https://thesis.anparq.org.br/revista.../article/view/303/314
Montagem: Àbeiradourbanismo |
(..) o desenvolvimento dos transportes coletivos por trens e bondes irá incorporar ao tecido urbano uma grande quantidade de terras, diminuindo fortemente o poder monopolista dos proprietários de cortiços, estalagens e casas-de-cômodos localizados na parte central da cidade. Num primeiro momento, porém, não há um deslocamento das camadas mais pobres para os subúrbios recém-urbanizados, em razão do elevado preço dos trens e bondes e da precariedade dos serviços. Para aquelas camadas sociais, o morar no centro é vital, pois seu sustento depende da “viração” diária e seu rendimento muito magro para cobrir os custos do deslocamento. (..) [QR p. 216]
Essa circunstância dará outro destino à maioria dos trabalhadores residentes nos cortiços e casas de cômodos das áreas centrais afetadas pelas grandes obras de modernização urbana da primeira década do século XX (Rua Mem de Sá, Avenidas Central e Rodrigues Alves):
A crise do sistema rentista de produção de moradias gera uma piora nas condições de vida das “classes pobres” da cidade. Deslocadas do centro, elas irão aumentar a densidade de ocupação das casas-de-cômodos nas zonas contíguas ao centro, especialmente na Gamboa, Sant’Anna, Santa Rita e São José. (..) [QR p. 217]
A proliferação de loteamentos suburbanos no Rio de Janeiro de Lima Barreto supunha, dentre outras coisas, a existência de uma camada social de adquirentes de imóveis com algum patrimônio e/ou capacidade de endividamento. Essa "demanda solvável" provinha dos estratos inferiores da nascente classe média, formados por pequenos comerciantes, barnabés, militares, artesãos e, em pequena medida, operários qualificados. [5] [6]
O surgimento de "camadas médias" na cidade também terá um importante papel na expansão da zona suburbana da Central do Brasil e da zona norte verificado nas últimas décadas do século XIX e nos primeiros anos deste século. [QR p. 230]
Ainda que extraordinariamente matizado, o ambiente em que se desenrola a trama de Clara dos Anjos é regido por personagens ciosos de suas conquistas materiais e expectativas de ascensão em uma sociedade até há pouco marcada pelo contraste primordial entre senhores (proprietários de terras, de casas de comércio e seus prepostos) e trabalhadores escravizados. O primeiro dentre esses personagens é o próprio Joaquim dos Anjos, pai de Clara:
"(..) Toda sua ambição se cifrou em obter um pequeno emprego público que lhe desse direito a aposentadoria e a montepio, para a família que ia fundar. Conseguira, ao fim de dois anos de trabalho, aquele de carteiro, havia bem quatro lustros, com o qual estava muito contente e satisfeito da vida, tanto mais que merecera sucessivas promoções. Casara meses depois de nomeado; e, tendo morrido sua mãe, em Diamantina, como filho único, herdara-lhe a casa e umas poucas terras em Inhaí, uma freguesia daquela cidade mineira. Vendeu a modesta herança e tratou de adquirir aquela casita nos subúrbios em que ainda morava e era dele. O seu preço fora módico, mas, mesmo assim, o dinheiro da herança não chegara, e pagou o resto em prestações." (..)" [LB p. 1035 ]
Assim também os pais de Cassi:
Ao melhorarem as suas condições financeiras, com uma promoção a propósito e a compra daquela casa, na estação do Rocha, com o produto de uma herança que tocara à mulher, Manuel de Azevedo veio encontrar, aos treze anos, o filho completamente viciado (..) [LB p.1062]
Propôs, dias depois, à sua esposa, que pusesse o rapazola a aprender um ofício, a fim de discipliná-lo. Dona Salustiana revoltou-se e esbravejou: — Meu filho aprender um ofício, ser operário! Qual! Ele é sobrinho de um doutor e neto de um homem que prestou muitos serviços ao país. [LB p. 1063]
O armazém em que Marramaque era empregado havia de tudo: ferragens, roupas feitas, isto é, camisas, calças, ceroulas grosseiras, para trabalhadores; armas, louças etc. etc. Comprava diretamente nos atacadistas da Corte; além disso, o seu proprietário era intermediário entre os pequenos lavradores e as grandes casas da Capital do Império, isto é, comprava as mercadorias àqueles, por conta destas, com o que ganhava comissão. [LB p. 1065]
Num dos subúrbios, na proximidade da casa de Cassi, veio a residir um casal. A mulher era moça, fruída de carnes, alta, louçã, grandes olhos negros, um tipo do Sul, ao que parece do Rio Grande. O marido, que era oficial de Marinha, maquinista, era amorenado, tirando a mulato, baixo, sempre triste, curvado e pensativo. (..) Tomavam comida fora e só tinham uma rapariguita preta, de uns dezesseis anos, para os serviços leves da casa. [LB p. 1071]
Não me parece razoável, portanto, qualificar-se o subúrbio de Lima Barreto como “lugar de segregação da classe proletária”,[7] atributo que no início do século XX pertencia, principalmente, aos cortiços, casas de cômodos e favelas do nascente centro metropolitano.
