quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Financeirização da moradia ou concentração da propriedade?


NY Times 15-08-2023
https://www.nytimes.com/2023/08/15/nyregion/private-equity-apartments-nyc.html
Montagem: Àbeiradourbanismo

Muitos, nos dias de hoje, enquadrariam o objeto dessa matéria na categoria “financeirização da moradia”. Eu me pergunto se é o caso. 

A moradia - creio - é financeirizada desde que passou a ser produzida para o mercado, pela simples razão que são poucos os que podem comprá-la sem financiamento parcial de seu preço. Tradicionalmente, os contratos de hipoteca preveem que o próprio imóvel é a garantia do empréstimo para a sua aquisição.

A financeirização da moradia dá um salto de qualidade quando, com a desregulamentação de fins do século passado, generaliza-se nos EUA e Inglaterra a prática dos empréstimos bancários garantidos pelo valor da residencia para a compra de bens de consumo, viagens, universidade etc. Famílias com rendimentos estagnados, e até decrescentes, passam a consumir… o valor futuro de suas residências! [1] [2] E uma vez hipotecado o imóvel, o título da dívida pode ser vendido pelo banco para credores de que o devedor nunca ouviu falar.

Aqui o que ocorre é algo diferente: a concentração da propriedade imobiliária nas mãos de um pequeno número de firmas de capital de investimento – no caso, alugueis e compra-venda. O senhorio deixa de ser o dono da padaria e passa a ser, digamos, George Soros. Este fenômeno parece ter-se acelerado na última década com a recessão e a baixa generalizada das taxas de juros, na Europa e EUA, subsequentes à debacle financeira de 2007. Em tempos de investimentos produtivos de rentabilidade duvidosa, o aluguel residencial em grande escala pode ser um ótimo negócio. [3]

Poder-se-ia argumentar, no entanto, suponho que com razão, que o investimento em imóveis quitados para fins de aluguel é, em parte, financeiro. Se, por um lado, a depreciação das benfeitorias requer investimentos regulares que podem ser considerados produtivos, toda receita que excede o retorno normal dos gastos da empresa em transação, administração, manutenção e reformas dos imóveis é pura renda do solo-localização.

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[1] A indústria do refinanciamento hipotecário foi uma forma de os estadunidenses "tomarem emprestado e consumir como se os seus rendimentos estivessem crescendo". STIGLITZ J, O Mundo em Queda Livre – Os Estados Unidos, o mercado livre e o naufrágio da economia mundial. Trad. José Viegas Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Cap. 1: A formação da crise

[2] “(..) no Reino Unido e nos EUA, os empréstimos pessoais garantidos pelas residências (EGR) produziram um aumento do consumo: quanto maior o valor da garantia, maior o nível de consumo. (..) Desde a desregulamentação do crédito na década de 1970, a EGR contribuiu de forma importante para a demanda do consumidor no Reino Unido, ainda que somente nos períodos de alta dos preços da moradia (..) A década anterior à crise financeira registrou níveis sem precedentes de EGR, com proprietários valendo-se do aumento dos preços das residências para tomar mais empréstimos e consumir mais. O sociólogo Colin Crouch (2009) descreveu o fenômeno como uma espécie de 'keynesianismo privatizado': ao passo que no período 1950-70 a demanda foi sustentada pelo Estado pela via da expansão fiscal, no período 1980-2007, de declínio dos salários médios, ela foi alimentada pela dívida hipotecária”. RYAN-COLLINS, LLOYD e MACFARLANE, Rethinking the Economics of Land and Housing. Zed Books 2017, edição do Kindle, p. 146.

[3] “(..) Residential demand shifts mainly with demography and is less buffeted by the business cycle. People will still need somewhere to sleep, says Lawrence Bowles of Savills, a property firm: “You can’t digitalise a bed.” And in an era of low interest rates, steady rental income becomes more attractive. (..)” THE ECONOMIST 28-08-2021 “Big British companies are entering the rental market”
https://www.economist.com/britain/2021/08/28/big-british-companies-are-entering-the-rental-market

2023-08-16