Vida Urbana (MCVU). Caso de estudio: Chivilcoy”. IDEHAB, Universidad Nacional de La Plata.
http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/94194

[5b] SABATINI F (2003),”La segregación social del espacio en las ciudades de América Latina”. Documentos del Instituto de Estudios Urbanos y Territoriales, Serie Azul Nº 35, Julio 2003, p. 25.

[6] JORGENSEN P, “Porto Alegre cidade radiocêntrica (1)”. À beira do urbanismo (blog) 09-04-2019. https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2019/04/porto-alegre-cidade-radiocentrica-1.html

[6a] [4] VILLAÇA F, Espaço Intra-Urbano no Brasil Cap 5 “A estrutura urbana básica”, p. 132.

[7] HURD R M, Principles of City Land Values. New York, Record and Guide 1903
https://archive.org/.../principlesofcity.../page/n4/mode/1up


2023-03-01

sábado, 26 de outubro de 2019

Linha da vida

The Economist 10-10-2019 

A ride along Chicago’s red line

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Life expectancy varies by 30 years from one end to the other

Several passengers in one carriage of an “L” train, rattling south on the underground line to Chicago metro station, are unmistakably bourgeois. A grey-haired woman squints at a book of 501 French verbs. Opposite, a bespectacled man reads a study of Arctic peoples. Some seats on, an artist doodles on his pad.

Many well-heeled occupants get off the Red line—a rail service running north-south for 23 miles—at Streeterville, a district where signs of prosperity abound. As an advertising gimmick, a luxury car adorns the L-station roof. At a farmers’ market, installed beside a contemporary art museum, shoppers browse for micro-greens, organic beef and gluten-free tamales. A violinist there explains she busks to save for college. Dollar bills fill her case.

Streeterville has another distinction. Public-health researchers suggest that a baby born here can expect to live for an average of 90 years, the highest life expectancy in Chicago. That is 30 years longer than an infant born in the most blighted parts of Englewood, farther south along the Red line. No city in America has a bigger gap.

Return to the train and much changes the farther south you ride. Passengers are younger, less ostentatiously set on self-improvement. A guard in a stab-vest, his hand on a canister of pepper spray, steps in. He confides that he is tracking a suspect. Reports of crime on the L system doubled from 2015 to last year; violent cases rose by 89%, to 447. This year is worse, he says, and “you can’t ask why any more.” (..) 

2019-10-24

domingo, 18 de agosto de 2019

Chicago, século XIX: em busca do Grid (1)

Chicago em 1857 
Litogravura C. Inger, c/ base 
em desenho de I.T. Palmatary 
Encyclopedia of Chicago / Historical Society 
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Uma incursão pela Encyclopedia of Chicago à procura das origens do Grid, trama urbana reticulada que é um dos aspectos característicos da cidade, levou-me a uma cadeia de fatos e desenvolvimentos urbanos bastante anteriores à entrada em cena do urbanismo e do planejamento tal como geralmente os referimos, de seus colaterais no âmbito da sociologia e da geografia [1] e da fama que eles, com justificada razão, agregaram à grande metrópole estadunidense. 

As três postagens previstas para este título são um breve resumo dessa peregrinação pelas fontes de informação, não acadêmicas em sua maior parte e todas disponíveis na Internet. Para obter o texto compacto que exigem as postagens, optei por colocar os muitos adendos explicativos, quase todos livremente redigidos com base nas fontes citadas, como notas de rodapé - culpa, por certo, da minha síntese pouco competente, mas em alguma medida também da própria Chicago, cuja vertiginosa história não se deixa resumir em poucos parágrafos sem um boa quantidade de atalhos, ramificações e... loops

O leitor poderá optar pelo sistema expresso ou pelo parador. Se tiver tempo, será interessante experimentar os dois.

Uma excepcional combinação de circunstâncias


De town de 350 almas reconhecida em 1833 a city de 4.170 habitantes instituída em 1837, Chicago emergiu à beira do Lago Michigan como uma bolha urbana em meio ao tropel colonizador do Meio-Oeste norte-americano. 