— Qual calúnia, qual nada! Este rapaz é um perverso, é sem-vergonha. Eu sei o nome das outras. Olhe: a Inês, aquela crioulinha que foi nossa copeira e criada por nós; a Luísa, que era empregada do doutor Camacho; a Santinha, que ajudava a mãe a costurar para fora e morava na rua Valentim; a Bernarda, que trabalhava no “Joie de Vivre”… [LB p. 1048]
Contudo, as vívidas imagens com que Lima Barreto descreve os assentamentos mais afastados da ferrovia deixam claro que eram as franjas do subúrbio, tipicamente as encostas e grotas das elevações ao longo do "eixo da Central do Brasil", os lugares onde se reproduziam, em alguma medida, os processos de segregação proletária já materializados nos cortiços e casas de cômodos da região central, e que mais tarde iriam generalizar-se por toda a cidade em forma de favelas mais ou menos vizinhas aos bairros de classe média que são a fonte principal do seu sustento.
Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto das ruas muda. Não há mais gradis de ferros, nem casas com tendências: há o barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo isto muito espaçado e separado; entretanto, encontram-se, por vezes, “correres” de pequenas casas, de duas janelas e porta ao centro, formando o que chamamos “avenida”.As ruas distantes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros de grama e de capim, que são aproveitados pelas famílias para coradouro. De manhã até à noite, ficam povoadas de toda a espécie de pequenos animais domésticos: galinhas, patos, marrecos, cabritos, carneiros e porcos, sem esquecer os cães, que, com todos aqueles, fraternizam. [LB p. 1117]
Também significativa é a diferença social observada por Lima Barreto entre os bairros suburbanos de 1920 e a nascente periferia metropolitana:
Nessas horas, as estações se enchem, e os trens descem cheios. Mais cheios, porém, descem os que vêm do limite do Distrito com o estado do Rio. Esses são os expressos. (..)
Toda essa gente que vai morar para as bandas de Maxambomba e adjacências, só é levada a isso pela relativa modicidade do aluguel de casa. Aquela zona não lhes oferece outra vantagem. Tudo é tão caro como no subúrbio, propriamente. Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos do Distrito Federal, que o governo federal caridosamente supre em algumas bicas públicas; não há esgotos; não há médicos, não há farmácias. Ainda dentro do Rio de Janeiro, há algumas estradas construídas pela prefeitura, que se podem considerar como tal; mas, logo que se chega ao estado, tudo falta, nem nada há embrionário. [LB p. 1120]
O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes deem alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos. [LB 1119-20]
*
Assim como Clara dos Anjos começou a ser escrito em 1904, foi publicado como conto em 1920, transformado em romance em 1922, publicado postumamente em folhetim em 1923-24 e como livro em 1948, [10] também esta pesquisa, de correção em correção, de acréscimo em acréscimo, será um dia publicada neste blog sob o título "O Subúrbio de Lima Barreto", com uma análise bastante mais minuciosa de seus textos, enriquecida com maior quantidade de referências acadêmicas e acrescida de uma introdução, que julgo pertinente, sobre o uso de material literário como fonte de investigação urbanística.2023-10-11
____
REFERÊNCIAS
BARRETO, Lima. Lima Barreto Completo I: Sátiras e Romances Completos. Edição do Kindle
MEDEIROS, Juliane P. C. e MEDEIROS, Ana Elisabete de A. “Os subúrbios cariocas no olhar de Lima Barreto”, Thésis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, p. 160-173, dez. 2022.
