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terça-feira, 28 de janeiro de 2025

A renda da terra é a alma do negócio (rewind)

MARX K, “Renda dos Terrenos Destinados à Construção. Renda de Mineração. Preço da Terra” (Excerto). Em O Capital, Vol III Livro Terceiro, p. 238). São Paulo: Abril Cultural 1983 

The Final Plan for Tyburnia: What is Now the Hyde Park Estate
Paddington Map, k1266639 (Collage 30361), The London Archives: Main Print Collection
The London Metropolitan Archives
Montagem: Àbeiradourbanismo

(..) Que nas cidades em crescimento rápido, especialmente onde a construção é feita, como em Londres, em escala industrial, o objeto principal da especulação não é o imóvel, mas a renda fundiária, demos um exemplo no Livro Segundo, cap. XII, p. 215 e 216,* com as declarações de um grande especulador imobiliário londrino, Edward Capps, perante a Comissão Bancária de 1857. Ele afirma aí, nº 5435:

“Creio que um homem que queira progredir neste mundo dificilmente pode esperar progredir atendo-se a negócios sólidos (fair trade) (...) necessariamente ele precisa, além disso, construir com base na especulação, e isso em larga escala, pois o empresário só consegue muito pouco lucro dos próprios prédios; obtém seu lucro principal das rendas fundiárias acrescidas. Ele assume, digamos, um terreno pagando por ano 300 libras esterlinas; se, depois de um cuidadoso plano de construção, erige aí a classe certa de casas, é possível que obtenha delas 400 ou 450 libras esterlinas por ano, e seu lucro consistiria muito mais na renda fundiária acrescida de 100 ou 150 libras esterlinas por ano do que no lucro obtido com os prédios, o qual, em muitos casos, ele quase não leva em consideração”.

Não se deve esquecer que depois de expirar o contrato de arrendamento, em geral de 99 anos, a terra, com todas as construções que nela se encontram e com a renda fundiária, que nesse ínterim geralmente dobrou ou triplicou, retorna do especulador imobiliário ou de seus sucessores legais para o último proprietário da terra original. (..)
___

* (..) Nos estágios menos desenvolvidos da produção capitalista, empreendimentos que requerem longo período de trabalho, portanto grande gasto de capital por tempo mais longo, particularmente só podem ser executados em larga escala, ou não são realizados ao todo em base capitalista, como por exemplo estradas, canais etc., construídos à custa da comunidade ou do Estado (em tempos antigos feitos mormente por meio de trabalhos forçados no que tange à força de trabalho). Ou, então, aqueles produtos cuja feitura exige período mais longo de trabalho somente são fabricados com proporção mínima da fortuna do próprio capitalista. Por exemplo, na construção de casas, a pessoa para a qual a casa é construída paga parceladamente adiantamentos ao empreiteiro. De fato paga, portanto, a casa em parcelas, à medida que o processo de produção dela avança.

Na era capitalista desenvolvida, em que, por um lado, capitais enormes estão concentrados em mãos de indivíduos e, por outro, aparece, ao lado do capitalista individual, o capitalista associado (sociedades por ações) e, ao mesmo tempo, o sistema de crédito está desenvolvido, um empreiteiro capitalista só excepcionalmente constrói por encomenda para pessoas individuais. Seu negócio é construir séries de casas e bairros para o mercado, assim como o negócio de capitalistas individuais é construir estradas de ferro por contrato.

Como a produção capitalista revolucionou a construção de casas em Londres dão-nos conta as declarações de um empreiteiro de obras perante a Comissão Bancária de 1857. Em sua juventude, disse ele, casas eram geralmente construídas por encomenda, sendo o montante pago em prestações ao empreiteiro durante a construção, ao se completarem determinados estágios. Para especular só se construía pouco; os empreiteiros só entravam nisso principalmente para manter seus trabalhadores regularmente ocupados e, assim, reunidos. Nos últimos 40 anos tudo isso mudou. Por encomenda só se constrói muito pouco. Quem precisa de uma nova casa escolhe entre as construídas por especulação ou ainda em construção. O empreiteiro já não trabalha para o cliente, mas para o mercado; exatamente como qualquer outro industrial, é obrigado a ter mercadoria pronta no mercado. Enquanto antigamente um empreiteiro tinha talvez, ao mesmo tempo, para especulação, 3 ou 4 casas em construção, agora ele precisa comprar um terreno extenso (isto é, em termos do continente, arrendá-lo geralmente por 99 anos), edificar sobre ele 100 ou até 200 casas e, assim, meter-se num empreendimento que supera 20 a 50 vezes sua fortuna. Os fundos são arranjados mediante a tomada de hipotecas, e o dinheiro é posto à disposição do empreiteiro à medida que a construção das casas individuais progride. Se vem, então, uma crise que paralisa o pagamento das prestações do adiantamento, todo o empreendimento normalmente fracassa; no melhor dos casos, as casas ficam inacabadas até os tempos melhorarem; no pior, são postas em leilão e alienadas pela metade do preço. Sem construção especulativa, e isso em larga escala, nenhum empreiteiro pode ir em frente. O lucro obtido da própria construção é extremamente pequeno; seu ganho principal consiste na elevação da renda fundiária, na hábil escolha e exploração do terreno da construção. Por esse caminho da especulação, que antecipa a demanda de casas, foram construídas quase toda a Belgravia e Tyburnia e os inúmeros milhares de vilas ao redor de Londres. (Abreviado do Report from the Select Committee on Bank Acts. Parte Primeira, 1857. “Evidence”, perguntas 5413-5418, 5435-5436.)”


