O caráter histórico do planejamento urbano
A cidade moderna, vale dizer a cidade da formação social capitalista, é produzida "industrialmente", vale dizer em larga escala, por um consórcio mais ou menos explícito, mas nem por isso isento de tremendas contradições, entre os proprietários de capital, que constroem a maior parte das edificações, operam boa parte dos serviços públicos e exploram a renda da terra que eles valorizam, e seu Estado, que de modo geral provê a infraestrutura e, eventualmente, solo público para os grandes projetos de expansão da fronteira de negócios imobiliários.
É nesse marco que nasce, em meados do século XIX, a técnica do urbanismo, herdeira da "arte urbana" pré-moderna, e mais tarde generalizada, a contrapelo do princípio - muito mais retórico que prático - da liberdade de mercado, como a ciência aplicada do planejamento urbano.
O planejamento urbano nasce, em fins dos século XIX, e se desenvolve no transcurso do século XX como recurso do Estado de classe dos proprietários de capital para a mitigação dos efeitos deletérios da indústria da urbanização - construção civil, operação de serviços urbanos e exploração da renda do solo -, que afetam diretamente as próprias camadas sociais dela beneficiárias e constituem, num plano mais geral, um potente fator de instabilidade social e política. O planejamento moderno é, ele próprio, uma das dimensões da construção da cidade moderna pelo consórcio histórico entre a classe proprietária e seu Estado, contemporaneamente dito "consórcio Estado-mercado".
A subordinação dos efeitos do planejamento às leis da economia e sociologia urbanas é tanto mais clara quanto menos potente é o arsenal de recursos de intervenção estatal no meio urbano.
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O planejamento urbano é a liça permanente, teórico-crítica e/ou político-administrativa, dos profissionais do século XX pelo governo da potência autorreprodutiva da urbanização de mercado. Limitado em seu alcance pela natureza de classe do Estado que o patrocina e aplica, o planejamento urbano moderno é, a um só tempo e contraditoriamente, empenho forçado da classe proprietária dominante em administrar a anarquia urbana derivada da concorrência pela via de seu disciplinamento e esforço mais ou menos consciente da cidadania em geral, e do trabalhadorado em particular, em prol do reconhecimento e explicitação do caráter social do processo de construção e reconstrução da cidade.
Por essa razão, o planejamento urbano é uma atividade profissional essencialmente pública, quase invariavelmente exercida em condições de grande incerteza e considerável turbulência.
"Physical planning of urban developments is extremely complex due to conflicting pressures on land use, contradictory socio-economic dynamics, uncertain prognoses and outcomes, multi-level governance structures, and limited public planning capacities. In addition, comprehensive planning of housing and supportive infrastructures often fails because planning experts dream up ambitious master plans that have little or no bearing on local conditions, knowledge, and needs and only enjoy modest political and popular support. Finally yet importantly, socio-economic turbulence, shifting political priorities, and bureaucratic resistance may undermine stated planning objectives and preferred strategies for how to attain them.”
SØRENSEN E e TORFING J, “The Copenhagen Metropolitan ‘Finger Plan’”. Em HART P e COMPTON M, Great Policy Successes, Oxford Scholarship Online: October 2019 https://oxford.universitypressscholarship.com/.../oso...
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A relação entre o mercado de bens imóveis (benfeitorias, terrenos, projetos, administração etc.) e serviços urbanos e a prática do planejamento urbano em nível estatal constitui um capítulo à parte, de grande interesse na história do urbanismo e de suas disciplinas constitutivas. Ela é assinalada por uma ampla gama de autores de distintas épocas, nacionalidades e áreas técnico-científicas, com nuances que, em parte, se poderiam atribuir à já assinalada duplicidade inerente à interveniência estatal na construção da cidade - ora a serviço dos capitais de investimento, ora a serviço do "interesse geral".
