quinta-feira, 3 de agosto de 2017

As sete vidas da cidade-jardim

Plano urbanístico de Letchworth, Reino Unido
(1904), por Raymond Unwin e Barry Parker

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Um recém-adquirido interesse pelas cidades novas do século XX me levou, por uma bifurcação do caminho que apenas ao pensamento é dado percorrer de uma só vez, a cenários tão distantes quanto podem ser o Noroeste paranaense e a Inglaterra do pós Segunda Guerra Mundial. 

E foi desfolhando, na literatura disponível, a árvore genealógica de dois dos maiores programas de assentamento urbano daquela época [1] que me deparei com uma velha conhecida de todos nós: a cidade-jardim. Por incrível que pareça, aí encontrei coisas deveras interessantes e problemas cuja existência nunca havia cogitado. 

O primeiro deles, objeto desta postagem, foi-me apresentado por um texto do professor Renato Leão Rego [2] publicado no ano de 2001 sob o título “O desenho urbano de Maringá e a idéia de cidade-jardim”.[3] 

“Muita gente se refere a Maringá, estado do Paraná, como uma cidade-jardim ou, quando menos, como uma cidade relacionada a este tipo urbano”, explica Rego na abertura de seu artigo. 

Plano urbanístico de Maringá (1943),
por Jorge Macedo Vieira

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Para responder à questão enunciada, o professor paranaense estudou a fundo a origem geralmente aceita desse modelo, qual seja a “proposta publicada por Ebenezer Howard em 1902 sob o título Garden Cities of Tomorrow”, bem como os projetos de Raymond Unwin e Barry Parker para Letchworth e Hampstead, na Inglaterra de inícios do século XX, e o livro-texto de Unwin Town planning in practice: an introduction of the art of designing cities and suburbs, de 1909 - além, é claro, do projeto de Jorge de Macedo Vieira para Maringá, datado de 1943. 

Sua conclusão foi que - notem bem - “a idéia original de Howard de cidade-jardim não perpassa o desenho urbano de Maringá”. 

O exame detalhado de uma longa lista de atributos do projeto original da cidade - cito: a consideração das preexistências como base para o projeto, o traçado irregular consoante com as características naturais do terreno, a presença maciça do verde como elemento de composição do espaço urbano, o caráter artístico da malha urbana, em especial o efeito do traçado regular da área central, a forma das praças, a composição pitoresca de edifícios e espaços públicos ‘fechados’ etc. - o convenceu de que eles “aproximam a forma urbana de Maringá ao tipo de cidade-jardim que Unwin e Parker materializaram” (destaque meu):
A prática do urbanismo de Unwin e de Parker em Letchworth e Hampstead, compilada no texto de Unwin e aplicada por Parker nos projetos da Cia. City em São Paulo, influenciaram e formaram a prática projetual de Jorge de Macedo Vieira, que adotou as soluções formais e os princípios de desenho daquelas duas cidades na composição da forma urbana maringaense. 

Estamos diante, ao que parece, do postulado de que entre a cidade-jardim de Howard e a de Unwin e Parker medeia uma ruptura conceitual, cuja pista eu tento seguir nesta compilação livre que fiz das palavras do autor. 