Segundo a maior parte dos relatos, o motor dessa transformação foi o início da construção, em 1836, do Canal Illinois & Michigan, ponta de linha do complexo hidroviário que serviu, até o amadurecimento da rede ferroviária norte-americana na década de 1880, de principal rota de transporte de mercadorias entre as férteis terras agrícolas virtualmente inexploradas do médio-alto Mississippi e a Nova Inglaterra já em acelerado processo de urbanização e industrialização.[2]

Contudo, uma grande obra de infraestrutura regional e um novo fluxo de riquezas não criam por si sós, em seu caminho, uma nova metrópole, e em nenhuma hipótese como o que se deu aqui [3a]: em pouco mais de 70 anos, um pequeno povoado lacustre de 350 habitantes [3] se transformou em metrópole nacional de mais de 2 milhões. Uma combinação excepcional de circunstâncias há de estar envolvida. 

Duas dessas circunstâncias foram, sem dúvida, a venda massiva de terras federais recém tomadas aos nativos - parte delas cedidas ao novo estado de Illinois a cargo da Comissão do Canal I&M para o financiamento da obra [4] - e a vigorosa onda migratória Leste-Oeste que incluiu, a partir de 1840, grandes contingentes de trabalhadores e colonos europeus em busca de oportunidades no Novo Mundo. [5][6]  O resultado foi a transformação da região, quase que da noite para o dia, em um paraíso especulativo. 

Abundante oferta de terras férteis para cultivo e criação em pequenas e médias propriedades com escoamento assegurado; um sólido mercado de consumo estabelecido na Nova Inglaterra; legiões de migrantes [7] com níveis de qualificação convenientemente distribuídos; fortunas meteóricas, portanto capital de investimento ávido por oportunidades de valorização, nascidas da especulação em larga escala dos preços do solo [8]; uma extraordinária massa crítica de progressos tecnológicos; enorme demanda de  gastos públicos na construção da infraestrutura regional e urbana [9]; e, muito importante apesar de pouco citada, a localização estratégica de Chicago para o esforço ianque na Guerra de Secessão (1861-65) [10] - foram os ingredientes dessa mistura explosiva.

Projetado pelo arquiteto-engenheiro 
William Le Baron Jenney, o 
Home Insurance Building, 
inaugurado em 1885, é tido 
como um dos primeiros arranha-céus, 
com 42m de altura e 10 pavimentos, 
mais 2 acrescidos em 1891.  Foi o 
primeiro de seu gênero a utilizar 
elementos estruturais em aço, embora
a maior parte da estrutura fosse em 
ferro fundido e forjado. Pesava um 
terço do que teria um equivalente em 
alvenaria. As autoridades ficaram tão 
apreensivas que fizeram suspender a 
obra para investigar a sua segurança. 
Foi demolido em 1931.
O turbilhão econômico foi de tal ordem que, em retrospecto, as crises recessivas de 1837-43 e 1873-78 [11] são lembradas como meros contratempos e o devastador incêndio de 1871 [12] um acidente de percurso, aliás muito bem aproveitado, no building boom que o sucedeu, como oportunidade de inversão de capitais na construção do mais moderno centro de negócios do planeta.[13] 

Em 1893, sessenta anos depois de sua instituição como um "povoado pobre e mal-ajambrado, de futuro duvidoso", Chicago exibiu-se ao mundo na Exposição Internacional que ela mesma organizou [14], se não na função de quartel-general, que cabia com exclusividade a Nova York, seguramente como casa de força da imparável expansão do capitalismo norte-americano.

Urbanismo antes do urbanismo

Como qualquer grande cidade na época moderna, Chicago foi obrigada a enfrentar uma série de problemas que hoje dizemos “urbanos” desde muito antes da consolidação, nas primeiras décadas do século XX, do urbanismo e do planejamento como disciplinas técnicas, profissões reconhecidas e áreas especializadas da administração pública.