Bastante representativa, por sua franqueza e pragmatismo, da subordinação do planejamento às leis do mercado é a abordagem do economista-avaliador e planejador urbano Oscar Borrero, especialista latinoamericano em recuperação de mais-valias imobiliárias para fins de financiamento urbano:
El conocimiento e identificación de la fase de desarrollo en que se encuentra cada sector de una ciudad es igualmente importante para los organismos de planeación de esa ciudad para saber en qué momento conviene adoptar una determinada política para estimular un proceso de rehabilitación, de renovación o de desarrollo de un sector. (..) Cuando la planeación urbana va en contra de las necesidades sociales y las leyes del mercado, genera un mayor caos urbano. La planeación debe ir delante de la demanda encauzando las necesidades. [BORRERO 2005]
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Corporatist negotiations combined with a stable political alliance between social democrats and social liberals have played a key role in the expansion of the universalistic welfare state before and especially after the Second World War. (..) [The Finger Plan] would never have taken off if it had not gained early support from a political coalition of planning experts, local and regional governments, and several ministries. Motives for entering into this broad political alliance differed. (..) The Ministry of Labour and the Ministry of Social Affairs were desperate to initiate public construction work in order to reduce mounting unemployment. They knew that investments in housing development and transport infrastructure would please the building and construction sector, including the strong trade unions (Jensen 1990). [SØRENSEN E e TORFING 2019, pp. 228-229]
Based on the analysis presented earlier, it is possible to identify a number of contextual factors that were conducive to the conception and execution of the Finger Plan and which help to explain its success. The first factor has to do with the timing of the Finger Plan, which could not have been better. The imminent end of the German occupation generated a huge enthusiasm for planning in the new era of peace and prosperity which seemed to be just around the corner. The negative, oppressive irrationality of the Second World War was to be replaced by a positive, rational, and potentially liberating planning future. (..) [ The second conducive factor was the high degree of professional autonomy within the Danish welfare state, which allowed a new generation of skilled and visionary planners to initiate the planning process, formulate an ambitious and comprehensive plan, and slowly generate political support for their bold ideas. [SØRENSEN E e TORFING 2019, pp. 234-235]
A elaboração de modelos é um procedimento usual no processo de construção do conhecimento. Podemos descrevê-los como representações hiper-simplificadas da realidade que utilizamos para pôr em foco determinado aspecto ou relação que, em nosso estudo, supomos especialmente relevante. Eles nos ajudam a sintetizar o status de nossa compreensão dos fenômenos empiricamente observados e a formular novas hipóteses a serem submetidas à prova dos fatos e seus desenvolvimentos.
Modelos são representações do objeto de estudo segundo algum tipo de estrutura interna, isto é, um certo arranjo de componentes e relações estipulados pelos estudiosos como relevantes para os fenômenos sob exame. Significa (1) que tanto os “modelos” quanto as “estruturas” são construtos, vale dizer representações mentais mais ou menos estáticas que não devem, em hipótese alguma, ser confundidas como os objetos e fenômenos que pretendem representar; e que, portanto, (2) qualquer objeto, fenômeno ou processo nos oferece um número indeterminado de estruturas, que podemos generalizar em modelos, de utilidade distinta para distintos campos de estudo.
A formulação de modelos representativos de uma dada coleção de objetos, ou fenômenos, supõe a escolha das estruturas a considerar. Não há nenhuma razão para supor, por exemplo, que a malha radioconcêntrica seja um “melhor” modelo de cidade do que, digamos, um diagrama de figura-fundo. O primeiro baseia-se na estrutura espacial “rede primária de acessibilidade”, o segundo na estrutura espacial “área urbana edificada”. Assim como a malha radiocêntrica é a forma idealizada, ou modelo, da expansão radial da cidade a partir do centro, a figura-fundo é a forma idealizada, ou modelo, da tendência que tem toda cidade de repartir-se o solo em construído e não-construído. Não é possível dizer que o primeiro modelo é mais “correto”, ou “representativo da cidade” do que o segundo: eles contêm estruturas distintas, a serviço da exploração e explicação de distintos fenômenos. De modo análogo, um esquema da distribuição espacial dos usos do solo nas grandes cidades inglesas na segunda metade do século XIX não é um modelo mais representativo dessas mesmas cidades do que um esquema da distribuição espacial da residência por estratos sociais: também eles recorrem a distintas estruturas para auxiliar a resolução de distintos problemas ou, como objetos complementares, a resolução de um mesmo problema.
Dado que todo modelo é uma generalização de fenômenos e relações empiricamente observados, ou generalização hipótetica de fenômenos a ser submetida à prova dos fatos e seus desenvolvimentos, deduz-se que a todo modelo subjaz ao menos um esboço de teoria. Dizer, como faz Villaça a respeito de Hoyt, que seu modelo de estrutura urbana “não tem pretensão teórica” é uma contradição em termos. Se Hoyt não tivesse pretensão teórica não teria formulado um modelo: contentar-se-ia em apresentar seus mapas e o leitor que tirasse suas conclusões. Postular um modelo de organização espacial urbana implica reconhecer que o arranjo espacial dos elementos urbanos considerados se repete, ainda que com distintas configurações, no universo das cidades estudadas, ou seja, forma um padrão.