https://thesis.anparq.org.br/revista.../article/view/303/314
QUEIROZ RIBEIRO L C, Dos Cortiços aos Condomínios Fechados - As formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro, p. 32. Observatório das Metrópoles, 2015
http://www.observatoriodasmetropoles.net/new/images/abook_file/dos_corticos_aos_condominios_fechados.pdf
NOTAS
[1] QUEIROZ RIBEIRO L C, Dos Cortiços aos Condomínios Fechados - As formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro, p. 32. Observatório das Metrópoles, 2015http://www.observatoriodasmetropoles.net/new/images/abook_file/dos_corticos_aos_condominios_fechados.pdf
[2] STROHAECKER T M, “Atuação do Público e do Privado na Estruturação do Mercado de Terras de Porto Alegre (1890-1950)”. Scripta Nova - Revista Electrónica de Geografía Y Ciencias Sociales / Universidade de Barcelona, Vol. IX, núm. 194 (13), 1 de agosto de 2005.
[2a] JORGENSEN P, “Porto Alegre cidade radiocêntrica (2)”, À beira do urbanismo (blog), 21-05-2020.
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2020/05/porto-alegre-cidade-radiocentrica-2_30.html
[3] "Como política urbana, a suburbanização é um modo de alienar os trabalhadores da vida citadina, resumindo o cotidiano do proletariado a grandes deslocamentos casa-trabalho-casa, afastando-o da verve da capital e do sentido da vida urbana". MEDEIROS & MEDEIROS p. 165.
[4] "(..) os subúrbios cariocas são resultado da estratégia de afastamento da classe proletária do centro urbano." MEDEIROS & MEDEIROS p. 160 / Resumo.
[5] "A consideração dos operários qualificados como "camada média" justifica-se se atentarmos para o fato de que desde 1870 forma-se um grande contingente de "pobres" na cidade, pessoas que vivem de trabalhos temporários e intermitentes (..). QUEIROZ RIBEIRO p. 231.
[6] "(..) operários das Oficinas do Engenho de Dentro, nos quais se incluíam os cargos de operários, guardas, feitores, serventes e jornaleiros. Esses, correspondiam a quase totalidade dos empregados da oficinas, que submetidos a 4ª Divisão da companhia, somavam em 1907 cerca de 1.217 funcionários, ao passo que as categorias superiores de chefes, mestres e ajudantes de mestre somavam 22 empregados na mesma data". SERFATY E R C, Pelo trem dos subúrbios: disputas e solidariedades na ocupação do Engenho de Dentro (1870-1906). Dissertação de Mestrado, PUC Rio de Janeiro 2017, p. 75.
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/32190/32190.PDF
[7] "Para Fernandes, o conceito carioca de subúrbio representa um “rapto ideológico”, pois a corrupção do significado da palavra é um recurso da ideologia capitalista para legitimar a segregação da classe proletária. Assim, o sistema capitalista reinterpreta a noção de subúrbio para atender a sua ideologia: (..)" MEDEIROS & MEDEIROS p. 165.
[8] VELOSO C & GIL G, Haiti. 1993
[9] BARRETO, Lima. Lima Barreto Completo I: Sátiras e Romances Completos. Edição do Kindle p. 1038.
[10] NASCIMENTO A S et al, “Clara dos Anjos, de Lima Barreto: o conto e o romance”. Encontros de Vista, Recife, 21 (1): 106-119, jan./jun. 2018https://www.journals.ufrpe.br/index.php/encontrosdevista/article/download/4743/482484409