2025-01-26

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Hobson 1894: Concentração e dispersão do comércio varejista


HOBSON A J (1894), The Evolution of Modern Capitalism. London: W. Scott; New York: C. Scribner, 1894. Seções IV §12 Specialisation in Districts and Towns e IV §13 Specialisation within the Town, pp. 110-116.
https://docs.google.com/document/d/1-s4lTV9f_KTNljo6i_hTBxe3btCl8j0sW1Auqkhz-wY/edit?usp=drive_link

Lord Street, Liverpool c. 1900

“(..) Effective competition in retail trade sometimes requires concentration, sometimes dispersion of business. But the most characteristic modern movement in retail trade is a combination of the centralising and dispersive tendencies, and is related to the enlargement of the business-unit which we found proceeding everywhere in industry. The large distributing company with a number of local branch agents, who call regularly at the house of the consumer for orders, is the most highly organised form of retail trade. In all the departments of regular and general consumption the movement is towards this constant house-to-house supply. The wealthier classes in towns have already learned to purchase all the more perishable forms of food and many other articles of house consumption in this way, while the growing facilities of postage and conveyance of goods enable them to purchase from a large central store by means of a price-list all other consumables into which the element of individual taste or caprice does not largely enter. This habit is spreading in the smaller towns among the middle classes, so that the small dispersed retail businesses are becoming more and more dependent upon the supply of the needs of the working classes, and of such articles of comfort and luxury as may appeal to the less regular and calculable tastes of the moneyed classes. Just as in towns we have a constant automatic supply of water and gas instead of an intermittent supply dependent on a number of individual acts of purchase, so it seems likely that all the routine wants of the consumer will be supplied. (..)”


2025-01-08

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Langton 1975: padrões residenciais urbanos na Inglaterra 1670-1750


LANGTON John, “Residential patterns in pre-industrial cities: some case studies from seventeenth-century Britain”. Transactions of the Institute of British Geographers No. 65 (Jul 1975), The Royal Geographical Society, pp. 1-27.
https://www.jstor.org/stable/621607


ABSTRACT

Newcastle 1745
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The models of pre-nineteenth-century cities formulated by Sjoberg and Vance are compared. The two writers postulated different kinds of social ecology because they based their deductions about spatial patterns upon different social structures, and this difference, in turn, resulted from their use of different economic variables as sociological determinants. An analysis of the hearth tax returns for three British cities, and of data produced by linking these returns with the admissions list of freemen in Newcastle, shows that neither of their models replicates what happened in these cities. In Newcastle, a merchant oligarchy existed, dominating a particular residential-cum-economic area, and the gild organization of crafts was reflected in the spatial zoning of occupational groups. Although some parts of Newcastle were occupationally mixed, this probably did not represent the emergence of ‘class zoning’.


In the literature of urban geography, little space is devoted to pre-nineteenth cities. When the subject is discussed it is usually treated with a bland lack of controversy: textbooks, and monographs and papers on historical and modern cities are alike in their exclusive and uncritical presentation of Sjoberg’s generalizations about what he termed the ‘pre-industrial city”1. The reasons for this situation are not, of course, hard to find. Until recently, this was the only set of generalizations available, and the continents in which much of the recent work in urban social geography has been done have no great fund of pre-nineteenth-century urban experience. The current preoccupation of urban social geographers with techniques of analysis which require large arrays of data, and with theories which link urbanism with industrialization or modernization, and thus define the pre-nineteenth-century city out of consideration, also contribute to this end. Moreover, the ease with which the processes which destroyed the ‘pre-industrial city’ can be thought of as synonymous with those which created the modern city has contributed to the development of the concept of ‘ecological transition’, and this fusion seems only to have bolstered the confidence of urban geographers in Sjoberg’s monolithic ideas about the nature of cities before the transition occurred.2 The result is a general agreement that urban society was segregated by wealth or status, with the rich and powerful living near to the centre and the poor and powerless on the periphery of cities before industrialization, or modernization. Afterwards, class-based segregation became manifest, and the social geography of cities, in terms of this two gross categories, was reversed. (..)

Acesse o artigo na íntegra pelo link (inscrição gratuita requerida)
https://www.jstor.org/stable/621607 

2024-11-06

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Carter 1983: Formação e estrutura da área central das cidades britânicas


CARTER Harold, An Introduction to Urban Historical Geography – cap 8 The Internal Structure of the City: the central area. Londres: Edward Arnold (Publishers), 1983, pp. 150-170.
https://archive.org/det.../introductiontour0000cart/mode/1up

Uso do solo, Londres século XVIII 
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Many urban geographers would probably consider that the emergence of a distinctive and specialized shopping center is the key process in the patterning of the central area of the city. This is so because the development of the wide range of other specialized areas was functionally related to it, for it was the prime generating influence monopolizing the most valued land at least insofar as its core coincided with peak land values. The priority of the shopping centre is derived from the presumed ability of retailers to pay the highest prices for city-centre locations. Historically, however, that priority lacks conviction for, to use Sjoberg’s categories, it is a feature of the industrial rather than of the pre-industrial city (Sjoberg, 1960). In the latter political and religious elements were predominant in shaping the centre, arrogating the most prestigious locations. It follows that it is impossible historically to retain a constant significance for the role of the retail area and the shopping function. To a degree this echoes Vance’s argument for a pre-capitalist rather than a pre-industrial city (Vance, 1971). Vance contends that before the growth of modern capitalism land was not owned and regarded as a property investment, but rather it was held  and evaluated in terms which were primarily social. In the town in particular it gave access to the guilds which initially had mainly a social and convivial basis and only later became trade associations. In this way participation in city life was a consequence of land-holding. Moreover, given their origins, the location of the guilds within the city was fortuitous and specialized trade areas developed bearing no relationship to any economic order based on a central point or peak land-value intersection which are products of the later capitalist order. If pre-industrial or pre-capitalist cities present a different suite of forces controlling their central area land-uses from those of later cities then it is sensible to divide examination of those uses into two sections. The break point is a matter of some debate for pre-industrial and pre-capitalist refer to different points of inflexion, but in most general terms it is possible to contrast the evolution of retailing with the later evolution of shopping and use it as a preliminary basis.
(Continua)

Acesse o texto completo deste capítulo pelo link

2022-10-05

sábado, 15 de agosto de 2020

Apontamentos: Engels 1845 - as grandes cidades britânicas

ENGELS F [1845], “As Grandes Cidades”, em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Boitempo, São Paulo 2010, pp. 67-116
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4662435/mod_resource/content/1/ENGELS.pdf


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Friedrich Engels dedicou um capítulo inteiro de sua obra A Situação da Classe Operária na Inglaterra, publicada em 1845, às condições da habitação proletária nas grandes cidades britânicas. Seus termos são duros, suas imagens dolorosas e suas descrições até enfadonhas de tão repetitivas - porque a miséria era a mesma em toda parte.