Ao formular seu modelo de organização urbana em setores de círculo, Hoyt converte a sua empiria em teoria - mais ou menos explícita e desenvolvida dependendo do apetite, ou do interesse, do autor. Ao abstrair em um modelo uma série de mapas de dados empíricos da localização residencial em n cidades norte-americanas, Hoyt está procedendo a uma generalização, que é o procedimento teórico elementar sem o qual não poderá passar às etapas seguintes, por exemplo a busca das forças geradoras desse padrão. A generalização de resultados empíricos em um modelo é, em si mesmo, uma assunção teórica: um mapa mental a postular que, satisfeitas certas restrições quanto, por exemplo, à época, tamanho, país etc, qualquer cidade há de exibir aquele padrão - hipótese confirmada, aliás, pelo uso que faz Villaça do modelo de Hoyt para as cidades brasileiras.
Se o diagrama de Hoyt, elaborado como generalização de dados de um certo conjunto de cidades norte-americanas na década de 1930, serve ao estudo da organização espacial das metrópoles brasileiras na década de 1990, Villaça está obrigado a reconhecer que, necessariamente, as cidades norte-americanas estudadas por Hoyt têm muito em comum com as metrópoles brasileiras estudadas por Villaça - do contrário seu modelo seria inservível como ferramenta de estudo.
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Burgess, Hoyt e Harris-Ullman são universalmente conhecidos como autores de "modelos de estrutura urbana", conceito que julgo conter uma armadilha epistemológica: capturada pelo irresistível fascínio dos “modelos”, a proto-história dos estudos da organização espacial da cidade moderna foi, a partir da publicação do artigo de Harris e Ullman intitulado “The Cities”, em 1945, muitas vezes reduzida a um debate bizantino sobre as virtudes e defeitos dos diagramas ali exibidos (Burgess 1925, Hoyt 1939, Harris-Ullman 1945) como síntese inconteste de uma linha de pesquisa geográfica que a rigor não existiu.
Todo esse empenho comparativo se choca com a recorrente falta de referências ao contexto das obras e às reais pretensões de seus autores, com a omissão da questão do que se entende, nos estudos urbanos, por “modelo” e “estrutura” e quais seriam sua utilidade e limitações.
Subjacentes a esses modelos estão processos e arranjos sociais fundamental, mas não exclusivamente, determinados por vantagens econômicas e de status social, sejam mensuráveis ou apenas percebidas como tal. A tipologia que a comanda não é a das edificações, mas a dos usos da terra, e sua lógica é locacional.
“Estes três conceitos de estrutura urbana não são diametralmente opostos uns aos outros. Cada conceito provavelmente tem alguma importância para explicar a estrutura de qualquer cidade. (..) Os conceitos de setores radiais e núcleos múltiplos obviamente levam em consideração um número maior de complicações que a interpretação das zonas concêntricas, mas a modificam ao invés de refutá-la. (..) no modelo de núcleos múltiplos são encontradas, em torno de cada núcleo secundário, as mesmas tendências básicas que a teoria das zonas concêntricas estabelecia para o centro da cidade (gradientes de aluguel, diferenciação no uso da terra etc.). As mesmas concepções teóricas gerais, como a tentativa de minimizar os custos de atrito tomada como princípio organizacional, são aplicáveis em grau variável a todas as três concepções de estruturas de uma cidade.” [RICHARDSON p.160]O estudo da organização espacial urbana demanda modelos sintéticos, como são os 3 modelos clássicos reunidos por Harris-Ullman em 1945, tanto quando uma bem-estruturada caixa de ferramentas, isto é, uma coleção de modelos parciais representativos de aspectos específicos da economia, geografia e história urbana.
"The internal structure of cities has proven to be a subject of extraordinary richness and of such complexity that only a modest beginning has been toward its understanding. [ALONSO 1964, p2]
"Se as cidades crescessem ao azar, o problema da criação, distribuição e mudança dos valores da terra seria insolúvel. Basta um exame superficial para estabelecer semelhanças entre as cidades e a investigação aprofundada demonstra que seus movimentos estruturais, por mais irregulares e complexos que pareçam, respondem a princípios definidos. [HURD 1903]
A expansão radial em todas as direções como princípio diretor do crescimento urbano parece ter sido originalmente postulada em 1903 pelo economista, avaliador e analista de crédito hipotecário Richard Hurd em seu livro Principles of City Land Values.
Cities originate at their most convenient point of contact with the outer world and grow in the lines of least resistance or greatest attraction, or their resultants. (..) Growth in cities consists of movement away from the point of origin in all directions, except as topographically hindered, this movement being due both to aggregation at the edges and pressure from the centre.