A proposição de Howard:
Howard, talvez por sua própria formação, [estava] menos interessado e envolvido com questões próprias do desenho urbano [do que] numa solução para o problema urbano que proporcionasse moradia digna para as classes trabalhadoras. 
(..) A proposta de cidade-jardim publicada por Ebenezer Howard em 1902 sob o título Garden Cities of Tomorrow não se referia a um modelo espacial e sim a um esquema teórico de uma cidade autônoma, de gestão comunitária, de dimensão limitada por extensa faixa agrícola que a circundava e que, caracterizada por altas taxas de áreas verdes, seria uma alternativa para o caos e decadência urbanos da Inglaterra do final do século XIX.
(..) De acordo com o planejamento urbano e territorial de Howard, a terra agrícola deveria ser adquirida pela comunidade organizada. (..) As cotas de participação, pagas mensalmente, habilitariam o contribuinte a usufruir o terreno, além de contribuir para a amortização do empréstimo obtido, financiar a construção da infraestrutura urbana, sistema viário, edifícios públicos e sustentar a manutenção e a administração da cidade, ou seja, o lucro do empreendimento seria revertido para a própria comunidade.
A trajetória de Unwin-Parker: 
(..) Raymond Unwin e seu sócio Barry Parker foram os responsáveis pela materialização das idéias de Howard. Juntos projetaram as cidades-jardins de Letchworth (1904-06) e Hampstead (1905) de acordo com o esquema proposto por Howard.
(..) Howard estava ligado ao projeto e à viabilização de Letchworth, mas nada tinha a ver com Hampstead, uma área localizada ao norte de Londres que, embora imaginada inicialmente como uma comunidade, não era prevista como autônoma e configurava-se como um subúrbio da capital inglesa. 
(..) Em 1909, depois destas duas experiências fundamentais, o urbanista Raymond Unwin publica Town planning in practice: an introduction of the art of designing cities and suburbs (...) [um livro que] pouco tem da cidade-jardim idealizada no esquema de Howard, sendo efetivamente um tratado de desenho urbano (..) [onde] encontram-se soluções formais e sugestões de procedimentos no desenho da cidade já experimentadas na composição da cidade-jardim, que então se transformou em um tipo arquitetônico (alternativo à cidade racionalista), uma configuração urbana cuja forma-base passou a ser empregada e reformulada em todo o mundo, abandonando o ideal de Howard concentrado nos princípios de uma vida comunitária e cooperativa. (Destaque meu)

Embora admita diferenças de interpretação com o autor no que se refere às motivações e ao alcance do programa de Howard - irrelevantes, é bom que se diga, para os seus propósitos -, considero de grande importância historiográfica a pesquisa de Rego e essencialmente correta a sua conclusão. 

Eu a traduzo da seguinte maneira: “cidade-jardim” é um termo que designa objetos bastante distintos, quase diria antagônicos, para Ebenezer Howard, o criador, e para Unwin/Parker, os epígonos. Não foi a primeira vez na história, e está longe de ter sido a última, que algo do gênero aconteceu!

Essa opinião é sustentada também, de maneira bastante incisiva, por Monteiro de Andrade. Numa resenha de 2002 [4] do livro da arquiteta Silvia Wolff sobre o Jardim América, primeiro "bairro-jardim" da cidade de São Paulo, [5] ele assim resume a questão:
No primeiro capítulo Silvia Wolff sistematiza informações básicas sobre as propostas de cidade-jardim e de subúrbio-jardim, estabelecendo suas origens e referências históricas. Ao tratar da distinção entre esses dois conceitos a autora inicia afirmando o vínculo do urbanismo dos loteamentos da City à proposta de cidade-jardim. Observa, no entanto, a polissemia do termo e, em particular sua confusão com a noção de subúrbio-jardim. Mostra como o fato dos arquitetos Parker e Unwin terem projetado a primeira cidade-jardim howardiana – Letchworth, e também o primeiro subúrbio-jardim de amplo sucesso – Hampstead, tem contribuído para tal confusão terminológica e conceitual.
Com pertinência ressalta a importância dessa distinção, a qual, vale lembrar, provocou a ruptura de Howard, Osborn e outros seguidores dogmáticos – que se mantiveram fiéis à concepção de cidade-jardim enquanto um tipo ideal, alternativo às metrópoles e grandes cidades –, com Unwin, Parker e demais projetistas de subúrbios. Mas a autora deixa de lado uma análise do fundamental trabalho teórico de Unwin – o Town Planning in Practice, de 1909, ainda que este conste na bibliografia – no qual esse autor desliza o conceito de cidade-jardim para subúrbio-jardim. Assim, não enfatiza a cisão do Movimento pela Cidade-Jardim entre os ortodoxos howardianos e os pragmáticos alinhados a Unwin.


The Social City, in
“To-Morrow: A Peaceful Path to Real Reform”,
1898, by [Sir] Ebenezer Howard

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O trabalho de Rego e a síntese de Monteiro de Andrade nos sugerem que a cidade-jardim exaustivamente referida no estudo das origens do urbanismo moderno tem duas existências: a howardiana e a unwiniana. Mas sou tentado a considerar que ela é um objeto ainda mais complexo. 