Passados quase dois séculos e a despeito do próprio Engels ter declarado, no prefácio à edição alemã de 1892, que “o estado de coisas descrito neste livro – pelo menos no que se refere à Inglaterra – pertence hoje, em grande parte, ao passado”, cumpre dizer que o problema habitacional, quando não as condições sanitárias dos bairros proletários, jamais sequer equacionados nos países pobres e intermediários, voltam neste início de século XXI a assombrar as grandes cidades do mundo desenvolvido, povoadas de trabalhadores precarizados oriundos, em sua maior parte, como por um efeito-bumerangue, de suas periferias semicoloniais. A estagnação econômica mundial aberta pela debacle financeira de 2007 e agravada pela pandemia de coronavírus não augura dias melhores.

Deixando, porém, de lado por um momento esses fatos sumamente perturbadores, quero dizer que o capítulo “As Grandes Cidades”, além de libelo político e investigação sociológica, é também um pioneiro dos estudos de organização espacial urbana. Nele, o jovem Engels legou aos urbanólogos do século XXI uma boa coleção de observações sobre o atualíssimo tema da segregação socioespacial nas principais cidades da Grã-Bretanha de sua época e, no caso de Manchester, um esquema completo daquilo que hoje chamamos “estrutura urbana”, com indicações mais ou menos explícitas da disposição radial do conjunto, da relação entre centro, bairros e acessibilidade, dos gradientes de valores do solo, dos arranjos socioespaciais, da tipologia e mercado da habitação proletária e, ao final, um comentário bastante esclarecedor sobre a relação entre o regime inglês de propriedade da terra, a indústria e a qualidade da construção.

Esmiuçar o texto de Engels sob a ótica das estruturas espaciais pode ser uma experiência bastante enriquecedora para o estudioso da cidade.

(O mapa acima é uma versão tecnologicamente atualizada do mapa original da Engels à pg. 88, que ajuda a esclarecer algumas descrições do original, sobretudo a configuração do Centro comercial)

2020-08-13


domingo, 5 de julho de 2020

Entre a ruína industrial e a especulação global


Publicado em Places / History of the Present: Cities in Transition
2020-07, por Richard J. Williams, Professor de Culturas Visuais Contemporâneas na Universidade de Edimburgo.
Manchester After Engels
Beetham Tower, viewed from 
Castlefield Urban Heritage Park, 
November 2019. [Richard Williams]
(..) Manchester, whose collapse in the mid 20th century rivaled that of Detroit, is busily, loudly rebounding; the city is now constructing a cluster of skyscrapers on the edge of its downtown core, the scale of which dwarfs all existing buildings. Not all that long ago, a big building here could perhaps boast 100,000 square feet; today “big” means half a million. The new South Tower of Deansgate Square, a collection of mostly residential towers, rises priapically to more than 600 feet, and it might soon be overtaken by the 700-foot-tall Trinity Islands. There were at the end of last year an unprecedented 80 construction sites in the city center, including 14,000 future apartments, many of which are underwritten by international investment. (Continua)

2020-07-05


quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Financeirização da moradia, lado B

Deu na BBC News
23-09-2019, por BBC News
Housing crisis affects estimated 8.4 million in England – research
An estimated 8.4 million people in England are living in an unaffordable, insecure or unsuitable home, according to the National Housing Federation.
Foto: Frantzesco Kangaris / The Guardian
The federation said analysis suggests the housing crisis was impacting all ages across every part of the country.
It includes people facing issues such as overcrowded housing or being unable to afford their rent or mortgage.
(..)The research estimated:
  • 3.6 million people are living in an overcrowded home
  • 2.5 million are unable to afford their rent or mortgage
  • 2.5 million are in "hidden households" they cannot afford to move out of, including house shares, adults living with their parents, or people living with an ex-partner
  • 1.7 million are in unsuitable housing such as older people stuck in homes they cannot get around and families in properties which have no outside space
  • 1.4 million are in poor quality homes
  • 400,000 are homeless or at risk of homelessness - including people sleeping rough, living in homeless shelters, temporary accommodation or sofa-surfing
Some people may have more than one of these housing problems, the federation said. (Continua) 
2019-09-26


terça-feira, 27 de novembro de 2018

Apontamentos: Megarry 1962 - planejamento e controle do uso do solo na Inglaterra

Estes apontamentos são parte de um processo de estudo compartilhado. À beira do urbanismo está à disposição dos autores cujo trabalho aqui se comenta para suas considerações.

MEGARRY R E*, “Town and Country Planning in England: A Bird's Eye View”. Case Western Reserve Law Review, Vol 13 No 4 (1962). 

*M.A., LL.D., Universidade de Cambridge. Professor Visitante na Faculdade de Direito da Universidade de Nova York 1960-61. 



Plano para Gateshead e Newscastle upon Tyne 2010-2030
Áreas indicadas para a construção de novos
centros de negócios*
Esta postagem é dedicada a um texto de 1962 que, com a devida consideração ao tempo decorrido e à circunstância histórica, pode ser lido como introdução ao sistema urbanístico inglês - dito “discricionário” pela crítica especializada, por oposição ao modelo “normativo” praticado no Brasil e na maior parte do mundo ocidental. 