Segundo diz o prefácio, à falta de referências confiáveis sobre o tema do valor da terra urbana Hurd se propôs a “esboçar uma teoria da estrutura das cidades” e “estabelecer a escala de valores médios do solo criada por seus usos, equipamentos e serviços”.
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O princípio da expansão radial-concêntrica das cidades foi expresso em 1925 pelo sociólogo Ernest Burgess, professor-pesquisador da Universidade de Chicago, no capítulo 4 do livro The City:Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment. Seu objetivo, como indica o título citado, não era construir uma teoria sobre a estrutura urbana, mas situar no espaço o fenômeno urbano da “invasão-sucessão” de zonas residenciais socialmente estruturadas ao redor do centro da cidade, fonte dos problemas sociológicos que cuidava de investigar:
Os típicos processos de expansão urbana podem ser adequadamente ilustrados por um conjunto de círculos concêntricos, numerados para indicar tanto a sucessão das zonas como a sua diferenciação. [ O diagrama [anexo] é a representação idealizada da tendência das cidades e metrópoles se expandirem radialmente a partir da área central de negócios - no mapa, o “Loop" (I).
Poucas linhas abaixo, Burgess admite o caráter irregular, desigual ou assimétrico da expansão radial-concêntrica:
“É ocioso dizer que nem Chicago nem qualquer outra cidade se encaixa perfeitamente nesse esquema ideal. Aqui, complicações são introduzidas pela situação lacustre, pelo trajeto do rio, pelas ferrovias, por fatores históricos da localização industrial, pela relativa resistência das comunidades à invasão etc.”
Em seu texto “Urban Areas”, de 1929*, Burgess destacará o arruamento ortogonal imposto pela Land Ordinance de 1785 às terras conquistadas a oeste, vale dizer o fator regulatório, como um complicador adicional do esquema de zonas urbanas concêntricas.
E intuindo, quem sabe, que o “centro” a partir do do qual se dá a “expansão radial em todas as direções” supõe uma periferia urbanizada, ou em vias de urbanização, já existente ao seu redor, Burgess postula, alguns parágrafos adiante, o princípio da “descentralização centralizada” das grandes cidades dos EUA:
“Uma boa medida da relação da centralização com os demais processos da vida urbana é a entrada diária de mais de meio milhão de pessoas no CBD de Chicago. Mais recentemente surgiram, nas zonas periféricas, sub-centros satélites que não representam, ao que parece, o “esperado” renascimento dos bairros, mas a fusão das comunidades locais em uma unidade econômica maior. A Chicago de ontem, um ajuntamento de núcleos rurais e colônias de imigrantes, vive hoje um processo de reorganização rumo a um sistema descentralizado centralizado de comunidades locais e sub-centros visível ou invisivelmente dominados pelo CBD”.
A fórmula da “descentralização centralizada” corrige, ou ajusta, a ideia original meramente intuitiva de que as cidades se expandem “do centro para a periferia”. Por que não dizer que as cidades se expandem da periferia par o centro? “Descentralização centralizada” significa que periferia e centro se expandem reciprocamente, aquela em extensão, este em densidade.
“This chart represents an ideal construction of the tendencies of any town or city to expand radially [in all directions] from its central business district". (Burgess 1925-29)
A fórmula retoma, em outras palavras e com menos ambições teóricas, o postulado de Hurd de que a expansão urbana é simultaneamente central e axial.
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Outro efeito típico do "conteúdo relacional e cíclico/histórico dos usos-localizações" é o binômio residencia-indústria - proximidade que é vital para o trabalhadorado fabril e anátema para "as burguesias" (apud Villaça). (..)
Outras relações podem ser encontradas na literatura:
O comércio grossista tem interesse em permanecer bem próximo aos bancos, estando estes, igualmente, atraídos pelo porto. Exercem uma espécie de atração recíproca uns sobre os outros. [SANTOS, M (1959) O Centro da Cidade de Salvador P. 78]*
A expansão radial tem um caráter desigual, no espaço e no tempo, resultante (1) das irregularidades geomórficas e topográficas do espaço, (2) da diferença estrutural entre eixos radiais "exógenos", isto é, oriundos das relações econômicas do assentamento com o espaço regional circundante, e os eixos radiais "endógenos", aqueles gerados pelos processos de expansão da própria cidade; (2a) dos obstáculos à expansão erguidos pelos próprios assentados, (3) da multiplicidade dos usos do solo urbano com suas respectivas exigências de acessibilidade, (4) da natureza relacional dos usos-localizações, (5) da desigual capacidade de oferta de renda pelo solo-localização etc.
