quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Terrenos de marinha e gestão ambiental


Labcidade FAU-UFSP 24-08-2023, por Fernanda Accioly Moreira e Raquel Rolnik
http://www.labcidade.fau.usp.br/em-tempos-de-crise-ambiental-pec-03-2022-nao/

A criação dos terrenos de marinha remete ao período colonial, quando através do Aviso Régio de 1818 a Coroa Portuguesa estabeleceu que uma faixa de terra de 15 braças de largura, a partir do ponto máximo da maré alta, deveria ser conservada como área da Coroa em função da necessidade de controlar o acesso e a defesa do território colonial sob jugo português. A navegação, manutenção dos sistemas de defesa e exploração econômica –, como o acesso ao mar, aos rios navegáveis, às áreas estratégicas para instalação de portos e fortalezas e às áreas com presença de madeiras para a construção naval –, eram centrais para a exploração colonial e, portanto, seu controle era de interesse da Coroa.

Montagem:Àbeiradourbanismo
Após a independência, como bens públicos da União, no período Vargas (1946) os terrenos de marinha ganham contornos mais técnicos, definidos então como “uma faixa de 33 metros ao longo da costa marítima e das margens de rios e lagos que sofram a influência das marés. Essa faixa é reconhecida pela demarcação, pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU) da Linha Preamar Médio do ano de 1831 (LPM), um procedimento administrativo, declaratório de propriedade.”

A forma de gestão destes bens, bem como sua finalidade sofreu a influência das coalizões que assumiram o governo federal ao longo do tempo. Entre um sentido puramente arrecadatório – já que os ocupantes formalmente registrados pagam uma taxa anual à SPU, recolhendo também um valor no momento da venda do imóvel – a um instrumento de política socioambiental. Até hoje, o instituto tem servido para garantir um controle público sobre as formas de uso e ocupação da faixa costeira.

Segundo Alexandra Reschke, que comandou a SPU nas duas primeiras gestões do presidente Lula, os terrenos de marinha deveriam ser tratados como bens públicos de uso coletivo com finalidade socioambiental, logo patrimônio de todo povo brasileiro, que tem como objetivo contribuir para a redução das desigualdades sociais e territoriais, e para a promoção da justiça socioambiental, seja pelo simples cumprimento do interesse público garantindo o livre acesso às praias, seja promovendo o direito à moradia, o reconhecimento do direito de uso de terras para subsistência e permanência de povos e comunidades tradicionais – caiçaras, quilombolas, ribeirinhas – em seus territórios, ou mesmo apoiando o desenvolvimento local.

Não há dúvidas de que a gestão dos terrenos de marinha pode ser um importante instrumento de ordenamento territorial e, no contexto atual de agravamento da crise climática, pode contribuir para garantir a proteção de mangues, restingas e ecossistemas marinhos, controlar erosão costeira e, consequentemente, auxiliar no enfrentamento das mudanças climáticas. A perspectiva ambiental estratégica da Zona Costeira esteve presente inclusive desde 1988, ainda sob o governo José Sarney, através da aprovação em 1988 da Lei Nacional de Gerenciamento Costeiro que, em 2004, é regulamentada instituindo o Projeto Orla sob o comando do Ministério do Meio Ambiente em parceria com a SPU. As áreas costeiras e as margens dos rios são consideradas prioritárias para a conservação, uso sustentável e repartição dos benefícios da biodiversidade. (..)

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Apontamentos: Bottura e Vargas 2020 - o projeto de Palmas e a crítica do urbanismo modernista


BOTTURA Roberto e VARGAS Heliana C, “O projeto de Palmas TO frente às teorias urbanas revisionistas pós-1945”. Vitruvius / Arquitextos, ano 21, out. 2020
https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.245/7923

Todo estudo que se debruce sobre uma cidade nova tem diante de si a oportunidade de observar alguns fenômenos em um contexto que evidencia de forma mais latente as contradições entre o projetado (desejado) e o realizado (materializado). Aqui, o objeto de análise é Palmas, capital do então recém-criado estado brasileiro do Tocantins, concebida por arquitetos e inaugurada no final do século 20 a toque de caixa em um movimento de ocupação da região norte do país.
(..)
Parte-se da hipótese de que o projeto de Palmas representa um interessante paradoxo, ao reforçar paradigmas da cidade modernista, embora no discurso do plano a negasse plenamente. Conforme descrito em seu memorial, buscava-se revogar atitudes radicais racionalizadoras, bem como setorizações e imposições contra a natureza. No entanto, o traçado, o arranjo das funções e as espacialidades construídas resultaram numa cidade de uma tediosa quadrícula cartesiana em que a falta de usos combinados, a monotonia da repetição, a negação da rua e da calçada e a total priorização do transporte motorizado individual terminaram por moldar o inverso do que se pretendia. (..)