Topei com ele por acaso, na Internet, durante minhas pesquisas sobre as atribulações da cidade-jardim howardiana e achei, a exemplo do pientíssimo vira-casaca Henrique IV, rei católico de França, que valia se não uma missa inteira, como Paris, pelo menos uma pequena prédica. Sinal dos tempos.

“Town and Country Planning in England: A Bird's Eye View”, [1] de R. E. Megarry, professor titular da Universidade de Cambridge e professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York (1960-61), proporciona ao estudioso da história e dos modelos regulatórios do urbanismo um resumo dos atributos básicos e etapas de desenvolvimento do sistema legal de planejamento de uso do solo e licenciamento de projetos na Inglaterra e Gales.

A exposição de Megarry abrange os 53 anos decorridos desde a edição do Housing, Town Planning &c. Act de 1909, marco jurídico inaugural do sistema de planejamento e controle do uso do solo no país, com destaque para a reforma instituída pelo Town and Country Planning Act de 1947, que lhe deu não propriamente a sua forma atual - já lá se vão mais de 50 anos -, mas a sua configuração moderna: nas palavras do autor, um sistema compulsório para todas as autoridades locais, extensivo à totalidade do territorio da Inglaterra e Gales, flexível no duplo sentido de que os planos estão sujeitos a revisões periódicas e de que suas disposições não são vinculantes, unificado por estarem todas as autoridades locais subordinadas ao então Ministério da Habitação e Governos Locais e legitimado por um elevado grau de participação e controle cidadão, quer no processo de elaboração dos planos quer na discussão dos recursos das decisões das autoridades locais.

Essa lista de atributos me anima a matizar a ideia, expressa num texto muito mais modesto e recente de Rolnik e Lopes sobre a atualidade do zoneamento [2], de que, ao contrário do que sucede no “sistema normativo” de extração norte-americana e alemã, “que define, por texto e mapa, o que um proprietário pode ou não pode fazer em seu terreno”, no sistema "discricionário" inglês a análise “é feita a partir de méritos individuais e consultas a moradores do entorno de cada empreendimento”. 

Parece faltar aqui o papel central do plano, também composto de textos e mapas a despeito do caráter não vinculante dos usos e edificabilidades propostos para as diferentes áreas e localizações. Na Inglaterra da segunda metade do século XX, explica Megarry, o licenciamento de novos usos e construções, embora sujeito à decisão discricionária da autoridade local, deve levar em conta as disposições e recomendações do plano de desenvolvimento urbano vigente, cabendo recurso à instância superior - com direito a alegações presenciais das partes envolvidas, seus representantes e assessores técnicos. Não havendo, por definição, a hipótese de decisão contrária à norma urbanística, os tribunais de justiça se limitam a garantir o respeito aos ritos. 

De um modo geral, creio ser possível dizer que, no moderno sistema inglês de planejamento e controle urbano, o conceito essencialmente passivo de zoneamento é substituído por uma visão estratégica de alocação espacial de usos e recursos, públicos e privados, no marco de um plano de desenvolvimento local reconhecido e aceito pela comunidade.  

Plano de Liverpool Janeiro 2002
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No saite do Liverpool City Council dedicado ao Unitary Development Plan de 2002, por exemplo, se lê que o UDP “é um documento legal crucial para o futuro da cidade, [que] mostra quais usos podem ser dados a cada terreno” (what every piece of land in the city can be used for), uma formulação, aliás, no mínimo ambígua para um sistema classificado como discricionário. De fato, o capítulo 6, "Recuperação Econômica", apresenta uma lista extensiva de terrenos com as respectivas áreas e usos recomendados. [3] A figura ao lado [4] é o mapa resumo do plano de desenvolvimento urbanístico da cidade de Liverpool de janeiro de 2002.

Refletindo sobre a hipótese, bastante razoável, de que um tal sistema de decisões discricionárias tende a ser mais suscetível às pressões dos grandes empreendedores, ocorreu-me por contraste o ponto de vista de Villaça, para quem, “num país de Estado fraco como o Brasil”, a localização das camadas afluentes, portanto dos produtos da indústria da incorporação, no espaço urbano resulta de “processos sociais que se desenvolvem por muitas décadas e que determinam a legislação urbanística em vez de serem determinados por ela. Imaginar que a legislação urbanística possa dobrar [no longo prazo] os interesses de um poderosíssimo setor de mercado - o setor imobiliário - é uma ilusão”.[5]

A força inercial da legislação como contraponto ao poder de pressão do negócio imobiliário é indiscutível, mas não deve ser superestimada. Ela não é igualmente eficaz em todos lugares e circunstâncias históricas e tende a ser solapada no longo prazo mesmo em países de “Estado forte” como a França e a Inglaterra - se entendo o conceito de Villaça -, por interesses que ou escapam ao controle do urbanismo ou o colocam mais ou menos legitimamente a seu serviço, como é o caso dos Grandes Projetos Urbanos da nossa e de outras épocas.

Uma década de experiência em funções de responsabilidade na Secretaria Municipal de Urbanismo da cidade do Rio de Janeiro me faz pensar que o estudo do regime discricionário inglês pode contribuir para a melhoria dos nossos sistemas municipais de regulação e licenciamento urbanístico, em geral carentes de métodos e procedimentos adequados - do ponto de vista da transparência administrativa, do controle democrático e das finalidades do planejamento - ao exame de circunstâncias não previstas nos códigos, que não são raras, e à tomada de decisão em situações interpretativas, conflituosas e de solução negociável, que são muito mais corriqueiras do que - parafraseando o mais ilustre dos ingleses - supõe a nossa vã filosofia. 