Olhando um pouco mais de perto, poder-se-iam distinguir pelo menos seis vidas nesse caso: (1) o programa socioespacial urbano e regional howardiano, por ele mesmo batizado "Social City"; (2) a especulação urbanística expressa no esquema gráfico howardiano; (3) os respectivos fatos urbanos erguidos sobre o terreno em Letchworth e Welwin; (4) os demais projetos de urbanização elaborados sob tal selo por Unwin e Parker; (5) os assentamentos suburbanos “orgânicos” de baixa densidade construídos no mundo norte-atlântico desde meados do século XIX;  e (6) o "ponto de venda" amplamente abraçado pela indústria de produtos imobiliários em todo o mundo. 

Uma vida a mais que identificássemos num exame mais atento, ou que ocorressem à mente do leitor, e teríamos um objeto verdadeiramente felino. É essa multiplicidade de avatares que torna a cidade-jardim ao mesmo tempo um animal fugidio e um pau para toda obra na história do urbanismo moderno.

Distintas cidades-jardim coexistem como que em distintos feixes de realidade, entrelaçadas por certo, mas relativamente independentes em sua gênese, desenvolvimento, ramificações e rupturas. Cabe ao historiador das cidades e do urbanismo identificar esses feixes, analisá-los e concatená-los de modo a esclarecer, na medida do possível, suas conexões e influências recíprocas.

O método de Rego consistiu em cotejar os aspectos centrais da comunidade autogerida howardiana - sem destacar, é fato, o pouco que ela contém de especulação urbanística propriamente dita - aos planos e projetos urbanísticos criados, sob seu selo, por Unwin e Parker na Inglaterra e, sob a influencia direta destes últimos, por Jorge Macedo Vieira em Maringá - planos e projetos que, por sua vez, levaram à formulação de outros corpos de ideias, mais ou menos - ou nada! - devedores à cidade-jardim de Ebenezer Howard, e que se deram à história do urbanismo como mais ou menos aptos a responder aos problemas de sua própria época, lugar e circunstância. 

Algo radicalmente distinto, quero crer, do método enunciado - e obstinadamente praticado, com enorme maestria e erudição - por Peter Hall em seu clássico Cities of Tomorrow – an Intellectual History of Urban Planning and Design in the Twentieth Century, onde se lê:
Boa parte, senão a maior, do que aconteceu - para bem e para mal - às cidades do mundo nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial remonta, podemos dizer, às ideias de uns poucos visionários que viveram e escreveram há muito tempo, quase ignorados e até mesmo rejeitados por seus contemporâneos. (...) Algumas dessas visões eram utópicas, quando não milenaristas (..). Sua implementação, depois de descobertas e ressuscitadas, aconteceu no entanto em lugares, circunstâncias e por meio de mecanismos quase sempre muito diversos daqueles que seus criadores haviam cogitado (...) não admira que com resultados muitas vezes bizarros e até catastróficos. [Capítulo 1, "Cidades da Imaginação]
Ebenezer Howard é o mais importante personagem individual de toda essa história. [Capítulo 4, “A Cidade no Jardim”] [6]

Pergunta inescapável: seria Maringá, do ponto de vista de Hall, um resultado bizarro ou uma tradução catastrófica da implementação das ideias de Howard em um lugar, circunstância e por meio de mecanismos muito diversos daqueles que ele cogitou? Onde se encaixaria o projeto de Macedo Vieira em sua história do planejamento e do desenho urbano no século XX? 


Vista aérea de Maringá - Paraná - BR
Fonte: Assessoria de Comunicação PMM/Internet

Vista Aérea de Letchworth, Inglaterra, UK
Fonte: Intenet


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[1] A colonização do noroeste paranaense pela Companhia de Terras Norte do Paraná e a construção de novas cidades no Reino Unido sob impulso do New Towns Act de 1946.

[2] Professor titular do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá - UEM.


[3] Leão Rego, Renato, “ O desenho urbano de Maringá e a idéia de cidade-jardim. Acta Scientiarum - UEM v. 23, Outubro de 2001. http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciTechnol/article/view/2801/1853

[4] Monteiro de Andrade, Carlos  Roberto. “Jardim América: a arquitetura do primeiro bairro-jardim de São Paulo”, Vitruvius 006.01 ano 01, jun. 2002

[5] Santos Wolff, Silvia Ferreira. Jardim América:O primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura, Edusp, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo; 1ª edição, 2001

[6] Tradução livre de Hall, Peter. Cities of Tomorrow [1988], edição atualizada Blackwell, Londres, 1996.


2017-07-03