quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Desapropriações por utilidade pública podem e devem financiar-se com a valorização do solo lindeiro

Agradeço ao Prof. Eduardo Reese a gentileza de ter-me enviado extenso material sobre a história e o conteúdo urbanístico da Avenida de Mayo, Buenos Aires.
A arquiteta Elizabeth Castanheira postou, em 16-10, o seguinte comentário ao texto “Transmilênios e recuperação...”
"Na prática urbanística todos os caminhos deveriam levar à gestão pública da valorização da terra, mas geralmente, e infelizmente, não levam. Como exemplos de desperdício do não uso desses instrumentos podemos citar a Linha Amarela e o Metrô. A questão do entorno na implantação desses equipamentos de transporte nunca é tratada da forma que deveria. Para reduzir o custo da desapropriação, reduz-se a área de atuação do projeto, resultando em pequenas parcelas de solo de utilização restrita. Se fosse desenvolvido um projeto urbano utilizando a TPC, as questões do custo da desapropriação e da qualidade urbanística no entorno poderiam ser resolvidas."
Do alto de sua experiência com os problemas de regularização urbanística da Linha Amarela, via expressa pedagiada que corta o Rio de Janeiro em sentido nordeste-sudoeste (certas obras públicas também demandam regularização urbanística), bem como de sua vivência profissional e cidadã com os remanescentes do Metrô, Elizabeth toca num ponto nevrálgico da prática de grandes projetos de infraestrutura de transporte urbano no Brasil, que poderíamos chamar de “plano de desapropriação e gestão do solo lindeiro”.

Como, em geral, projetos de infraestrutura de transporte urbano não são considerados projetos urbanísticos e, além disso, são executados “a toque de caixa” para atender à agenda política, as desapropriações são entregues aos setores especializados das municipalidades, para que satisfaçam os requerimentos mínimos do projeto de engenharia.

Este procedimento nasce da falta de percepção dos governantes e gestores para o potencial do desenvolvimento do solo direta e indiretamente afetado para o financiamento do projeto a curto, médio e longo prazos e resulta invariavelmente em desastres urbanísticos de difícil solução.

Podemos nos perguntar, por exemplo, quanto já teria custado ao Metrô do Rio de Janeiro, só em perda de receita direta (venda de bilhetes), o relativo vazio urbano que há 30 anos cerca as estações de Estácio e Praça Onze – por gestão ineficiente do solo lindeiro, boa parte dele lotes estatais e remanescentes de desapropriações. Ou quanto já teria custado à cidade o fato de a Linha Amarela estar no melhor do casos “embarreirando” o tecido urbano pré-existente e, no pior, espremida entre áreas de ocupação irregular. Isto para não falar do potencial de receitas indiretas que poderiam ter esses projetos com uma gestão urbanística eficaz do solo adjacente valorizado pela própria obra – projetos habitacionais sociais e de mercado, centros comerciais, postos de abastecimento etc.



A busca de precedentes latino-americanos para esse debate nos faz retroceder impressionantes 125 anos. Na Buenos Aires da década de 1880, o então intendente Torcuato de Alvear, homem “insuspeito” no que toca a suas orientações político-ideológicas, travou um intenso duelo jurídico-político com famílias da alta sociedade e representantes locais em defesa de seu projeto de financiar a abertura da Avenida de Mayo – componente vital do eixo cívico que hoje liga a Casa Rosada ao Congresso Nacional – com a venda dos lotes adjacentes, resultantes de um generoso plano original de desapropriações [1].

No Rio de Janeiro, a Avenida Presidente Vargas, eixo monumental de acesso ao centro financeiro inspirado no modelo de edificações sobre a calçada (galerias) trazido ao Brasil por Alfred Agache na segunda década do século XX, foi aberta na década de 1940 pelo então prefeito Henrique Dodsworth como projeto urbanístico sustentado por um Projeto de Lei que previa seu integral financiamento com a venda dos novos lotes comerciais formados de frente para a Avenida.

É verdade que ambos os projetos podem ser até duramente questionados quanto ao seu impacto social e aos resultados alcançados pelo pretendido auto-financiamento. 