“É ocioso dizer que nem Chicago nem qualquer outra cidade se encaixa perfeitamente nesse esquema ideal. Aqui, complicações são introduzidas pela situação lacustre, pelo trajeto do rio, pelas ferrovias, por fatores históricos da localização industrial, pela relativa resistência das comunidades à invasão etc.”[Burgess 1925]
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Auto-segregação espacial do mercado de residências", fundada no desejo de ascensão social. (Hurd, Hoyt, Sabatini, Abramo)
the basis of residence values is social and not economic —even though the land goes to the highest bidder— the rich selecting the locations which please them, those of moderate means living as near by as possible, and so on down the scale of wealth, the poorest workmen taking the final leavings, either adjacent to such nuisances as factories, railroads, docks, etc., or far out of the city. (..) The main consideration in the individual selection of a residence location is the desire to live among one's friends or among those whom one desires to have for friends; for which reason there will be as many residence neighborhoods in a city as there are social strata. (..) these social considerations explaining the strong pressure in all cities towards the best residence sections. The contrast should be noted that business property is selected by the man from an economic standpoint, and residence property by the woman from a social standpoint. [!!!] Social growth and pressure is upwards from class to class, all ranks being continually recruited from below —as well as dropping members from time to time— and the ultimate aim in residence location is to be as close as possible to those of the highest social position [HURD 1903 p. 77-78]
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Múltiplos centros e gradientes de preços
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No capítulo introdutório de seu célebre estudo de 1939 sobre a estrutura e crescimento dos bairros residenciais nos EUA, Homer Hoyt faz uso da seguinte citação:
"(..) vistas do alto, as cidades norte-americanas são uma coleção de arruamentos reticulados de vários tamanhos, formas e níveis de edificação, com pouquíssimas irregularidades [...] uma monotonia mecânica, estereotipada e desprovida de imaginação onde raramente se enxerga algo parecido com um padrão orgânico”. ["Our Cities, Their Role in the National Economy", Report of the Urbanism Committee to the National Resources Committee, (Washington, D. C., June 1937), p. 5.]
It hardly needs to be added that neither Chicago nor any other city fits perfectly into this ideal scheme. Complications are introduced by the lake front, the Chicago River, railroad lines, historical factors in the location of industry, the relative degree of the resistance of communities to invasion, etc.
“O plano reticular foi levado para o Oeste com os pioneiros, dado que era o método mais simples de dividir o território. Sua vantagem particular era que uma nova cidade podia ser planejada nos escritórios das imobiliárias do Leste e as terras vendidas sem que nem comprador nem vendedor tivessem nunca visto o lugar". (Britannica 1963 V 5 p 816, “City Planning”)Temos aqui o fundamento histórico da flagrante contradição, nas grandes cidades do Meio-Oeste norte-americano, entre o arranjo sócio-espacial radial, determinado pela economia das localizações urbanas e a malha urbana básica essencialmente reticulada, determinada pela economia da ocupação do solo. [individual vs. coletivo]
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A ideia de que Burgess formulou um "modelo radioconcêntrico" de organização espacial urbana é um mito construído por seus "sucessores" na "escola de Chicago", Hoyt e Harris/Ullman, baseado na descontextualização do esquema gráfico por ele utilizado para ilustrar o processo de "invasão-sucessão" de zonas urbanas na cidade de Chicago. A longevidade desse mito repousa, por outro lado, na força do verdadeiro "modelo" por ele formulado - tampouco com essa intenção, diga-se de passagem -, o da "expansão radial desigual das cidades em todas as direções", que os modelos posteriores de Hoyt e Harris/Ullman não fizeram senão, cada um à sua maneira, confirmar e enriquecer.
