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quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Apontamentos: Medeiros & Medeiros 2022 - o subúrbio de Lima Barreto

Estes apontamentos são parte de um processo de estudo compartilhado. À beira do urbanismo está à disposição dos autores cujo trabalho aqui se comenta para suas considerações.

MEDEIROS, Juliane P. C. e MEDEIROS, Ana Elisabete de A. “Os subúrbios cariocas no olhar de Lima Barreto”, Thésis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, p. 160-173, dez. 2022.
https://thesis.anparq.org.br/revista.../article/view/303/314

Montagem: Àbeiradourbanismo
Lima Barreto é, com toda certeza, uma valiosíssima testemunha da formação dos subúrbios do Rio de Janeiro e, provavelmente, dos subúrbios brasileiros em geral. Sua obra corresponde, muito precisamente, ao período apontado por mais de uma fonte - Queiroz Ribeiro para o Rio de Janeiro[1] e Strohaecker para Porto Alegre [2] - como sendo o da formação do mercado de terras periféricas às nossas capitais recém convertidas ao status de republicanas. Esse artigo é, portanto, absolutamente oportuno e relevante para leitores interessados na história urbana brasileira e, particularmente, na formação das metrópoles capitalistas em nosso país. Vale uma análise muito mais atenta e profunda do que trago nesses apontamentos. 

Apenas adianto aqui algumas observações, derivadas de meus estudos para o artigo "Porto Alegre cidade radiocêntrica (2)"[2a], de maio de 2o2o, acompanhadas de esclarecedoras citações da obra de Queiroz Ribeiro.
 
Não penso que a suburbanização em geral possa ser dita “política urbana”[3], tampouco que a suburbanização retratada na obra de Lima Barreto seja “resultado da estratégia de afastamento da classe proletária do centro urbano”[4], como foi o caso, por exemplo, da transferência de favelados da Zona Sul do Rio de Janeiro para conjuntos habitacionais periféricos nas décadas de 1960 e 1970.

Como nas demais capitais provinciais do Império brasileiro, a suburbanização do Rio de Janeiro tem início nas décadas de 1880-90 com o surgimento do mercado de terras periféricas à capital, e suas companhias loteadoras, ainda à margem de políticas e regulamentos urbanísticos e sujeitas somente às leis do próprio mercado. 

Importa destacar que este primeiro ciclo da suburbanização carioca não se baseia no assentamento de proletários, que não tinham crédito para adquirir lotes e casas nem recursos para arcar com deslocamentos diários ao centro urbano: 

(..) o desenvolvimento dos transportes coletivos por trens e bondes irá incorporar ao tecido urbano uma grande quantidade de terras, diminuindo fortemente o poder monopolista dos proprietários de cortiços, estalagens e casas-de-cômodos localizados na parte central da cidade. Num primeiro momento, porém, não há um deslocamento das camadas mais pobres para os subúrbios recém-urbanizados, em razão do elevado preço dos trens e bondes e da precariedade dos serviços. Para aquelas camadas sociais, o morar no centro é vital, pois seu sustento depende da “viração” diária e seu rendimento muito magro para cobrir os custos do deslocamento. (..) [QR p. 216]

Essa circunstância dará outro destino à maioria dos trabalhadores residentes nos cortiços e casas de cômodos das áreas centrais afetadas pelas grandes obras de modernização urbana da primeira década do século XX (Rua Mem de Sá,  Avenidas Central e Rodrigues Alves):       

A crise do sistema rentista de produção de moradias gera uma piora nas condições de vida das “classes pobres” da cidade. Deslocadas do centro, elas irão aumentar a densidade de ocupação das casas-de-cômodos nas zonas contíguas ao centro, especialmente na Gamboa, Sant’Anna, Santa Rita e São José. (..) [QR p. 217]

A proliferação de loteamentos suburbanos no Rio de Janeiro de Lima Barreto supunha, dentre outras coisas, a existência de uma camada social de adquirentes de imóveis com algum patrimônio e/ou capacidade de endividamento. Essa "demanda solvável" provinha dos estratos inferiores da nascente classe média, formados por pequenos comerciantes, barnabés, militares, artesãos e, em pequena medida, operários qualificados. [5] [6] 