No caso da Avenida de Mayo, a Corte Suprema acabou decidindo a favor dos proprietários, resultando
“um sistema perverso pelo qual os proprietários 'afetados' eram indenizados pelo Estado pela faixa de terreno que cediam para uma via pública que valorizava enormemente as suas propriedades (...) e muitas vezes o Estado devia pagar essa faixa de terreno ao preço que esta adquiriria depois que ele realizasse a abertura da rua. (...) o que haveria de repetir-se no futuro em cada tentativa de avenida diagonal ou alargamento, em um verdadeiro 'negócio da desapropriação' de que costumavam beneficiar-se proprietários, advogados e funcionários diligentes que propunham a medida conscientes do curso posterior das ações” [2]
Já a Avenida Presidente Vargas ficaria durante muitos anos privada dos grandes edifícios previstos no projeto, que só surgiram na altura do cruzamento com a Avenida Rio Branco, segundo Abreu [3] por três motivos principais: a coincidência de sua conclusão com o início do boom imobiliário que atraiu a maioria dos capitais imobiliários para a Zona Sul, a conseqüente transferência de boa parte dos serviços, comércio de luxo e lazer para Copacabana e, finalmente, o reforço da centralidade da própria Avenida Rio Branco, que concentrou o processo de renovação edilícia no centro financeiro da cidade.

Não se conhecem registros do resultado financeiro da utilização, no projeto, das Obrigações Urbanísticas da Cidade do Rio de Janeiro,

“cujo valor nominal era igual ao valor venal pré-fixado para o lote urbanizado ao qual estavam vinculadas. Foi pela primeira vez empregado esse tipo de letra hipotecária, que, uma vez emitida pela prefeitura, pode esta caucionar no Banco do Brasil e levantar o empréstimo na totalidade do empreendimento (evitando), desse modo, a majoração dos impostos ou recorrência à taxa de melhoria... Os lotes seriam (posteriormente) vendidos em hasta pública pelo Banco do Brasil que, assim, se pagaria do valor nominal, creditando-se à prefeitura o saldo porventura alcançado no leilão”. [4](Itálicos do blogueiro).
Naquela época, como ainda hoje, os grandes projetos urbanos não eram comandados por organizações integralmente responsáveis por sua gestão e balanço final, inclusive sob o ponto de vista contábil, restando, para quem pretenda avaliá-los, a penosa alternativa de vasculhar pacientemente os meandros da contabilidade pública geral.

Mas por que não considerar, por outro lado, que os recursos hoje disponíveis – mais que todos um imenso potencial de controle social, como demonstrado nos casos do Museu Guggenheim e da Marina “Panamericana” da Glória, no Rio de Janeiro, auxiliado por algum sistema eficaz de controle técnico e contábil de projetos públicos – nos permitiriam aplicar a mesma metodologia visando reduzir o gasto público e aumentar a eficiência social dos projetos de vias públicas e sistemas de transporte?

Muito já se disse que o procedimento de desapropriar terra urbana para revendê-la depois de valorizada pelo projeto é vedado pela lei por caracterizar “especulação pública”. Essa opinião, no entanto, está longe de ser unânime entre os juristas. Vejamos o que diz, por exemplo, Maria Sylvia Di Pietro:

“Desapropriação por zona (...) O ato expropriatório deve especificar qual área se destina à continuidade da obra e qual se destina à revenda em decorrência de sua valorização. Nesta última hipótese, o bem não é expropriado para integrar o patrimônio público, mas para ser revendido, com lucro depois de concluída a obra que valorizou o imóvel” (...) O efeito, para o poder público, é o mesmo da Contribuição de Melhoria; (....) Como observa Antônio de Pádua Ferraz Nogueira (1981:39), depois de apontar as divergências, o fato é que essa modalidade tem sido admitida na totalidade dos tribunais brasileiros, inclusive no STF que, em acórdão relatado pelo ministro Eliomar Baleeiro (RJT 46/550), concluiu que “é lícito ao poder expropriante – não expropriar para satisfazer os interesses de particulares – mas ao interesse público, sem limitações, inclusive para auferir, da revenda de terrenos, um proveito que comporte e financie a execução da obra pretendida”.[5]
Em suma, “planos de desapropriação e gestão do solo adjacente” a projetos viários e de infraestrutura de transporte público urbano são possíveis e necessários, pois visam dois objetivos públicos inseparáveis: a adequada estruturação urbanística da área de influência imediata do projeto e a “internalização” da valorização fundiária resultante no esquema de financiamento da obra.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Gorelik, Adrián, La Grilla y el Parque – Espacio público y cultura urbana en buenos Aires, 1887-1936, Buenos Aires, Universidad Nacional de Quilmas Editorial, 2004, p. 118; Slang, Ricardo M., La Avenida de Mayo, (Colección Cúpula) Buenos Aires, 1955, pp. 26-28.


