domingo, 3 de maio de 2015

Operações urbanas: uma ponte necessária entre a regulação urbanística e o investimento direto

Publicado em Cadernos de Urbanismo No. 3, Secretaria Municipal de Urbanismo do Rio de Janeiro, novembro de 2000

Operação urbana é uma expressão que, no urbanismo atual, se refere a gêneros de ação urbanística que, embora conexos, podem diferir consideravelmente dependendo do lugar e da circunstância. Irei enunciar, primeiramente, um quadro de acepções deste termo, que deve ser precisado à medida que a discussão e a prática profissional apresentem novos dados. Em seguida, farei breves comentários sobre o seu campo de aplicação.

Um esforço de conceituação: operações urbanas e urbanismo operativo


Para alguns profissionais, em geral céticos quanto à real especificidade de certas intervenções urbanísticas contemporâneas, o termo operação urbana tem uma conotação meramente genérica, designando qualquer intervenção pública urbanizadora. Nesse caso, operação urbana tanto pode designar a implantação de um novo conjunto residencial quanto a construção de uma nova via expressa ou a urbanização de uma favela; a transformação funcional de um centro histórico ou uma obra de requalificação arquitetônica numa avenida comercial. Nesse sentido, operação urbana aparece como sinônimo genérico de projeto/intervenção urbana. 

De minha parte, creio ser necessário considerar a operação urbana, em primeiro lugar, como um tipo especial de intervenção urbanística, de iniciativa pública ou privada mas preferencialmente regida por critérios de interesse público, voltada para a transformação estrutural do ambiente urbano existente e que envolve, simultânea ou alternativamente (1) a combinação de capital de investimento público e privado, (2) o redesenho da estrutura fundiária, (3) a apropriação e manejo (transação) dos direitos de uso e edificabilidade do solo e das obrigações privadas de urbanização e (4) a apropriação e manejo das externalidades positivas e negativas da intervenção. Essas operações têm o caráter de projeto urbano (por oposição a atividade de controle urbano), para o que, além de institutos normativos especiais, o setor público necessita lançar mão de dispositivos gerenciais adequados (empresa pública, empresa de economia mista, escritório técnico, agência ou comitê executivo etc), diferenciados da administração urbanística corrente. Essas operações-projeto diferem radicalmente da obra pública tradicional em termos da complexidade social da intervenção, do tempo de maturação do plano/projeto, do grau de incerteza quanto aos resultados, das fontes de recursos, dos prazos e métodos de execução, da organização gerencial, da metodologia de avaliação de resultados etc. 

Mas o termo operação urbana também se refere, por outro lado, à aplicação de uma classe específica de instrumentos normativos correntes que propiciam o manejo, controlado e limitado a uma região urbana ou a circunstâncias determinadas, dos índices e parâmetros urbanísticos vigentes, com vistas à consecução de certos objetivos pretendidos pela municipalidade. Este tipo de operação está mais afeto à administração corrente, embora necessite de um certo grau de coordenação gerencial e monitoramento. Por isto, parece-me adequado aplicar a este campo, às vezes dito dos instrumentos urbanísticos onerosos, o termo urbanismo operativo. Trata-se das Transferências de Potencial Construtivo, dos Leilões de Indices, do Solo Criado etc. A lei de Operações Interligadas vigente no Rio de Janeiro faz parte deste grupo, embora constitua, a meu juízo, uma venda de direitos urbanísticos de caráter excessivamente aberto, que não visa a consecução de objetivos urbanísticos outros que a arrecadação de recursos para a urbanização em áreas de baixa renda: uma modalidade de “redistribuição de renda” aleatória, subjetiva e dotada de um precário nível de controle social. 

Vale a pena registrar também a existência de uma categoria de urbanismo operativo que não decorre da vigência de nenhum dos modernos instrumentos urbanísticos onerosos, mas de “fragmentos onerosos” existentes (explícitos ou implícitos) na legislação comum. Vicejando à sombra do aparente automatismo da aplicação do zoneamento clássico, a ponto de ser virtualmente desconhecida ou ignorada até bem pouco pelas organizações de planejamento, essa “carteira” de contrapartidas urbanísticas exigidas nas licenças de construção constitui no Rio de Janeiro uma razoável massa de recursos que tem sido, nas últimas décadas, gerada como “exigências” nos processos de licenciamento e gerida por meio de uma arcaica estrutura cartorial de “termos de obrigação” e “certidões”. 