E para que o leitor possa formar a sua própria ideia sobre a atualidade do texto de Megarry, indico ao final da postagem um link do governo britânico para o sistema de planejamento de uso do solo na Inglaterra contemporânea (“Plain English guide to the Planning System”, Department for Communities and Local Government, janeiro de 2015). [6] Abaixo, segue um destaque extraído da seção dedicada aos Planos Locais, datado de 19-05-2016 e atualizado em 28-07-2017. [7]

Qual é o papel do plano local?
Os Planos Locais ocupam um lugar central no sistema nacional de planejamento. Por isso é essencial que eles estejam em vigor e atualizados. O Plano Local provê uma imagem e um marco para o desenvolvimento futuro da área, indicando necessidades e oportunidades nas áreas de habitação, economia, instalações comunitárias e infraestrutura, bem como proteção do meio ambiente, adaptação às mudanças climáticas e garantia de qualidade dos projetos. É também um instrumento crucial para a análise e aprovação de projetos, ponto de partida, ao lado dos Planos de Vizinhança em vigor, para o exame dos pedidos de licença para novos empreendimentos.
O que deve estar contemplado um plano local?
O Plano Local deve conter uma clara visão do desenvolvimento da área no período da sua vigência, indicando-se onde, quando e como ocorrerão essas transformações. Pode-se  fazê-lo mediante alocações espaciais gerais (áreas) ou especificas (terrenos) para diferentes usos; indicação de áreas com vocação de desenvolvimento ou que requeiram a aplicação de regras especiais (como os habitats protegidos); especificação de critérios a serem levados em conta na análise dos empreendimentos. As políticas de desenvolvimento urbano local devem ser sintetizadas em um mapa geral, junto com todas as informações que a Autoridade de Planejamento julgue relevantes para a sua melhor compreensão.

Boa leitura.

[1] “Town and Country Planning in England: A Bird's Eye View”, por R. E. Megarry, 13 Cas. W. Res. L. Rev. 619 (1962) 

[2] “100 anos de zoneamento: ainda faz sentido?” ObservaSP 29-11-2016, por Raquel Rolnik e Mathews Vichr Lopes 

[3] “Plan making in Liverpool - Unitary Development Plan November 2002” Liverpool City Council 27-11-2018
https://liverpool.gov.uk/council/strategies-plans-and-policies/environment-and-planning/plan-making-in-liverpool/current-local-plan-documents/unitary-development-plan/

[4] "A Plan for Liverpool - proposals map". The City of Liverpool
https://liverpool.gov.uk/media/9626/the-udp-map.pdf

[5] VILLAÇA, F. Espaço Intra-Urbano no Brasil, Capítulo 8: "Os bairros residenciais das camadas de alta renda", Nota 15. p 224. SãoPaulo 2001: Studio Nobel; FAPESP; Lincoln Institute

[6] “Plain English guide to the Planning System”, January 2015 Department for Communities and Local Government

[7]  “Local Plans”. 19-05-2016 (atualizado em 28-07-2017), Ministry of Housing, Communities and Local Government, Planning practice guidance and Planning system


2018-11-27

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

As sete vidas da cidade-jardim III


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A história do urbanismo ocidental - um empreendimento científico e cultural marcadamente anglo-americano abrigado, não por acaso, sob a rubrica do
planning (town planning, city planning, urban planning, spatial planning, regional planning [1][2]) - é saturada de referências a Ebenezer Howard, à cidade-jardim, ao Garden City Movement e às inúmeras denominações das associações fundadas por Howard em 1899 e 1913, cujas existências se prolongam até os dias de hoje sob os nomes Town and Country Planning Association e International Federation of Housing and Planning.


Contudo, é do polímata norte-americano Lewis Mumford, um dos papas da matéria no século passado e maior patrocinador intelectual do legado de Howard, a afirmação, contida num artigo de 1965 para o New York Times [3], de que, muito ao contrário do que disse Jane Jacobs em Life and Death of the Great American Cities (1961), a influência howardiana no planejamento urbano norte-americano foi “praticamente nenhuma, limitada à ínfima exceção de Radburn e das [três] Greenbelt Towns iniciadas por Rexford Tugwell no segundo mandato de Roosevelt”, e, no britânico, algo como um “rastilho de ação lenta que levou meio século para detonar a explosão de cidades novas atualmente em curso” [Mumford, 1965].

Admitindo-se que ele tenha razão, resultaria que boa parte daquilo que se lê em artigos acadêmicos e livros de história urbana a respeito de Howard e da cidade-jardim howardiana não diz respeito, pelo menos até 1946, quando o Reino Unido sanciona o New Towns Act, a desenvolvimentos relevantes - por oposição a exemplos tão ilustres quanto excepcionais - que transcendam o plano das ideias.

Vejamos, a propósito, o que nos trazem dois importantes historiadores urbanos, Peter Hall [4] e Spiro Kostoff [5], o primeiro com foco no urbanismo, o segundo na cidade.

Inglaterra

É fora de questão que as cidades-jardim construídas no país de origem de seu criador são duas: Letchworth, fundada em 1903, e Welwyn, em 1920. É aqui mesmo, portanto, e desde muito cedo, que se estabelece a polêmica a respeito da propriedade de associar-se o termo “cidade-jardim” a um significativo número de novas urbanizações surgidas na Inglaterra das primeiras décadas do século XX - a mais famosa dentre elas Hampstead (1907), na então periferia de Londres, assinada por ninguém menos do que Raymond Unwin e Barry Parker, projetistas de Letchworth.


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Segundo Hall, “Hampstead foi um ponto de inflexão para o Garden City Movement na Inglaterra e para Unwin em particular, pois não se tratava, confessadamente, de uma cidade-jardim, mas de um subúrbio-jardim; não tinha indústria e dependia da acessibilidade proporcionada pela recém-inaugurada estação metroviária adjacente”. [Hall, p. 101]

Patrick Abercrombie admite num texto de 1910 que a Garden City Association tinha por objetivos a promoção não apenas de novas cidades em distritos rurais, mas também de subúrbios-jardim “para o imediato desafogo das cidades existentes” e bairros-jardim “para a moradia de trabalhadores próxima aos seus locais de trabalho” [Hall, p 105]. O próprio Unwin, numa conferência ministrada na Universidade de Manchester em 1918, teria abjurado para sempre o credo howardiano ao "recomendar a construção de cidades-satélites próximas às cidades existentes, que seriam as suas fontes de emprego" [Hall, p. 108].