O surgimento de "camadas médias" na cidade também terá um importante papel na expansão da zona suburbana da Central do Brasil  e da zona norte verificado nas últimas décadas do século XIX e nos primeiros anos deste século. [QR p. 230] 

Ainda que extraordinariamente matizado, o ambiente em que se desenrola a trama de Clara dos Anjos é regido por personagens ciosos de suas conquistas materiais e expectativas de ascensão em uma sociedade até há pouco marcada pelo contraste primordial entre senhores (proprietários de terras, de casas de comércio e seus prepostos) e trabalhadores escravizados. O primeiro dentre esses personagens é o próprio Joaquim dos Anjos, pai de Clara:

"(..) Toda sua ambição se cifrou em obter um pequeno emprego público que lhe desse direito a aposentadoria e a montepio, para a família que ia fundar. Conseguira, ao fim de dois anos de trabalho, aquele de carteiro, havia bem quatro lustros, com o qual estava muito contente e satisfeito da vida, tanto mais que merecera sucessivas promoções. Casara meses depois de nomeado; e, tendo morrido sua mãe, em Diamantina, como filho único, herdara-lhe a casa e umas poucas terras em Inhaí, uma freguesia daquela cidade mineira. Vendeu a modesta herança e tratou de adquirir aquela casita nos subúrbios em que ainda morava e era dele. O seu preço fora módico, mas, mesmo assim, o dinheiro da herança não chegara, e pagou o resto em prestações." (..)" [LB p. 1035 ]

Assim também os pais de Cassi: 

Ao melhorarem as suas condições financeiras, com uma promoção a propósito e a compra daquela casa, na estação do Rocha, com o produto de uma herança que tocara à mulher, Manuel de Azevedo veio encontrar, aos treze anos, o filho completamente viciado (..)  [LB p.1062] 

Propôs, dias depois, à sua esposa, que pusesse o rapazola a aprender um ofício, a fim de discipliná-lo. Dona Salustiana revoltou-se e esbravejou: — Meu filho aprender um ofício, ser operário! Qual! Ele é sobrinho de um doutor e neto de um homem que prestou muitos serviços ao país.  [LB p. 1063]

E outros mais:

O armazém em que Marramaque era empregado havia de tudo: ferragens, roupas feitas, isto é, camisas, calças, ceroulas grosseiras, para trabalhadores; armas, louças etc. etc. Comprava diretamente nos atacadistas da Corte; além disso, o seu proprietário era intermediário entre os pequenos lavradores e as grandes casas da Capital do Império, isto é, comprava as mercadorias àqueles, por conta destas, com o que ganhava comissão. [LB p. 1065]

Num dos subúrbios, na proximidade da casa de Cassi, veio a residir um casal. A mulher era moça, fruída de carnes, alta, louçã, grandes olhos negros, um tipo do Sul, ao que parece do Rio Grande. O marido, que era oficial de Marinha, maquinista, era amorenado, tirando a mulato, baixo, sempre triste, curvado e pensativo. (..) Tomavam comida fora e só tinham uma rapariguita preta, de uns dezesseis anos, para os serviços leves da casa. [LB p. 1071]

Não me parece razoável, portanto, qualificar-se o subúrbio de Lima Barreto como “lugar de segregação da classe proletária”,[7] atributo que no início do século XX pertencia, principalmente, aos cortiços, casas de cômodos e favelas do nascente centro metropolitano. 