Excelente artigo. Primeiro por apontar a contradição entre a crítica aos princípios urbanísticos modernistas contida na Memória e a sua adoção, da pior maneira (porque não assumida), no Projeto. Segundo por trazer, de maneira resumida, mas eficaz, um pouco de história e teoria da crítica ao urbanismo modernista na segunda metade do século XX.

***

Embora nunca tenha me dedicado ao tema, eu trago comigo há algum tempo a noção de que o urbanismo modernista é, ao contrário da sua arquitetura, um fracasso histórico, devido à evidente contradição entre o indivíduo e a vida urbana por ele idealizados e a potência autorreprodutiva da urbanização de mercado - que, gostemos ou não, constrói a cidade moderna e conduz a sua operação com a ajuda, não o comando, da mão amiga do Estado.

É precisamente por essa razão que, se concordo com a crítica de Jacobs & Alexander ao
 urbanismo modernista por oposição à dinâmica espacial dos centros metropolitanos dos EUA da década de 1960, também a considero defeituosa por absoluta falta de perspectiva histórica - a começar pelo fato de que, àquela altura, a maior parte da classe média estadunidense, que nunca ouvira falar de Ebenezer Howard, Le Corbusier e Patrick Geddes, já se encontrava voluntariamente segregada em seus baluartes unifamiliares suburbanos.
 
Num plano mais geral, vejo a “cidade diversa” de Jacobs como um recorte espaço-temporal bastante específico da metrópole contemporânea, inexoravelmente prisioneiro do desenvolvimento desigual e combinado da economia de mercado planetária. Já em fins do século XX se lhe opunham, de um lado, o crescimento imparável, principalmente nos países médios e pobres, mas também nas periferias metropolitanas europeias, de grandes manchas de pobreza intercaladas de concentrações do que Milton Santos chamou de “circuito inferior da economia"; de outro, a irreversível tendência ao encastelamento sócio-espacial dos novos abastados da riqueza financeira, aos quais Saskia Sassen, admiradora confessa das ideias de Jacobs, assim se referiu num artigo do ano de 2015:

“(..) hoje, ao invés de espaços de inclusão de pessoas de origens e culturas diversas, nossas cidades globalizadas estão expulsando as pessoas e a diversidade. Seus novos proprietários, muitas vezes habitantes de tempo parcial, são bastante internacionais - o que não significa que representam culturas e tradições diversas, mas sim a nova cultura global do sucesso. Eles são incrivelmente homogêneos, não importa quão diversos em termos de nacionalidade e idioma. Não são os cidadãos que nossas cidades grandes e diversificadas produziram historicamente. São, acima de tudo, cidadãos do “mundo corporativo” global.” (Sassen Saskia, “Who owns our cities - and why this urban takeover should concern us”. The Guardian online, 24-11-2015*)

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* https://www.theguardian.com/cities/2015/nov/24/who-owns-our-cities-and-why-this-urban-takeover-should-concern-us-all

2023-08-25

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Financeirização da moradia ou concentração da propriedade?


NY Times 15-08-2023
https://www.nytimes.com/2023/08/15/nyregion/private-equity-apartments-nyc.html
Montagem: Àbeiradourbanismo

Muitos, nos dias de hoje, enquadrariam o objeto dessa matéria na categoria “financeirização da moradia”. Eu me pergunto se é o caso. 

A moradia - creio - é financeirizada desde que passou a ser produzida para o mercado, pela simples razão que são poucos os que podem comprá-la sem financiamento parcial de seu preço. Tradicionalmente, os contratos de hipoteca preveem que o próprio imóvel é a garantia do empréstimo para a sua aquisição.

A financeirização da moradia dá um salto de qualidade quando, com a desregulamentação de fins do século passado, generaliza-se nos EUA e Inglaterra a prática dos empréstimos bancários garantidos pelo valor da residencia para a compra de bens de consumo, viagens, universidade etc. Famílias com rendimentos estagnados, e até decrescentes, passam a consumir… o valor futuro de suas residências! [1] [2] E uma vez hipotecado o imóvel, o título da dívida pode ser vendido pelo banco para credores de que o devedor nunca ouviu falar.