E o fez, como era de se esperar, no ritmo das urgências e necessidades de uma agressiva classe proprietária dominante em meteórica ascensão - com todas as consequencias sociais e políticas daí derivadas. Não por acaso, deu-se em Chicago em 1886 o acontecimento que os trabalhadores do mundo inteiro até hoje rememoram a Primeiro de Maio: a morte, sob a fuzilaria da polícia, de manifestantes em luta pela jornada de 8 horas no dia da Greve Geral convocada pela Federação dos Trabalhadores dos EUA e Canadá.

Os agudos conflitos de classe se estenderam, como não podia deixar de ser, ao plano da habitação e dos serviços urbanos. A reconstrução subsequente ao grande incêndio de 1871 foi ela própria um ponto de inflexão no processo de segregação espacial. Boa parte dos mais de 100 mil desabrigados, um terço da população total, se viu forçada a sair de seus lugares de residência na região central para cortiços no setor pericêntrico sudoeste, onde se concentravam instalações industriais altamente poluentes, juntando-se aí às levas de migrantes de baixa qualificação que afluíam sem cessar. Reforçada e estendida na direção sul pela Migração Afro-Americana a partir de 1916, essa distribuição sócio-espacial perduraria até os dias atuais.

Foi somente a partir da década de 1890 que, tal como no restante do mundo norte-atlântico, as lutas proletárias e as ações de higienistas e moralistas burgueses, grandes e pequenos, confluíram e se amalgamaram, de maneira mais ou menos pacífica, em uma etapa de reformas sociais e urbanas conhecida nos Estados Unidos como Progressive Era - marco temporal e cultural do que um autor estadunidense chama de “nascimento do planejamento urbano organizado” em seu país.[15]

De todo modo, ainda que muito limitadas relativamente ao maquinário institucional construído ao longo do século XX, as manifestações da esfera pública na vida da cidade entre a instituição da Vila, em 1833, e a apresentação do Plano Burham, em 1909, quando já contava mais de 2 milhões de habitantes, foram significativas e produziram efeitos duradouros, quer no plano das obras, equipamentos e serviços, quer no da regulação dos usos do solo. Ela será resumidamente descrita na segunda parte desta série em quatro vertentes principais: saneamento, edificações, transportes e parques. 

A todas essas manifestações subjaz, onipresente, o Grid, vasto arruamento em tabuleiro guiado pela malha topográfica [16] que definiu, desde os primórdios da cidade, o parcelamento do solo. Ele é a origem, o objeto principal e o arremate dessa contribuição. (Continua)

2019-08-15
___
NOTAS

[1]
Refiro-me, em ordem cronológica, ao Plano Burnham-Bennet, de 1909, às realizações escola de sociologia urbana de Chicago, muito especialmente o estudo de Burgess/1924 sobre o impacto dos processos de desterritorialização resultantes do crescimento urbano, e aos estudos de geografia urbana sintetizados nos modelos de organização espacial de Hoyt/1939 e Harris-Ullman/ 1945.

[2] “À beira do Lago Michigan, no coração do Meio-Oeste, Chicago tinha um enorme potencial de localização estratégica. Era a porta de entrada da melhor rota para o Vale do Mississippi, local de escoamento de sua produção agrícola e de desembarque de pessoas e mercadorias oriundas do Leste.” [ROBERTS I] "O Canal Illinois & Michigan tornou rentável uma agricultura que, até meados do século XIX, se limitava à subsistência". [WIKIPEDIA]


[3] "Por ocasião de sua instituição, em 1833, Chicago não passava de um pobre e mal-ajambrado povoado de 350 habitantes, de futuro duvidoso - 'umas poucas cabanas e barracos perdidos num caos de lama, lixo e confusão'. O lugar, poucos metros acima do nível do Lago Michigan, era quase todo cercado de pântanos e pradarias que ficavam quase intransitáveis após o degelo da primavera e nos períodos de chuvas fortes." [ROBERTS I]