No subúrbio de Lima Barreto habitavam proletários, com certeza - e esta é uma relevante exceção à regra geral enunciada por Queiroz Ribeiro -, principalmente biscateiros e serviçais, geralmente mulheres, empregadas e agregadas às famílias da nova classe média suburbana, além de comerciários e uns poucos trabalhadores fabris. Vejamos um simples exemplo:

— Qual calúnia, qual nada! Este rapaz é um perverso, é sem-vergonha. Eu sei o nome das outras. Olhe: a Inês, aquela crioulinha que foi nossa copeira e criada por nós; a Luísa, que era empregada do doutor Camacho; a Santinha, que ajudava a mãe a costurar para fora e morava na rua Valentim; a Bernarda, que trabalhava no “Joie de Vivre”… [LB p. 1048]

Contudo, as vívidas imagens com que Lima Barreto descreve os assentamentos mais afastados da ferrovia deixam claro que eram as franjas do subúrbio, tipicamente as encostas e grotas das elevações ao longo do "eixo da Central do Brasil", os lugares onde se reproduziam, em alguma medida, os processos de segregação proletária já materializados nos cortiços e casas de cômodos da região central, e que mais tarde iriam generalizar-se por toda a cidade em forma de favelas mais ou menos vizinhas aos bairros de classe média que são a fonte principal do seu sustento. 

A segregação proletária, já nessa época, era portanto a dos que não tinham acesso ao mercado de terras, todos "pretos ou quase pretos de tão pobres" [8], incluídos obviamente os trabalhadores recém-liberados do regime de escravidão. 

O subúrbio pequeno-burguês de Lima Barreto é, sem dúvida, bastante distinto dos bairros pequeno-burgueses de José de Alencar e Machado de Assis - Laranjeiras, Tijuca, Andaraí -, antigas "estações de repouso e prazer"[9] já incorporadas à cidade do terceiro quarto do século XIX. Mas a segregação social, neste caso, é um aspecto inerente à urbanização de mercado: a imensa maioria dos adquirentes de imóveis, vale dizer as famílias de classe média, busca morar o mais próximo possível dos que lhe parecem 'superiores' na hierarquia social e decididamente apartados dos 'inferiores'. 

É suficientemente clara, no relato de Lima Barreto, a acentuada redução da qualidade da habitação e da urbanização, consequentemente dos níveis de rendimento familiar, com o aumento da distância à linha férrea da Central (itálicos meus):

Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto das ruas muda. Não há mais gradis de ferros, nem casas com tendências: há o barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo isto muito espaçado e separado; entretanto, encontram-se, por vezes, “correres” de pequenas casas, de duas janelas e porta ao centro, formando o que chamamos “avenida”.

As ruas distantes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros de grama e de capim, que são aproveitados pelas famílias para coradouro. De manhã até à noite, ficam povoadas de toda a espécie de pequenos animais domésticos: galinhas, patos, marrecos, cabritos, carneiros e porcos, sem esquecer os cães, que, com todos aqueles, fraternizam. [LB p. 1117]

Também significativa é a diferença social observada por Lima Barreto entre os bairros suburbanos de 1920 e a nascente periferia metropolitana:  

Nessas horas, as estações se enchem, e os trens descem cheios. Mais cheios, porém, descem os que vêm do limite do Distrito com o estado do Rio. Esses são os expressos. (..)

Toda essa gente que vai morar para as bandas de Maxambomba e adjacências, só é levada a isso pela relativa modicidade do aluguel de casa. Aquela zona não lhes oferece outra vantagem. Tudo é tão caro como no subúrbio, propriamente. Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos do Distrito Federal, que o governo federal caridosamente supre em algumas bicas públicas; não há esgotos; não há médicos, não há farmácias. Ainda dentro do Rio de Janeiro, há algumas estradas construídas pela prefeitura, que se podem considerar como tal; mas, logo que se chega ao estado, tudo falta, nem nada há embrionário. [LB p. 1120]

Pergunto-me a esta altura se a qualificação, por Medeiros & Medeiros, do subúrbio de Lima Barreto como "lugar de segregação proletária" não teria origem na passagem em que o autor, num arroubo de indignação em face da significativa distância social tantas vezes assinalada entre a "cidade" e o "subúrbio", bem como das péssimas condições de moradia e trabalho dos proletários em geral, atropela a complexa tessitura sócio-espacial do seu próprio romance e pontifica:

O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes deem alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos. [LB 1119-20]

*

Assim como Clara dos Anjos começou a ser escrito em 1904, foi publicado como conto em 1920, transformado em romance em 1922, publicado postumamente em folhetim em 1923-24 e como livro em 1948, [10] também esta pesquisa, de correção em correção, de acréscimo em acréscimo, será um dia publicada neste blog sob o título "O Subúrbio de Lima Barreto", com uma análise bastante mais minuciosa de seus textos, enriquecida com maior quantidade de referências acadêmicas e acrescida de uma introdução, que julgo pertinente, sobre o uso de material literário como fonte de investigação urbanística.