Eu poderia então sugerir uma forma generalizada de definir a operação urbana: trata-se do vasto e crescente campo das ações urbanísticas complexas que transitam entre os tradicionais mecanismos legislação-licenciamento e desapropriação-obra pública. O espaço de aplicação da operação urbana não é o espaço privado nem o espaço público, mas o continuum público-privado, a indissolúvel unidade ambiental dos bens públicos e privados, tangíveis e intangíveis, que conformam a cidade.

Operação urbana, iniciativa pública e planejamento

A atuação do poder público no processo de construção da metrópole contemporânea não pode prescindir da aplicação de normas, métodos e técnicas de operação urbana, e isto por duas razões. 

A primeira está ligada à necessidade que tem, muitas vezes, o setor público de otimizar e orientar as externalidades positivas —bem como extrair compensações por externalidades negativas— do investimento privado, para fins de melhoria do parque instalado de bens e serviços públicos. Vale lembrar que o sistema de planejamento normativo, que exerceu a primazia absoluta entre os instrumentos de planejamento urbano no terceiro quarto do século XX, dada a sua própria natureza exerce apenas efeitos de longo prazo sobre a cidade, mais ou menos probabilísticos segundo o modelo de legislação. Ele propicia a abertura de novas fronteiras ou a densificação da urbanização, estabelece um modelo geral de ocupação e uso presumivelmente condizente com as infraestruturas de serviços e o ambiente natural, mas em geral não é capaz de intervir na organização estrutural de um ambiente urbano já existente. 

Esta tradicional relação entre regulação e ambiente urbano vem sendo rompida sistematicamente pela escala do empreendimento urbano do ano 2000. A lei regula o empreendimento, mas o empreendimento “regula” a cidade pela força de sua onda de impacto. O impacto estrutural e as consequentes “obrigações de urbanização” que, no Rio de Janeiro, implicou a construção recente de empreendimentos como o centro de comércio e serviços Down Town, na Barra da Tijuca, o Shopping Tijuca, na Av. Maracanã, e a Wal-Mart, em Del Castilho, são exemplos claros de quão importante pode ser o efeito da gestão pública das externalidades positivas e negativas dos grandes complexos privados. 

A segunda razão, talvez mais importante, está ligada à necessidade que tem o setor público de poupar recursos do tesouro e do endividamento na realização de ações públicas que possam ser cobertas, no todo ou em parte, pelo manejo espaço-temporal do investimento privado. Por exemplo, a aquisição das terras necessárias à implantação do Anel Viário do Rio de Janeiro, bem como à implantação de um grande parque público em Madureira, poderia ser realizada por meio da transferência do potencial construtivo das terras afetadas. Da mesma forma, a urbanização consorciada vem sendo advogada como instrumento útil à oferta de lotes populares urbanizados nas regiões suburbanas. Um terceiro exemplo, os leilões ou bolsas de índices talvez sejam o único recurso capaz de concluir a obra inacabada dos Projetos de Alinhamento nas principais artérias comerciais da cidade. 

As operações urbanas, sejam especiais ou correntes, destinam-se à transformação dirigida da estrutura sócio-ambiental de um lugar urbano. Por envolverem a apropriação e negociação de insumos, produtos e externalidades públicos e privados de todo tipo, elas constituem modalidades de intervenção urbana potencialmente capazes de romper os limites da mera justaposição de espaços privados regulados e espaços públicos requalificados. Esta combinação tradicional nem sempre satisfaz as demandas de estruturação do ambiente urbano, como é o caso, por exemplo, de centralidades afetadas pela obsolescência de grandes equipamentos de serviços públicos ou de regiões desurbanizadas impactadas pela contiguidade de novos complexos de comércio e serviços de grande porte. 

Os mecanismos operativos do urbanismo são instrumentos úteis ao planejamento das cidades, tanto numa perspectiva estratégica quanto situacional, em caráter complementar aos tradicionais mecanismos do planejamento normativo e da obra pública. Na medida em que se propõem a realizar a captação de mais-valias, a otimização de externalidades e a transferência territorial de valores, o seu melhor campo de aplicação parecem ser as áreas urbanas mais marcadas pelo caráter desigual do desenvolvimento, isto é aquelas que abrigam combinações singulares de dinamismo e estagnação, investimento e desinvestimento, tecnologia de ponta e modos de vida tradicionais. 

Finalmente, o potencial transformador a curto prazo das operações urbanas, a margem de risco dos impactos que ela pode provocar sobre o ambiente social e o seu caráter de transação de interesse público envolvendo bens públicos e privados tornam imprescindível que suas normas, métodos e técnicas sejam democraticamente aprovados e rigorosamente controlados pela sociedade através de mecanismos eficazes de democracia participativa.