[3a] Começar pequena e se multiplicar várias vezes em poucas décadas não era raro no século XIX: Detroit se expandiu 13 vezes, de 9.000 para 116.000, entre 1840 e 1880; e St. Louis, 22 vezes, de 16.000 a 351.000. Mas Chicago, passando de 4.000 para 503.000 nos mesmos 40 anos, multiplicou-se 126 vezes. [NUGENT]

[4] A Comissão do Canal recebeu 115 mil hectares de terras, colocadas à venda por $1.25/acre para financiar sua construção. Foram necessários, não obstante, empréstimos de investidores privados da Nova Inglaterra e da Grã-Bretanha para a conclusão das obras, ocorrida em 1848. A venda de terras e o sistema de pedágio permitiram à Comissão quitar todos os débitos do Canal em 1871. Com a concorrência das ferrovias, o serviço comercial de passageiros foi extinto em 1853; o de mercadorias teve seu ápice em 1882 e foi encerrado em 1933. [LAMB]

[5] O canal foi construído por imigrantes irlandeses que viviam e trabalhavam em acampamentos provisórios ao longo do percurso. [LAMB]

[6] Em 1850, dos 850 mil habitantes de Illinois, 60% eram norte-americanos oriundos de outros estados, principalmente Nova York, e 19% estrangeiros, principalmente alemães e irlandeses. Em 1860, da população total de 1,7 milhões, 60% eram migrantes nacionais e 32% alemães e irlandeses; em Chicago, mais da metade da população era nascida no estrangeiro. Em 1910, cerca de 40% dos 5,6 milhões de habitantes eram migrantes, sendo mais de 20% estrangeiros, com grande incidência de suecos. [GREGORY / FRAZER / MEYER] 


[7] Não confundir com a “Grande Migração”, ou “Migração Afro-Americana”, de quase 7 milhões de afro-americanos do sul e sudeste rurais para os centros urbanos do nordeste, centro-oeste e oeste, entre 1916 e 1970, dos quais cerca de 500 mil para a a cidade de Chicago. Até então, somente 2% da população de Chicago era negra. [GROSSMAN]

[8]  Na década de 1830, a especulação imobiliária eclipsou o comércio de peles como a principal atividade econômica na região de Chicago. (..) Especuladores da Europa e do nordeste dos Estados Unidos enviaram seus representantes, que se uniram a residentes antigos e migrantes recentes na busca dos imóveis comercialmente mais promissores [KEATING/MARCUS].
A milha quadrada limitada pelas ruas Madison, State, 12a (hoje Roosevelt Road) e Halsted, adquirida em 1830 por $1.25/acre, foi vendida em outubro de 1833 por $60/acre - uma valorização de 4.700% em 3 anos! [MARTIN] Segundo o historiador Donald Miller, em 1832 uma pequena parcela em Clark Street custava 100 dólares. Dois anos depois, a mesma propriedade valia 3 mil. No ano seguinte, era vendida por 15 mil. Um jornalista escreveu: “Quem tinha um pedaço de terra ficava de cabeça virada, se achando um milionário” [BAER]

[9] O estado de Illinois aplicou milhões oriundos da venda de solo para abrir o Canal I&M nas décadas de 1830 e 1840 e outros 3 milhões no fim da década de 1860 para aprofundá-lo. Chicago já havia gasto cerca de 11 milhões de dólares em saneamento até 1890, quando Illinois iniciou o Chicago Sanitary and Ship Canal, obra de 60 milhões de dólares que chegou a empregar 8.500 homens ao mesmo tempo. “As encomendas do governo foram, desde muito cedo, a principal área de negócios das empreiteiras de Chicago”. [WILSON]