2023-10-11

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REFERÊNCIAS 

BARRETO, Lima. Lima Barreto Completo I: Sátiras e Romances Completos. Edição do Kindle

MEDEIROS, Juliane P. C. e MEDEIROS, Ana Elisabete de A. “Os subúrbios cariocas no olhar de Lima Barreto”, Thésis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, p. 160-173, dez. 2022.
https://thesis.anparq.org.br/revista.../article/view/303/314

QUEIROZ RIBEIRO L C, Dos Cortiços aos Condomínios Fechados - As formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro, p. 32. Observatório das Metrópoles, 2015
http://www.observatoriodasmetropoles.net/new/images/abook_file/dos_corticos_aos_condominios_fechados.pdf

NOTAS

[1] QUEIROZ RIBEIRO L C, Dos Cortiços aos Condomínios Fechados - As formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro, p. 32. Observatório das Metrópoles, 2015
http://www.observatoriodasmetropoles.net/new/images/abook_file/dos_corticos_aos_condominios_fechados.pdf

[2] STROHAECKER T M, “Atuação do Público e do Privado na Estruturação do Mercado de Terras de Porto Alegre (1890-1950)”. Scripta Nova - Revista Electrónica de Geografía Y Ciencias Sociales / Universidade de Barcelona, Vol. IX, núm. 194 (13), 1 de agosto de 2005.
http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-194-13.htm

[2a] JORGENSEN P, “Porto Alegre cidade radiocêntrica (2)”, À beira do urbanismo (blog), 21-05-2020.
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2020/05/porto-alegre-cidade-radiocentrica-2_30.html

[3] "Como política urbana, a suburbanização é um modo de alienar os trabalhadores da vida citadina, resumindo o cotidiano do proletariado a grandes deslocamentos casa-trabalho-casa, afastando-o da verve da capital e do sentido da vida urbana". MEDEIROS & MEDEIROS p. 165.

[4] "(..) os subúrbios cariocas são resultado da estratégia de afastamento da classe proletária do centro urbano." MEDEIROS & MEDEIROS p. 160 / Resumo.

[5] "A consideração dos operários qualificados como "camada média" justifica-se se atentarmos para o fato de que desde 1870 forma-se um grande contingente de "pobres" na cidade, pessoas que vivem de trabalhos temporários e intermitentes (..). QUEIROZ RIBEIRO p. 231.

[6] "(..) operários das Oficinas do Engenho de Dentro, nos quais se incluíam os cargos de operários, guardas, feitores, serventes e jornaleiros. Esses, correspondiam a quase totalidade dos empregados da oficinas, que submetidos a 4ª Divisão da companhia, somavam em 1907 cerca de 1.217 funcionários, ao passo que as categorias superiores de chefes, mestres e ajudantes de mestre somavam 22 empregados na mesma data". SERFATY E R C, Pelo trem dos subúrbios: disputas e solidariedades na ocupação do Engenho de Dentro (1870-1906). Dissertação de Mestrado, PUC Rio de Janeiro 2017, p. 75.
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/32190/32190.PDF

[7] "Para Fernandes, o conceito carioca de subúrbio representa um “rapto ideológico”, pois a corrupção do significado da palavra é um recurso da ideologia capitalista para legitimar a segregação da classe proletária. Assim, o sistema capitalista reinterpreta a noção de subúrbio para atender a sua ideologia: (..)" MEDEIROS & MEDEIROS p. 165.

[8] VELOSO C & GIL G, Haiti. 1993

[9] BARRETO, Lima. Lima Barreto Completo I: Sátiras e Romances Completos. Edição do Kindle p. 1038.