Em contraste, Ewart Culpin, futuro presidente do Royal Town Planning Institute, já em 1913 observava que “inúmeros empreendimentos assumem o qualificativo ‘cidade-jardim’ promiscuamente, sem nenhum direito, tendo em vista a sua natureza absolutamente estranha às concepções dos fundadores do movimento” [Hall, p. 105]. Oito anos mais tarde, em 1921, C. B. Purdon, editor da revista da Associação, escreveu: “Não existe um único distrito cujo conselho não reclame ter construído uma [cidade-jardim]; por toda parte construtores inescrupulosos exibem a marca em suas peças publicitárias (..) cidades-jardim propriamente ditas só existem, até hoje, duas: Letchworth e Welwyn” [Hall, p. 107].


O substrato material dessa polêmica é, evidentemente, o florescimento do negócio dos assentamentos suburbanos na Inglaterra da aurora do século XX. Ealing Tenants Limited, a primeira cooperativa habitacional londrina fora fundada em 1901, adquirira 12 hectares de terreno no extremo da The Mount Avenue em 1902, “antes ainda de Letchworth”, e contratara Unwin e Parker para projetar um “bairro-jardim modelo” em 1906 [Hall, p. 101]. Desde o comitê executivo da Co-Partnership Tenants Housing Company, "Unwin desenvolveu, em parceria com Parker, subúrbios-jardim na periferia de Leicester, Cardiff e Stoke-on-Trent". O Housing and Town Planning Act de 1909 permitiu que tais “‘Sociedades de Utilidade Pública’ tomassem dinheiro a juros baixos, daí resultando que, em 1918, mais de 100 delas existiam na Inglaterra” [Hall p. 102].



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Em 1919, o Addison Act consagrou as novas ideias de Unwin - agora membro insigne do poderoso Tudor Walters Committee - no programa de habitação social do pós-I Guerra britânico, daí resultando que, “das cerca de 1 milhão de moradias subsidiadas construídas por autoridades locais no entre-guerras, nenhuma - à exceção de um punhado em Letchworth e Welwyn - estava inserida em uma autêntica cidade-jardim” [Hall, 108].


O veredicto da polêmica envolvendo a natureza dos subúrbios-jardim e cidades-satélites periféricas às grandes cidades da Inglaterra parece ter sido proferido pelo próprio Howard. Em 1920, aos 69 anos de idade, “descrente da capacidade do governo para empreender a tarefa” de dar à luz a sua acalentada social-city, Howard, “sem consultar ninguém e sem ter dinheiro suficiente“, adquiriu uma grande propriedade em Welwyn obrigando a Garden Cities and Town Planning Association a sair em seu socorro. Assim nasceu, “por métodos não-convencionais”, 15 anos depois de Letchworth, a segunda e última cidade-jardim howardiana [Hall, p. 108].


Estados Unidos
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Kostoff resume a influência da cidade-jardim howardiana nos Estados Unidos às já citadas Radburn, em Nova Jersey, de 1928, assinada pelos “Parker & Unwin estadunidenses Clarence Stein & Henry Wright” - em que “os princípios howardianos do greenbelt  e da propriedade pública da terra foram deixados de lado, mas não o componente industrial, que sobreviveu até 1986” - e às Greenbelt Towns, de 1935, já em pleno New Deal, a cargo da United States Resettlement Administration - “o mais próximo que estiveram os Estados Unidos do modelo de Howard” [Kostoff p. 80].

Kostoff atribui a rejeição norte-americana das cidades-jardim - que seus proponentes e defensores insistiam não serem “subúrbios de cidades pré-existentes, mas comunidades autossuficientes com suas próprias oportunidades de emprego e aparatos de administração, cultura e serviços” - pelo fato de ser “quase impossível ao sistema norte-americano tolerar a propriedade comunal e os controles sobre  o uso da propriedade”, coisas que “recendem a socialismo e comunismo” [Kostoff p.78].

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Contudo, como “princípio de projeto de grande popularidade, extremamente flexível e facilmente adaptável a qualquer ideologia” -, o “paradigma da cidade-jardim” teria tido um apelo permanente em subúrbios norte-americanos de alta renda, com base, porém, em referências vernáculas como Glendale, Ohio (1855), e Riverside, Illinois (1869) - esta última assinada por Calvert Vaux e pelo arquiteto paisagista Frederick Law Olmsted, criador do Central Park de Nova York -, ambos bastante anteriores às cidades-jardim howardianas [Kostoff pp. 77, 79] [Itálicos meus].

Os subúrbios-jardim de Country Club District, em Kansas City, e Forest Hills Gardens, em Nova York, de 1915, são citados como exemplos excepcionais de urbanizações sujeitas a controles de uso do solo (étnicos e raciais inclusive). Forest Hills, com desenho nitidamente hampsteadiano e patrocínio da fundação filantrópica Russell Sage, comportava “famílias modestas” que poderiam “obter residências de modo similar ao das cidades-jardim inglesas’” [Kostoff p. 79].

Outros subúrbios-jardim mencionados por Kostoff são as comunidades-modelo produzidas, durante a Primeira Guerra Mundial, pelo “relutante” programa federal de habitação popular Emergency Fleet Corporation (Yorkship Village, em Camden, Union Park Gardens, em Delaware e Buchman Village, na Pensilvânia) e as vilas operárias de Goodyear Akron, Ohio e Billerica Garden Suburb, Massachusetts, ambas de iniciativa mista [Kostoff p. 79].