Aqui o que ocorre é algo diferente: a concentração da propriedade imobiliária nas mãos de um pequeno número de firmas de capital de investimento – no caso, alugueis e compra-venda. O senhorio deixa de ser o dono da padaria e passa a ser, digamos, George Soros. Este fenômeno parece ter-se acelerado na última década com a recessão e a baixa generalizada das taxas de juros, na Europa e EUA, subsequentes à debacle financeira de 2007. Em tempos de investimentos produtivos de rentabilidade duvidosa, o aluguel residencial em grande escala pode ser um ótimo negócio. [3]

Poder-se-ia argumentar, no entanto, suponho que com razão, que o investimento em imóveis quitados para fins de aluguel é, em parte, financeiro. Se, por um lado, a depreciação das benfeitorias requer investimentos regulares que podem ser considerados produtivos, toda receita que excede o retorno normal dos gastos da empresa em transação, administração, manutenção e reformas dos imóveis é pura renda do solo-localização.

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[1] A indústria do refinanciamento hipotecário foi uma forma de os estadunidenses "tomarem emprestado e consumir como se os seus rendimentos estivessem crescendo". STIGLITZ J, O Mundo em Queda Livre – Os Estados Unidos, o mercado livre e o naufrágio da economia mundial. Trad. José Viegas Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Cap. 1: A formação da crise

[2] “(..) no Reino Unido e nos EUA, os empréstimos pessoais garantidos pelas residências (EGR) produziram um aumento do consumo: quanto maior o valor da garantia, maior o nível de consumo. (..) Desde a desregulamentação do crédito na década de 1970, a EGR contribuiu de forma importante para a demanda do consumidor no Reino Unido, ainda que somente nos períodos de alta dos preços da moradia (..) A década anterior à crise financeira registrou níveis sem precedentes de EGR, com proprietários valendo-se do aumento dos preços das residências para tomar mais empréstimos e consumir mais. O sociólogo Colin Crouch (2009) descreveu o fenômeno como uma espécie de 'keynesianismo privatizado': ao passo que no período 1950-70 a demanda foi sustentada pelo Estado pela via da expansão fiscal, no período 1980-2007, de declínio dos salários médios, ela foi alimentada pela dívida hipotecária”. RYAN-COLLINS, LLOYD e MACFARLANE, Rethinking the Economics of Land and Housing. Zed Books 2017, edição do Kindle, p. 146.

[3] “(..) Residential demand shifts mainly with demography and is less buffeted by the business cycle. People will still need somewhere to sleep, says Lawrence Bowles of Savills, a property firm: “You can’t digitalise a bed.” And in an era of low interest rates, steady rental income becomes more attractive. (..)” THE ECONOMIST 28-08-2021 “Big British companies are entering the rental market”
https://www.economist.com/britain/2021/08/28/big-british-companies-are-entering-the-rental-market

2023-08-16

domingo, 13 de agosto de 2023

Grammichele, Catânia

 


Grammichele (Sicilian: Grammicheli, Greek: Echetle (meaning "plowshare"); Latin: Echetla, Ochula; Medieval: Occhiolà) is a town and comune in the Metropolitan City of Catania in Sicily, southern Italy. It is located at the feet of the Hyblaean Mountains, some 13 kilometres (8 mi) from Caltagirone.

The town was built in 1693, after the old town of Occhiolà, located to the north of the modern Grammichele, was destroyed by an earthquake. Occhiolà, on account of the similarity of name, is generally identified with Echetla, a frontier city between Syracusan and Carthaginian territory in the time of Hiero II, which appears to have been originally a Sicel city in which Greek civilization prevailed from the 5th century onwards.[3]

The devastation of the old town was so severe that the feudal landlord of the town, Carlo Maria Carafa Branciforte, Prince of Butari, commissioned construction of a new town, with plans aided by Michele da Ferla. Supposedly the Prince himself sketched out the initial hexagonal layout. In the center of the hexagon is the Piazza Carlo Maria Carafa, faced by the Chiesa Madre (Mother Church), San Michele Arcangelo, and the Palazzo Communale (City Hall). The town of Avola, destroyed by the same earthquake, was also relocated and rebuilt along a hexagonal layout. [WIKIPEDIA] https://en.wikipedia.org/wiki/Grammichele

2023-08-13

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Trabalho de Sísifo

The “Big Dig” was the largest, and most expensive, highway project of its kind in the United States. It included 7.8 miles of highway (161 lane-miles in all), about half of which tunnel under the city and its harbor. (..) The project was the result of more than 30 years of planning and 12 years of construction. (..) Its initial estimated cost was $2.56 billion. Estimates increased to $7.74 billion in 1992, to $10.4 billion in 1994, and, finally, $14.8 billion in 2007—more than five times the original estimate. The reported reasons for the cost escalation included inflation, the failure to assess unknown subsurface conditions, environmental and mitigation costs, and expanded scope. (..)