[10] A guerra civil (1861-65) afastou dos mais importantes rivais urbanos de Chicago o fluxo de produtos alimentares vitais. Demasiado próximas das linhas de frente, St. Louis perdeu o status de centro nacional de distribuição de grãos e Cincinnati o de capital do processamento de carne. Chicago emergiu como novo centro logístico, comercial e industrial, fornecendo à União o material ferroviário indispensável ao transporte de tropas e suprimentos e à expansão para o Oeste. Em 1870, o número de fábricas em Chicago era o triplo do início da guerra. E como era de esperar, vieram também os bancos: em 1863 foi fundado o First National Bank of Chicago; no fim da guerra, a cidade sediava 13 bancos nacionais, mais do que qualquer outra no país. [KARAMANSKI]

[11] 
A construção do canal começou em 1836. O “Pânico de 1837”, uma “devastadora recessão econômica nacional que durou sete anos e levou o estado de Illinois à beira da insolvência, acarretou a suspensão das obras em 1841. Com a reestruturação administrativa e financeira de 1845, as obras foram concluídas em 1848. O “Pânico de 1873” foi a crise financeira que desatou a depressão econômica de 1873-1877 no mundo norte-atlântico. Na Grã-Bretanha, em especial, foram duas décadas de estagnação que enfraqueceram a liderança econômica do país. Nos Estados Unidos, o episódio foi chamado de "Grande Depressão" até a crise dos anos 1930. [WIKIPEDIA]

[12] O incêndio matou cerca de 300 pessoas e destruiu cerca de 17.450 edificações numa área de quase 9 km2, com danos materiais estimados em 200 milhões de dólares. Cerca de um terço da cidade foi destruída, deixando desabrigada igual proporção da população urbana - quase 100.000 pessoas. A devastação atingiu as áreas centro e norte da cidade, deixando intactos os currais e depósitos de madeira ao sul e oeste. A reconstrução foi rápida. Em 1880, a população atingiu meio milhão de habitantes. [BRITANNICA I]

[13] “Na Chicago do fim do século (..) afirma-se outro exemplo de tipo edilício (..). O arranha-céu fornece uma função espetacular ao edifício para escritórios, novo protagonista do cenário urbano, tornando-se sede de bancos, seguros, sociedades comerciais e financeiras. O processo é alimentado por um incremento decisivo das atividades terciárias, muitas vezes unidas ao propósito de associar o nome da companhia a sedes e localizações de prestígio.” [ZUCCONI, p. 151]

[14] A Exposição Internacional de 1893 foi organizada pela cidade de Chicago, superando a concorrência de Nova York, Washington D.C. e St. Louis, por ocasião do 400º aniversário da chegada de Colombo ao Novo Mundo. Foi um evento social e cultural de grande impacto, autêntica celebração do otimismo industrial americano, com enorme repercussão nas áreas da arquitetura, engenharia e artes em geral. Com representação de 46 países, ocupou uma área de 2,8 km2, com cerca de 200 edifícios novos, temporários, de arquitetura predominantemente neoclássica. O projeto, que incluía canais e espelhos d’água, seguiu os princípios da arquitetura neoclássica francesa: simetria, equilíbrio e esplendor. A cor do material usado nas fachadas dos edifícios rendeu ao conjunto o epíteto que o imortalizou: Cidade Branca. [WIKIPEDIA]

[15] PETERSON J A. “The Birth of Organized City Planning in the United States, 1909–1910” (2009), Journal of the American Planning Association, 75:2, 123-133,
http://fliphtml5.com/wgak/uihy

[16] A Land Ordinance (Lei do Solo) de 1785 estabeleceu um sistema [de divisão padronizada do solo] por meio do qual colonos podiam comprar, à distância, títulos de terras agrícolas no oeste subdesenvolvido. Como o Congresso, na época, não tinha poder de tributação direta, a venda de terras proporcionou um importante fluxo de receita. O sistema veio a abranger mais de 3/4 da área continental dos Estados Unidos. [WIKI LO1875]

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REFERÊNCIAS


BAER G. “The History of the Chicago River”, WTTW / The Chicago River Tour

BRITANNICA. “Chicago Fire of 1871”. Encyclopedia Britannica
https://www.britannica.com/event/Chicago-fire-of-1871

GREGORY, James. “Illinois Migration History 1850-2010”, America’s Great Migrations Project

GROSSMAN James. “Great Migration”. Encyclopedia of Chicago.