[2] Gorelik, Adrián, La Grilla y el Parque – Espacio público y cultura urbana en buenos Aires, 1887-1936, Buenos Aires, Universidad Nacional de Quilmas Editorial, 2004, p. 119.

 
[3] Abreu, Maurício, Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, IplanRio 1997, p. 114.


[4] Reis, José de Oliveira, O Rio de Janeiro e Seus Prefeitos: Evolução Urbanística da Cidade, pp.111-112, citado em Abreu, Maurício, Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, IplanRio 1997, p. 114.[5] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo. São Paulo, Atlas, 2001, p. 169




2007-11-22 


quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Raeder, Sávio: "Grandes eventos esportivos no contexto brasileiro: elementos iniciais para o debate sobre impactos e legados urbanos decorrentes de Jogos"

Atendendo generosamente a um pedido meu, o geógrafo Sávio Raeder, estudioso dos impactos dos grandes eventos urbanos da indústria do entretenimento sobre as cidades, envia ao blog um breve texto sobre o tema, cuja leitura recomendo.

O ANO DE 2007 é marcante na história brasileira com 3 acontecimentos significativos no campo dos esportes: (1) a realização do Jogos Pan-americanos na Cidade do Rio de Janeiro, (2) a vitória da candidatura brasileira como sede da Copa Mundial de Futebol Masculino em 2014 e (3) a candidatura carioca aos Jogos Olímpicos de 2016. Cabe uma análise cuidadosa sobre cada um destes ocorridos que observados em conjunto denotam o grande esforço nacional em promover os maiores espetáculos esportivos do planeta. São 3 espetáculos que se encontram em 3 fases distintas de sua organização e que por isso podem ilustrar as sucessivas etapas de conformação dos grandes eventos esportivos (GEEs).
Neste breve apontamento que tem por fito introduzir alguns elementos sobre o processo de conformação dos GEEs, se abordará as sucessivas fases que compõem estes eventos. Trata-se de um escrito introdutório que pretende servir de base para um debate mais longo que se pretende desenvolver a partir de outros textos de discussão em torno do urbanismo promovido em função dos eventos esportivos, fenômeno que na Cidade do Rio de Janeiro encontra sua maior expressão. Sobretudo importa na proposta deste debate, reconhecer a materialidade da dimensão urbana dos impactos e dos legados destes GEEs que se conformam em grandes projetos urbanos dada a sua complexidade espaço-temporal. O presente texto abre a discussão a partir de um recurso analítico formulado por Brunet (1997 e 2003) que será articulado com o calendário de GEEs brasileiro, que foi pontuado acima. 
A figura abaixo elaborada por Brunet, esboça a conformação do evento olímpico a partir de sucessivas etapas que remetem a uma dimensão temporal que se inicia com a organização dos Jogos. (O autor limita seu recurso analítico aos Jogos Olímpicos, contudo ele é perfeitamente aplicável às versões regionais destes, como é o caso dos Jogos Pan-americanos, como também à Copa do Mundo.) Seu esquema ilustrado é bastante didático no sentido de representar, por meio dos volumes dos círculos, o aumento de recursos materiais e imateriais que irão compor o evento esportivo. Tudo começa com algumas pessoas, e instituições que elas representam, se mobilizando para sediar os Jogos. Esta etapa pode ser dividida em duas considerando que há um período de preparação para a candidatura do GEE e outro que se inicia com o anúncio da vitória da cidade candidata a sediar os Jogos. Já naquele primeiro período os atores envolvidos na organização podem se movimentar com tal intensidade que operações urbanas podem ser realizadas, como a desapropriação de terras para a construção de equipamentos que poderiam vir a ser utilizados em caso de vitória.