O maior feito do urbanismo dos anos 1990/2000 foi desconstruir o suporte material da expansão urbana dos 50 anos anteriores - para revalorizar as áreas centrais! 

Pois não se passaram nem 25 e já tememos que as novas áreas centrais estejam entrando em um novo ciclo de declínio causado pela mudança dos paradigmas da economia urbana.

A exemplo de Nova York, poderemos ver imobiliárias de Boston, que gastou 22 bilhões de dólares (atualizados) para construir o Big Dig e revitalizar o Centro, sugerindo subsídios públicos para converter endereços comerciais em edifícios residenciais. 

Talvez nem precisemos ir tão longe: o Rio de Janeiro já está subsidiando a construção e o retrofit habitacionais no Centro da cidade em troca de m2 de construção adicional na Zona Sul - um método mais de acordo com as nossas tradições.

As grandes metrópoles, asseguram-nos as agências internacionais de desenvolvimento, respondem pela criação da imensa maior parte da riqueza planetária. O problema é que essa riqueza, que se concentra a níveis nunca vistos, cresce junto com deseconomias megalopolitanas nunca contabilizadas, mas invariavelmente alocadas na rubrica dos custos públicos.

Mais do que um novo paradigma, precisamos é de mudar de fase.

2023-08-09

domingo, 6 de agosto de 2023

Caos piorado


Caos Planejado 31-07-2023, por Vitor Meira França
https://caosplanejado.com/urbanismo-sustentavel-de-volta-para-o-futuro/

(..) Em um dos episódios mais assistidos do São Paulo nas Alturas, o jornalista Raul Juste Lores destacou que muitos dos edifícios icônicos de São Paulo, verdadeiras obras primas da arquitetura, como o Copan, não poderiam ser construídos pela legislação atual, que, entre outras características, limita o potencial construtivo.

Não é preciso ter estudado muito economia para entender que restrições à oferta afetam diretamente o preço: diante de limitações para se construir e da alta demanda por moradia no centro expandido, os imóveis ficam mais caros, empurrando a população cada vez mais para as periferias e agravando problemas como os longos deslocamentos para acessar serviços e empregos, concentrados na região central. Espraiamento urbano e longos deslocamentos, por sua vez, também estão associados a maiores emissões de carbono e consumo de energia, o que tende a agravar a crise climática. (..).


É difícil encontrar um artigo de Caos Planejado que não traga, embrulhada para presente, a ladainha do fim das normas urbanísticas para “liberar a oferta”. Este aqui nos acena com a expectativa de reverter a periferização, diminuir os tempos de deslocamento ao centro da cidade e reduzir o espraiamento urbano, as emissões de carbono e até o agravamento da crise climática!

Em face de tantas maravilhas, eu só tenho a oferecer ao leitor uma postagem a respeito, um tanto cética, publicada neste blog sob o título “Solo urbano: escassez e planejamento”.
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2022/04/solo-urbano-desmistificar-escassez.html


2023-08-06

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Direito à cidade e à cidadania


El País 24-07-2023
https://elpais.com/espana/elecciones-generales/2023-07-24/los-resultados-de-las-elecciones-generales-del-23-j-en-cada-distrito-de-madrid-barcelona-valencia-sevilla-y-otras-grandes-ciudades.html

Esses mapas do resultado eleitoral de 23 de julho último em 6 grandes cidades da Espanha convidam todos os progressistas a refletir sobre um velho problema: a relação entre o direito democrático à autodeterminação do povo catalão (e basco e galego por extensão) e o substrato antidemocrático do Reino [criptofranquista?] da Espanha.

Como se pode ver, foi na Barcelona majoritariamente republicana e independentista que a social-democracia de Sánchez teve a sua vitória mais acachapante e decisiva contra a frente reacionária PP-Vox.

Nas palavras de El País 24-07-2023: “Los socialistas han recibido más apoyo en todos los distritos de la capital (en Nou Barris donde más, con un 43%) con excepción de Sarriá-San Gervasi, una de las zonas de más renta de la ciudad" (ilustração no alto à esquerda).

Está claro que o “direito à cidade” tão caro a nós, urbanistas, não pode negar legitimidade à aspiração dos barceloneses a se tornarem cidadãos da República da Catalunha. Não é por acaso que, faz tempo, o Barcelona FC é a autêntica "pátria de chuteiras” do futebol mundial.

Muita gente supõe, e não é absurdo, que na Barcelona cosmopolita do século XXI o independentismo já não é majoritário. Pois que se faça, então, um plebiscito democrático em toda a Catalunha com garantias de reconhecimento do resultado.

2023-08-01