ILLINOIS DEPARTMENT OF NATURAL RESOURCES [IDNR]. “Exploring the History of the Illinois and Michigan Canal”. Acquatic Illinois 2016

KARAMANSKI T. “Civil War”. Encyclopedia of Chicago

KEATING A D e MARCUS S S. “Global Capitalism and Chicago Real Estate”, Encyclopedia of Chicago

LAMB John. “Illinois and Michigan Canal”. ENCYCLOPEDIA OF CHICAGO 2004

MARTIN L. “The Grid”. Encyclopedia of Chicago

MEYER D K. “Foreign Immigrants Illinois 1850”. Immigrants

MILLS E S e SIMMONS C S. “Evolution of the Chicago Landscape: Population Dynamics, Economic Development, and Land Use Change”, em Growing Popuations, Changing Landscapes: Studies from India, China and the United States (2001), The National Academies Press
https://www.nap.edu/read/10144/chapter/20

NUGENT Walter. “Chicago as a Modern City”. Encyclopedia of Chicago 2004

ROBERTS, M. “Early Cook County Roads -- Part One”. Nature Bulletin No. 738 January 11, 1964, Forest Preserve District of Cook County

ROBERTS, M. “Early Cook County Roads -- Part Two: The Plank Road Era”. Nature Bulletin No. 739 January 18, 1964, Forest Preserve District of Cook County

WIKIPEDIA, “Illinois and Michigan Canal”. Wikipedia

WIKIPEDIA, “Public Land Survey System”. Wikipedia.

WIKIPEDIA, “World’s Columbian Exposition”. Wikipedia.

WILSON M R. “Construction”. Encyclopedia of Chicago.

ZUCCONI, Guido. A Cidade do Século XIX [2001]. São Paulo: Perspectiva 2009.

sábado, 3 de agosto de 2019

Cem anos de segregação

Deu no New York Times
03-08-2019, por Adam Green (prof de História da Universidade de Chicago)
https://www.nytimes.com/2019/08/03/opinion/how-a-brutal-race-riot-shaped-modern-chicago.html 
How a Brutal Race Riot Shaped Modern Chicago
Chicago Tribune historical photo
http://galleries.apps.chicagotribune.com/chi-vintage-1919-race-riot-photos-20140819/
(..) If the 1920s saw an upsurge in black culture and awareness, it also saw a sustained, violent backlash by whites, from the rebirth of the Klan to an epidemic of lynching to housing segregation.
That backlash was on stark display in Chicago. The city’s white real estate agents helped pioneer new tactics in segregation. By 1927 the Chicago Real Estate Board had drafted its own version of a restrictive covenant, a binding contract enjoining white homeowners from selling property to nonwhites. Within a decade, such contracts governed three-fourths of Chicago’s residential property. Upheld routinely by municipal judges, restrictive covenants carried the force of law until overturned by the Supreme Court in 1948.
Other measures, including redlining, contract selling, mortgage discrimination and steering, maintained racial exclusion across much of Chicago long after the passage of national civil rights laws in the 1960s.
Together with continued discrimination against black renters, and an expansive public housing system dedicated to shifting poorer African-Americans out of the general housing market, these policies deepened racial separation in the city with each passing decade. By 1970, census data certified Chicago as a hyper-segregated municipality, a designation it would retain until the start of the new millennium. The collateral effects of this separation consigned blacks to grossly unequal resources and outcomes related to employment, education, housing, health and safety that inform the stark social problems of the city today. (Continua)

Ver também
BYRNES, Mark. “40 Years of Chicago's Rising Inequality, in One GIF”, CityLAb 02-04-2014

Chicago 1970-2012 - Renda familiar média como % da média metropolitana 
Por Daniel Hertz, masters student at the 
Harris School of Public Policy at the University of Chicago

2019-08-03