[10] NASCIMENTO A S et al, “Clara dos Anjos, de Lima Barreto: o conto e o romance”. Encontros de Vista, Recife, 21 (1): 106-119, jan./jun. 2018
https://www.journals.ufrpe.br/index.php/encontrosdevista/article/download/4743/482484409

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Diga que irá Irajá Irajá

Foto: Daniel Aguiar
Esta belíssima foto foi postada no Facebook, em 7 de maio, por Daniel Aguiar, da comunidade Vicente de Carvalho da Depressão. Diz o autor:

“Não tem uma vez q eu pegue metro em Iraja q eu não fique olhando fixamente pra essa belíssima arquitetura de 6 andares com o penúltimo em madeira.”

Sem dúvida que é um ótimo exemplo, a merecer de quem a estuda um comentário sobre a arquitetura da construção informal.  

Mas o que chama de imediato a minha atenção, embora não surpreenda, é justamente o fato das construções nas imediações da estação do Metrô serem todas, salvo melhor juízo, informais. Nada contra, mas me traz de volta a um tema antigo: a decisão governamental de construir a Linha 2 em superfície, protegida por muros de concreto de grande altura. Mesmo com estações elevadas, ela não contribuiu em nada, quando muito muito pouco, para impulsionar o desenvolvimento urbano, e com ele um modesto incremento que fosse dos rendimentos de negócios e famílias em áreas inteiras da Área de Planejamento 3, a grande Zona Norte do Rio de Janeiro estruturada pelos ramais ferroviários, com mais de 2 milhões de habitantes.

Uma ferrovia urbana é um objeto feito para durar um século. A muralha que dividiu em duas a AP-3 numa época em que a imensa maior parte dos deslocamentos urbanos já eram feitos por ônibus e automóveis é um considerável obstáculo ao desenvolvimento urbano de toda a região, capaz de neutralizar, quem sabe, boa parte das vantagens econômicas e urbanísticas derivadas da própria operação do Metrô. 

Não se trata, é certo, de um caso isolado e não desconheço que o hardware urbano da segunda metade do século XX foi globalmente tratado como custo necessário do desenvolvimento econômico. Incontáveis projetos de transporte, principalmente elevados rodoviários, destruíram lugares urbanos para servir outros, em muitos países e várias escalas urbanas.

Mas há projetos e projetos. No Rio de Janeiro, o elevado da Perimetral foi demolido para a construção do Porto Maravilha com fanfarras olímpicas e augúrios de “renascimento das boas práticas urbanísticas”, mas não o viaduto Paulo de Frontin (imaginem!) tampouco o elevado da Rua Bela. Em alguns casos, como o viaduto sobre o Canal do Mangue e o Mergulhão de Niterói, seria de exigir ao menos um pouco mais de apuro projetual e cuidado urbanístico. Sem falar que, para economizar no curto prazo em desapropriações que respondem por boa parte de seu custo total, grandes projetos de transporte como o Metrô Linha 1 e a Linha Amarela, em vez de criar lotes lindeiros estruturados que teriam enorme valor de venda no médio e longo prazos, legaram à cidade colchas de retalhos urbanos virtualmente inadministráveis.

Considero o projeto da Linha 2 uma tragédia urbanística que pode ter causado, também, fabulosas deseconomias urbanas. Para se ter uma ideia do problema, basta entrar no Google Maps e aproximar a imagem ao longo da linha e ao redor das estações: o que se vê é o pesadelo de quantos urbanólogos, desde Richard Hurd em 1903, tenham alertado para os efeitos contraditórios do sistema ferroviário de superfície, origem da acessibilidade suburbana em boa parte do mundo, sobre a qualidade do ambiente e o valor das propriedades em urbanizações de alta densidade.

Em 40 anos, o corredor rodo-metroviário da Avenida Automóvel Clube / Metrô Linha 2 não gerou um único sub-centro digno de nota, apesar de seccionado por grandes avenidas históricas que interligam os dois grandes ramais ferroviários radiais da cidade: Leopoldina (Penha, Olaria, Bonsucesso) e Central (Deodoro, Madureira, Engenho de Dentro, Meier).