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"Com o incremento natural da população, foi a cidade [do Rio de Janeiro] descendo das encostas da colina e estendendo-se pelas várzeas que a rodeavam, sobretudo pela orla da praia que cinge o regaço mais abrigado da formosa baía, e corre em face à Ilha das Cobras. Aí, fronteiro ao ancoradouro dos navios, com o fomento do comércio, se ergueram as tercenas e os cais, onde não tardaram a agrupar-se em volta das casas das alfândegas e dos contos as lojas e armazéns dos mercadores. Após essas, embora já mais arredadas da beira-mar, vinham as outras classes trazidas pelo desejo de estarem mais próximas ao centro do povoado, onde é mais ativo o tráfego." (José de Alencar, Alfarrábios, 1873)Recuando ainda mais longe no passado:
"Revisando-se os trabalhos básicos com uma abordagem sociotopográfica, percebe-se uma clara diferenciação física, social e funcional do espaço urbano baixo-medieval, que torna o fator localização um dado extremamente significativo e muito mais valioso e rico do que o previsto nos modelos anglo-saxões mencionados. Ao contrário do postulado por Vance, surge uma nítida diferenciação econômico-espacial, variável de cidade para cidade, com bairros “ricos, médios e pobres”. A classificação espacial por grandes áreas em função do grau de riqueza média revela esquemas “centro-periferia”: o aumento da distância ao centro traz uma manifesta redução dos níveis médios de riqueza." (Itálicos no original). [ESPUCHE A G e BASSOLS M G, “’Transició’ i ciutat: les transformacions de l’estructura de l’espai”, em Revista d’Historia Moderna – Manuscrits No. 4/5, Abril 1987]
A indústria da urbanização de fins do século XIX materializa a combinação, no âmbito espacial das cidades coloniais-imperiais, de novas circunstâncias sócio-econômicas regionais, nacionais e globais de que toda grande cidade brasileira obviamente faz parte, mas está longe de ser o núcleo motor: aumento significativo da população, elevação do rendimento de um número significativo de famílias e disponibilidade de capitais ávidos por valorização.
A aurora da indústria da urbanização coincide não com a elevação do nível de vida do trabalhadorado da indústria, comércio e serviços, que só se tornará um fator decisivo na Europa e Estados Unidos posteriores à II Guerra Mundial, e ainda mais tarde no Brasil, mas com a formação e expansão da pequena-burguesia urbana: lojistas, prestadores de serviços e, muito especialmente entre nós, funcionários públicos e militares.
O trabalhadorado nascente participa da transição urbana brasileira por meio da mão de obra migrante - substancialmente mais qualificada e melhor remunerada do que os serviçais egressos da escravidão - para a qual a nascente indústria dos loteamentos dispõe de produtos estrategicamente situados ao longo dos corredores ferro-portuários que ligam as capitais, física e economicamente, a sua interlândias mais dinâmicas e ao restante do país.
Grosso modo, a conversão dos núcleos urbanos pré-capitalistas em metrópoles radiadas equivale à conversão, pela via da indústria da urbanização - parcelamentos, serviços urbanos, construção civil e crédito -, das propriedades rurais circundantes em bairros residenciais, dos antigos núcleo rurais arraiais em subcentros, e, consequentemente, da própria “cidade” em “centro”.
Ao contrário do que ocorre com a expansão do núcleo colonial-imperial, a formação da metrópole radiada se dá de fora para dentro, saltando a fronteira da “cidade” para, desde sua periferia semi-rural, soldar-se pouco a pouco ao núcleo original que ainda se expande lentamente. Refluindo sobre o núcleo colonial, a nova metrópole radiada o revoluciona de acordo com suas necessidades, impondo-lhe novos critérios técnicos e estéticos.
Na urbanização de mercado, o arranjo sócio-espacial e a distribuição dos meios de transporte público são conduzidos, braço a braço, pela capacidade de oferta de renda dos demandantes de solo-localização, donde a relação predominante, ainda que desigualmente distribuída na matriz radioconcêntrica, entre o complexo principal de comércio-serviços e os agrupamentos, ou bairros, residenciais.
A forma radiocêntrica da rede de ruas, como em Porto Alegre, é um desenvolvimento urbano particular, mais provavelmente resultante da expansão baseada em parcelamentos de solo sucessivos, de escala relativamente modesta, ao longo dos antigos caminhos de acesso ao núcleo pré-moderno; vale dizer, de uma apropriação fragmentária do território circundante ao núcleo pré-moderno para fins da produção capitalista da cidade, na forma do loteamento das terras da nobreza declinante não sujeito a nenhum arranjo espacial pré-determinado, como são tipicamente a Barcelona do eixample de Cerdá e a Chicago parcelada e arruada, desde muito antes de sua fundação, em 1833, por dispositivo legal federal (Land Ordinance of 1785).
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“It hardly needs to be added that neither Chicago nor any other city fits perfectly into this ideal scheme. Complications are introduced by the lake front, the Chicago River, railroad lines, historical factors in the location of industry, the relative degree of the resistance of communities to invasion, etc” [Burgess 1925]
A despeito de seu sucesso e inequívoca utilidade para o estudo da organização espacial urbana, os modelos espaciais da tradição thuneniana, desenvolvidos no âmbito da economia espacial neoclássica nos legaram uma importante lacuna: "dão por assentado algo que queremos explicar - a formação do centro comercial urbano" [SILVA].