Nesta fase preliminar de organização dos Jogos, já se pode reconhecer grande parte das intencionalidades de transformação do espaço urbano pelos agentes envolvidos. Trata-se de uma etapa significativa pois nela são formulados os planos de intervenção urbana que se pretende concretizar para viabilizar a realização dos Jogos. Ainda que haja certa publicidade nesta etapa, demonstrando as intenções dos atores públicos em sediar o megaevento, a discussão sobre a alocação dos recursos públicos na Cidade é limitada.
No esquema ilustrado acima, esta fase aparece pequena mas ela é o próprio coração do que será o legado urbano já que muitas das decisões locacionais serão mantidas ainda que nem todas possam ser de fato executadas. Entre estas decisões com riscos de execução encontram-se aquelas relacionadas com as infra-estruturas de transporte, algumas destas estruturas podem ter sido delineadas de maneira ambiciosa demais para os recursos que os atores virão a dispor na fase seguinte, a de investimentos. As intencionalidades dos atores que protagonizam a luta por sediar um grande evento esportivo, são documentadas no caderno de encargos (candidate city bid dossier) apresentado ao comitê esportivo responsável pela organização do evento.
Pode-se situar a candidatura carioca aos Jogos Olímpicos de 2016 justamente nesta fase embrionária que findará em 2009 quando será anunciada a cidade vitoriosa para sediar o megaevento. Desta forma, está em gestação o caderno de encargos que definirá quais os locais da Cidade que deverão ser contemplados com os vultosos investimentos que viabilizarão o evento. Apesar da pouca atenção dada a esta etapa, ela deve ser vista como a mais importante de todas já que ela pode definir toda uma agenda urbana por um período de quase uma década, definindo quais as áreas prioritárias de desenvolvimento da Cidade. O caderno de encargos é um documento basilar na organização dos Jogos que revela tanto os processos decisórios envolvidos nas pretensas alocações de investimentos, como as intenções de transformação territorial a partir da escolha da cidade como sede dos jogos.
Percebe-se que cada círculo é desdobramento de um outro que apresenta uma dimensão delimitada pela sua fronteira, mas ressalta-se que o círculo menor não se esgota até que o evento seja totalmente realizado, e deixe como permanência o legado. Neste sentido, a organização perdura até o final dos Jogos orientando os investimentos, a captação dos recursos para proporcioná-los e ordenando os impactos produzidos antes e durante os Jogos. É a alocação dos investimentos em bens materiais e imateriais que irá definir os impactos dos Jogos, a sua extensão em tempo e espaço. Tais impactos têm um prazo determinado que é o da realização dos Jogos em si, podendo produzir efeitos em diversas dimensões da vida social com a geração de mais empregos, de maior renda, de maior visibilidade para a cidade sede, de retirada de famílias de suas moradias, de valorização de áreas etc. A produção destes impactos terá uma relação direta com a própria conformação do legado, sendo esta sim a única fase que extrapola a temporalidade dos Jogos, e se consolida como permanência tangível ou mesmo intangível no território. 
Observa-se que o anúncio da Copa de 2014 promoveu justamente uma transição do círculo de organização para o círculo de investimentos, fenômeno que se torna mais evidente com as disputas estaduais em sediar partidas desde evento. Há uma distinção muito clara entre a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, que é a de que nestes últimos há uma concentração espacial, e também uma diversidade maior, dos equipamentos esportivos. Enquanto que nas Olimpíadas o evento se concentra em uma única cidade, na Copa os Jogos ocorrem em diversas cidades de, geralmente, um mesmo país. Trata-se de um fato que não deve ser desprezado nas análises dos GEEs, uma vez que os Jogos Olímpicos e suas versões regionais terão impactos e legados urbanos muito mais significativos do que o referido evento futebolístico. De qualquer forma, são também volumosos tanto os investimentos como a visibilidade que a Copa proporciona para as cidades, sendo a acirrada competição por sediar partidas um claro sinal da importância que o evento assume. 
Já os recém concluídos Jogos Pan-americanos do Rio de Janeiro, estes se encontram já na fase do legado uma vez que todas as fases anteriores já foram finalizadas sendo a última a dos impactos que corresponde ao período de realização do evento propriamente dito. Este legado está diretamente relacionado com as etapas anteriores, não se restringindo a elas e podendo ainda ocorrer a geração de ações que não haviam sido previstas mas que se considerou adequada ao desenvolvimento urbano pelos atores hegemônicos. Considerando a necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre este tema específico, ele será abordado em sua dimensão urbanística no próximo texto de discussão. Buscou-se nestes breves apontamentos situar o leitor no contexto brasileiro de valorização da agenda de GEEs, como também oferecer uma caracterização das sucessivas etapas que compõem tais eventos.

Bibliografia

BRUNET, Ferran. The economic impacts of the Olympic Games. In: BRUNET, Ferran; CARRARD, François; CORRAND, Jean-Albert (orgs.). The Centennial President. Lausanne: International Olympic Committee, 1997. p. 1-10.______. Anàlisi de l’impacte econòmic dels Jocs Olímpics de Barcelona, 1986-2004. In: MORAGAS, Miquel; BOTELLA, Miquel (orgs.) Barcelona: l’herència dels Jocs (1992-2002), Barcelona: Centre d'Estudis Olímpics i de l'Esport - Editorial Planeta, 2003. p. 245-274.