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A versão de Peter Hall sobre a trajetória da cidade-jardim em território norte-americano é, não por acaso, tão pródiga em ideias quanto pobre em exemplos. Para além das já mencionadas Radburn, Forest Hills Gardens e Greenbelt Towns, Hall destaca a criação de Sunnyside Gardens, um subúrbio-jardim de Nova York construído por Alexander Bing e que teve Mumford como um de seus primeiros residentes, e “duas outras Radburns” que tiveram o próprio Stein como consultor - Chatham Village (1932), na periferia de Pittsburgh e Baldwin Hills Village (1941), em Los Angeles. As três “Stein-Wright Radburns” são, para Hall, “as mais importantes contribuições norte-americanas à tradição da cidade-jardim”, embora “tenham há muito submergido na expansão dos subúrbios” [Hall p.128-29]

A indiscutível estrela da seção de Cities of Tomorrow dedicada à trajetória da cidade-jardim em solo norte-americano é a Associação Estadunidense de Planejamento Regional (RPAA), um clube de adeptos da cidade-jardim howardiana como instrumento e objeto da descentralização urbana, de enorme lastro profissional e intelectual, cuja maior façanha foi, no entanto, ter lançado uma ponte entre a social-city de Howard - a rede de cidades-jardim a serem criadas como alternativa à atratividade das velhas metrópoles - e o New Deal rooseveltiano pela via do planejamento regional preconizado por Patrick Geddes. Tal é, inequivocamente, o vetor do “programa de cinco pontos” adotado pela RPAA em 1923, por ocasião de uma visita de Geddes aos Estados Unidos:


(1) desenvolvimento de  relações com os planejadores britânicos
(2) criação de cidades-jardins no âmbito de um plano regional
(3) desenvolvimento de planos e projetos regionais para promover a Appalachian Trail
(4) colaboração com a comissão de Planejamento de Comunidades do Instituto Estadunidense de Arquitetos para propagar o regionalismo
(5) realização de estudos de áreas críticas, notadamente o Vale do Tennessee


Ao final da seção dedicada à RPAA, Hall conclui que “de tudo isso, muito pouco virou política pública nos EUA dos anos 1920. (..) Por intermédio de Alexander Bing, a Associação trouxe à luz duas comunidades experimentais: Sunnyside Gardens, em New York City, e Radburn, em New Jersey. No mais, o que conseguiu foi vender sonhos de longo prazo” [Hall p. 156] ]

Para Hall, como para Mumford, a cidade-jardim howardiana é, na melhor das hipóteses, uma gota no oceano da expansão suburbana estadunidense.

Europa Continental


A seção de Cities of Tomorrow dedicada à trajetória da cidade-jardim na Europa Continental é uma pérola de anglocentrismo - um tema que deixaremos para comentar em texto mais propício. Por ora, basta dizer que, na opinião de Hall, o conceito foi “completamente diluído” na transposição da Mancha por advogados que reclamavam, eventualmente até com justiça, ter formulado por si mesmos conceitos de cidade-jardim “sutil, mas significativamente distintos do de Howard” [Hall p. 112].

Na Espanha, Hall não encontra material suficiente para mais que um breve comentário, bastante despectivo aliás, sobre a Cidade Linear do espanhol Arturo Soria y Mata, cuja formulação antecede em seis anos a publicação de To-Morrow e cujas obras antecedem em uma década a fundação de Letchworth. A cidade linear - mais exatamente uma “cidade-jardim planejada linear” oferecida ao público sob o slogan “A Cada Família Uma Casa, em Cada Casa uma Horta e um Jardim” -, que teve construídos apenas cinco dos 48 quilômetros previstos ao redor de Madri, “não passava de um subúrbio dormitório de caráter meramente comercial” logo "engolido pelo formidável crescimento da metrópole”  [Hall p. 113].


Quanto à França, um parágrafo é dedicado à Cidade Industrial do francês Tony Garnier -  o “Howard francês” que a postulou no mesmo ano de 1898, mas só trouxe à luz 20 anos depois -, uma urbanização hipotética “economicamente dependente de uma única grande siderúrgica (..) baseada na propriedade comum, desprovida de instituições repressivas como delegacias, tribunais e igrejas” e, quanto ao traçado, “marcada por bairros residenciais em malha ortogonal ao longo de grandes avenidas axiais” [Hall p. 113].

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Howard teria, porém, influenciado diretamente o jurista e jornalista Georges Benoit-Levy, criador da Association des Cités-Jardins de France e promotor de uma confusão elementar entre a cidade-jardim e o subúrbio-jardim” da qual os “franceses, incuravelmente urbanos, nunca se livraram”. Daí resultou a implantação, entre 1916 e 1939, de 16 cités-jardins na periferia de Paris sob responsabilidade do já citado Henri Sellier, que “não apenas sabia que sua interpretação não era puro Howard, mas a variante unwiniana produzida em Hampstead”, como “mandou seus arquitetos visitarem Unwin em 1919 e usou seu livro-texto como guia para os projetos” [Hall p. 114].

Kostoff registra a adesão de Benoît-Levy à cidade-jardim howardiana, na primeira década do século XX, como “alternativa à expansão especulativa dos loteamentos periféricos” na França. No quadro de um “colapso do mercado habitacional privado que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, Sellier “adotou a cidade-jardim como modelo para seu trabalho à frente do Departamento de Moradia Popular de La Seine”, cujos primeiros projetos foram elaborados “à maneira inglesa”, “no espírito de Letchworth”. Mais tarde, na década de 1930, os projetos ganharam maior densidade e as residências unifamiliares acabaram substituídas por blocos de apartamentos de 4 pavimentos [Kostoff p. 77].


O prototípico “Howard alemão” foi, para Hall, Theodor Fritsch, um “raivoso propagandista do racismo” que trouxe a público a sua Cidade do Futuro dois anos antes (1896) do modelo howardiano e “era obcecado pela certeza de que Howard havia roubado a sua ideia” - um “esquema urbano circular com propriedade comum do solo, separação de usos, centro destinado a jardins públicos, greenbelt, moradias unifamiliares e periferia industrial, mas de dimensões muito maiores que a cidade howardiana e não destinada à descentralização urbana que está no centro de sua concepção” [Hall p. 114].