De esa restricción proviene el fenómeno capital de la geografía urbana que es la centralidad, es decir el efecto colectivo, o generalizado, del esfuerzo de cada agente económico para minimizar sus costos de desplazamiento, incluso en una acepción más amplia de costo no monetario. Todos quieren “estar lo más cerca de" las cosas a que atribuyen valor, o de que tienen necesidad, es decir de los recursos socialmente producidos - más o menos valorados por sus atributos naturales. La centralidad es la relación espacial que el costo de la distancia establece entre demandantes y proveedores de productos y servicios de uso o consumo rutinarios.
Para un conjunto de objetos iguales, "lo más cerca de" implica la disposición en anillos sucesivos "alrededor de". En un modelo territorial sencillo de asentamiento de residentes de cara a un mercado como suma de decisiones individuales, "lo mas cerca de" implica situar-se cada uno a lo largo de cuantos caminos puedan existir "a partir de", generando procesos expansivos de tendencia radial. La accesibilidad entra en el esquema.
Y, a medida que la distancia económica a tierras ubicadas entre los caminos radiales pueda ser menos grande que a la próxima parcela disponible a lo largo del radio, ocurre la ocupación progresiva de los intersticios, siguiendo ramificaciones que, con el paso del tiempo, tienden a fusionarse como anillos más o menos regulares de ocupación alrededor del "centro".
La contracción del espacio que supone la centralidad en la moderna economía de mercado es procesada, compensada y de esa forma continuamente reproducida, en el marco del propio mercado de productos inmobiliarios y hasta donde lo permiten las limitaciones técnicas y normativas existentes en un dado momento, por la intensificación del uso del suelo mediante la edificación en altura, que multiplica las unidades inmobiliarias erguidas sobre cada parcela, y el correspondiente fraccionamiento jurídico de la propiedad, que propicia a su titular la multiplicación de las rentas de localización.
O que se segue é um modelo territorial simples da conversão acelerada, por força de um boom de preços de certo produto agrícola, de um pequeno assentamento de famílias de trabalhadores rurais em núcleo urbano. Sua finalidade é destacar a hipotética inter-relação do custo da distância e da economia de aglomeração no processo de formação e desenvolvimento das centralidades urbanas.
O modelo representa um núcleo agrícola em expansão ao redor de um empório [a] situado no entroncamento de três caminhos, onde se abastecem as famílias trabalhadoras. Os rendimentos das famílias provêm do trabalho nas lavouras circundantes e de serviços prestados a outras famílias da própria comunidade, executados por todos os seus membros em idade laboral. O deslocamento às lavouras é feito a pé, ou por bicicleta, sendo aleatórias as diferenças de tempo de percurso relativamente ao local de residência. Não há, portanto, custo monetário de transporte, mas o tempo despendido no suprimento da unidade (compras e serviços) é perda de tempo de trabalho remunerado, portanto de rendimento das famílias. Todas as residências têm tamanho similar e pertencem às empresas agrícolas proprietárias das terras, às quais se pagam aluguéis. O empório paga aluguel a um proprietário residente na grande cidade mais próxima.
A rápida expansão radial-concêntrica do assentamento e a concomitante formação do centro urbano, que marcam a transição do núcleo rural à categoria de “cidade”, trarão consigo a geração de novos empregos no comércio, serviços e pequena indústria centralmente localizados e o gasto monetário dos trabalhadores com serviços de transportes. A acessibilidade das firmas aglomeradas no centro urbano lhes proporcionará, então, o benefício adicional da máxima oferta de mão de obra ao mínimo custo de transporte, fatores de estabilização do preço da força de trabalho.
Chamo de economia primária de aglomeração o benefício que a contiguidade proporciona às firmas de comércio e serviços de varejo por efeito da conversão dos custos diretos e indiretos de deslocamento poupados aos residentes de um assentamento urbano em gastos de consumo. À minimização do dispêndio coletivo com deslocamentos proporcionado pela disposição radial-concêntrica do assentamento corresponde - descontada a renda paga em aluguéis - a maximização das receitas do comércio e serviços de varejo aglomerados em seu centro.
A hipótese sócio-histórica derivada do modelo econômico-espacial aqui proposto é a de que a interdependência entre o custo econômico da distância e a economia primária de aglomeração, assim como a configuração espacial radial-concêntrica que corresponde a essa relação, subjazem ao desenvolvimento de qualquer cidade na época moderna [2] ainda que não se apresentem, em sua forma pura, em nenhuma, dentre outras razões a de que os processos urbanos se dão sobre uma base material de grande rigidez e longa duração - arruamento, estrutura parcelária, casario - herdada dos períodos precedentes.