Curiosamente, nunca vi nem ouvi falar de estudo algum, governamental ou acadêmico, que fizesse uma apreciação dos efeitos da Linha 2 sobre a geografia, a economia e o ambiente urbano da AP-3. 

Fosse professor de urbanismo, eu incentivaria os alunos a estudar a fundo este caso. Ele me lembra um comentário que me soprou o ilustre planejador espanhol Ezquiaga, convidado a um seminário que organizamos, em parceria com o prof. Pedro Abramo, da UFRJ, na Secretaria Municipal de Urbanismo quando lá exerci a função de Coordenador Técnico: "Seria altamente educativo publicarmos uma enciclopédia dos nossos grandes fracassos urbanísticos". A Linha 2 do Metrô do Rio seria verbete obrigatório.

Talvez um dia eu mesmo escreva, neste blog, um artigo sobre o assunto.  

2021-05-26

sábado, 18 de julho de 2020

Estação Leblon

Deu na BBC News Brasil
11-07-2020, por Luiza Franco
Alvo de polêmica na quarentena, bairro chique do Rio tem passado abolicionista e já foi considerado 'subúrbio'
"Subúrbio" e "periferia" não são palavras
associadas ao Leblon, bairro nacionalmente
conhecido como sendo um dos caros do
Brasil. Mas é o que ele foi por boa parte
da história de sua ocupação, desde a
chegada dos europeus ao Rio de Janeiro
no século 16, dizem especialistas que
estudam a história da cidade. (Continua)

Com efeito. O que é "subúrbio" depende do que, em dado momento, tomamos como "úrbio".

No Rio de Janeiro, a maior parte do que hoje chamamos subúrbios - Méier, Madureira, Vicente de Carvalho, Olaria, Penha etc, - já deixou de sê-lo há muito tempo, restando, para fazer jus ao conceito, o serviço de trens, suas estações de origem, o rendimento médio relativamente modesto das famílias e suas tradições culturais.

De modo análogo, o que hoje chamamos "centro", porque passou a ser centro com a expansão radial da urbe, continuou sendo referido, até muito depois do advento da indústria da (sub) urbanização, como "a cidade", expressão com que o designamos até pelo menos os anos 1960.

A urbe, a percepção coletiva de sua ordem espacial e o vocabulário que cristaliza essa percepção na cultura urbana acadêmica e não acadêmica mudam em velocidades muito diferentes – o que demonstra, aliás, que são entidades substancialmente diferentes.

Na nossa ciência como em todas as outras, distinguir os objetos, seus conceitos e seus nomes, reconhecendo em cada um a sua própria história, é sempre uma operação delicada, mas essencial.


2020-07-17


segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Pobreza americana

The Economist / Special Report Poverty in America 26-09-2019 

American poverty is moving from the cities to the suburbs

Fonte: The Economist 26-09-2019
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(..) To see the changing geography of American poverty, go instead to Harvey, a small suburban town of 26,000 just 20 miles (32 km) south of Chicago. Despite its proximity to a large city, median household income is an abysmal $24,343. After mismanagement and missed bond payments, the city’s finances are in freefall. One in four flats now sits vacant. Nearly 36% of its residents are classified as poor, higher than in many of the poorest counties in eastern Kentucky and the rest of Appalachia. Though Harvey was never rich, that is a drastic increase from the 22% poverty rate in 2000. And as politicians, journalists and sociologists continue to focus attention on the well-known urban ghettos on the city’s south and west sides, few are taking note of the worsening plight of places like Harvey or nearby Dolton, where concentrated poverty is now just as bad.

After the demographic changes over the past decade, there are now more poor people in Chicago’s southern suburbs than in the city itself. The same is true for the rest of America: a poor person is now much likelier to be found in the suburbs than in the big cities. According to the census taken in 2000, 10.5m, or 31%, of all poor people lived in the suburbs of America’s largest cities. The most recent estimates from the Census Bureau show that the number of poor people living in those suburbs has exploded to 16.3m, an increase of 56%. Unlike urban poverty, which has long been associated with destitute blacks, suburban poverty is more pronounced among poor whites and Hispanics. (..)

2019-09-30