Foi o negociante Heinrich Krebs quem “trouxe da Inglaterra o livro de Howard, mandou traduzi-lo, organizou uma conferência e fundou o equivalente alemão da Garden City Association”, tornando-se assim o pioneiro de uma coorte de seguidores não exatamente de Howard, mas de Unwin, na criação de colônias operárias e subúrbios-jardim espalhados pela Alemanha [Hall, p. 115].


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Margarethenhöhe, na periferia de Essen, “bairro-jardim promovido pela família Krupp em 1912 como a última de uma longa série de colônias industriais iniciada em 1863”, é uma “New Earswick transplantada” por Georg Metzendorf, arquiteto alemão que teria aqui logrado ser “mais uniwiano do que o próprio Unwin” [Hall p. 115].

Hellerau, uma “jóia sem igual” na periferia de Dresden, era “essencialmente um subúrbio-jardim no final de uma linha de bondes”, com “casas geminadas na tradição Unwin-Parker e um layout de caminhos para pedestres que antecipa Radburn em duas décadas” [Hall p. 115].

As pequenas cidades-satélites de Nidda, Praunheim e Römerstadt, na periferia de Frankfurt, faziam parte de um programa estatal de construção de 15.000 residências em áreas rurais adquiridas a baixo preço pela municipalidade. Criadas entre 1925 e 1933 pelo arquiteto-planejador Ernst May, “que trabalhara com Unwin em 1910, em Letchworth como em Hampstead e mantinha com ele estreito contato”, conservaram o padrão unwiniano de densidade (casas unifamiliares), mas não de arquitetura, “intransigentemente moderna”. Apesar de isoladas por modernas rodovias e “inteiramente absorvidas em uma grande e amorfa cidade-satélite chamada Nordweststadt”, encontram-se hoje “totalmente gentrificadas, com somente 11 por cento dos trabalhadores blue-collars para os quais foram projetadas” [Hall pp. 117-18].


Siemestadt
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Martin Wagner, planejador que “não acreditava em cidades-satélites”, foi o mentor de Siemenstadt, complexo residencial criado entre 1929 e 1931 pelo gigante do setor elétrico nas proximidades da estação metroviária de Siemensdamn, na periferia de Berlim, composto por blocos de apartamentos de quatro e cinco pavimentos projetados por grandes nomes da arquitetura alemã. Foi também o criador de Onkel-Toms-Hutte (1926) e Britz (1931), “puros subúrbios-jardins” desenvolvidos pela Gehag - agência de habitação subsidiada criada em 1924 - sobre extensões do Metrô de Berlim. “Ambos esplêndidos, mas, ironicamente, antíteses da ideia de cidade-jardim” [Hall p. 119].

Finalmente, uma breve menção é feita por Kostoff ao uso dos diagramas de Howard pelo russo Vladimir Semionov para ilustrar o projeto da comunidade de trabalhadores ferroviários de Prozorovska, de 1912, e ao papel da cidade-jardim na polêmica pós-revolucionária a respeito da descentralização urbana, descartada em 1932 como antagônica aos interesses do Estado [Kostoff p.78].


Conclusão


A influência da cidade-jardim howardiana - trazida a público em To-morrow [6] e à vida em Letchworth e Welwyn - no desenvolvimento urbano do Ocidente é um objeto fugidio a oscilar no pêndulo de uma patente ambiguidade: seus maiores apóstolos, ao mesmo tempo que lhe atribuem foros de fato indisputável, dedicam-se a acumular evidências de que ela jamais, ou quando muito raramente e de maneira pontual e insatisfatória, se materializou, pelo menos até o momento em que, na Grã-Bretanha do imediato segundo pós-guerra, o New Towns Act dá início a um extenso programa de construção de cidades novas no marco do esforço nacional de reconstrução urbana e reposição-expansão acelerada de seus estoques habitacionais.

Mumford não apenas atribui a Howard a paternidade, antecipada em meio século, do programa britânico das New Towns - “um rastilho de ação lenta que levou meio século para detonar (“causar” é o termo original) a explosão de cidades novas atualmente em curso” - , como fornece a Hall, que o replica 23 anos depois, o mote da vindicação mundial da cidade-jardim - “ao longo da última década as cidades-jardim, agora chamadas New Towns, se multiplicam por todo o mundo”, uma provável referência a programas congêneres espalhados por toda a Europa sob os auspícios do Plano Marshall.

Não há, pois, melhor época e lugar do que a Europa do pós-Segunda Guerra Mundial para continuar a busca da real - e imaginária - influência da obra de Ebenezer Howard na construção da cidade ocidental.


Deixo, também, para uma próxima contribuição a tarefa de esmiuçar o fascinante artigo de Mumford, incluindo o conteúdo e o método de sua diatribe com Jane Jacobs. O método, em especial, deverá servir para trazer à baila a abordagem de Françoise Choay, um dos grandes expoentes da historiografia do urbanismo no século XX.

2017-11-10
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NOTAS
[1] Raymond Unwin publicou em 1909 o seu clássico estudo de desenho urbano sob o título Town planning in practice: an introduction of the art of designing cities and suburbs.
[2] A mais festejada instituição histórica do urbanismo nos Estados Unidos, povoada de nomes ilustres como Lewis Mumford, Clarence Stein, Benton MacKaye, Alexander Bing e Henry Wright, embora expressamente dedicada a estudos e projetos urbanos, autodenominou-se Regional Planning Association of America por influência de Patrick Geddes, que a visitou em junho de 1923, logo após a sua fundação.

[3] Mumford, Lewis. “Revaluations I: Howard’s Garden City”, em New York Times 08-04-1965,
ttp://www.nybooks.com/articles/1965/04/08/revaluations-i-howards-garden-city/
[4] Hall, Peter. Cities of Tomorrow [1988], Blackwell, Londres 1996

[5] Kostoff, Spiro. The City Shaped [1991], Thames and Hudson, Londres 1999

[6[ Howard, Ebenezer. To-morrow: A Peaceful Path to Real Reform, Londres 1898