Apontamentos: HURD 1903 - crescimento urbano axial e central
Para além da imensa riqueza de observações históricas, geográficas, urbanísticas e até arquitetônicas que este profundo estudioso do parque imobiliário das grandes cidades estadunidenses de inícios do século XX tem a oferecer, e que justifica por si só a leitura atenta do material aqui reunido, o postulado de que o crescimento das cidades se dá necessariamente sob aquelas duas formas combinadas é, provavelmente, a mais instigante e profícua contribuição de Hurd ao estudo da organização espacial urbana.
Esta figura é uma representação ideal da tendência que tem toda cidade de se expandir radialmente a partir de seu distrito central de negócios – no esquema, ‘The Loop’ (I). [2]
O problema reaparece, na década de 1960, no modelo alonso-thuneniano da economia espacial, tal como apontado pelo professor Correia da Silva, da Universidade do Porto, num trabalho de doutoramento do ano de 2004 intitulado “Space in Economics — A Historical Perspective”:
A relevância contemporânea do modelo de Von Thunen reside na sua adaptação à economia urbana, que permitiu o estudo da renda urbana e suburbana e da localização das famílias e atividades econômicas nas cidades. (..) A característica fundamental da economia urbana refletida no modelo é a necessidade que têm as famílias de ir ao centro para trabalhar usando um sistema radial de transportes. (..) Um defeito [fault] dessa abordagem é dar por resolvido [it assumes] algo que queremos explicar: a existência do centro comercial urbano [urban central market].[3]
Com uma redundância que talvez não seja casual, Batty assim expressa, em recente artigo aqui divulgado sobre as cidades lineares, a fórmula geral de Burgess nos termos da economia espacial alonso-thuneniana:
“As cidades tendem a crescer ao redor de algum centro, em zonas concêntricas de uso do solo ordenadas de acordo com sua capacidade de pagar aluguel [ofertar renda], ligadas ao núcleo por meio de rotas radiais bem definidas que convergem para o centro”.[4]
“O princípio da aglomeração nasce nas aldeias rurais e povoados que vivem dos camponeses ou agricultores da região. (..) aos domingos, dia de descanso, o comércio e praças de mercado desses povoados se abrem para que os habitantes rurais venham comprar alimentos, insumos agrícolas e buscar serviços de saúde ou mecânica automotriz. (..) Assim se desenvolve uma cidade a partir de um pequeno povoado dotado de certa dinâmica econômica. [6]
"Assim, um consumidor que tenha de se deslocar a um lugar central para adquirir um bem terá menos dinheiro disponível do que um que viva no próprio lugar central, porque tem de pagar o custo do transporte. Ficará, assim, sujeito a comprar menos. Este efeito de fricção da distancia, causado pelo custo do transporte (pressuposto 1) provoca o decréscimo da procura com a distância ao lugar central." [7]
O fundamento da configuração tendencialmente radio-concêntrica da cidade capitalista madura é, portanto, o próprio processo de produção-distribuição-consumo de bens e serviços. As famílias se aglomeram o mais próximo possível dos fornecedores e empregadores, e estes o mais próximo possível do conjunto das famílias, para obter o maior benefício, respectivamente, de seu trabalho e de seu capital - sujeitando-se, por conseguinte, a pagar mais aluguel. Espécie de imposto privado sobre o privilégio de ocupar as localizações urbanas mais centrais e proveitosas, a renda da terra urbana é, como eficazmente demonstrado pelo modelo alonso-thuneniano da distribuição dos distintos usos, a medida e o princípio regulador de sua escassez constitutiva.
Dado que a produção de riqueza na formação social capitalista supõe, e é tanto maior quanto maior for o consumo de mercadorias, materiais e imateriais, segue-se que a aglomeração radial-periférica dos residentes urbanos ao redor da aglomeração central dos varejistas e prestadores de serviços ou, mais simplesmente, a configuração tendencialmente radioconcêntrica das cidades em expansão, é, em si mesma, um dispositivo espacial facilitador e acelerador do processo de acumulação do capital em geral, uma máquina de economia social sobre a qual irá se desdobrar, diversificar e expandir - a ponto de se converter em seu contrário, uma máquina de deseconomia social - a organização espacial intrinsecamente desigual da grande metrópole contemporânea.
[1] VILLAÇA Flavio, Espaço Intra-Urbano no Brasil. FAPESP São Paulo 2001
http://shora.tabriz.ir/Uploads/83/cms/user/File/657/E_Book/Urban%20Studies/park%20burgess%20the%20city.pdf
https://www.fep.up.pt/docentes/joao/material/space.pdf
https://link.springer.com/article/10.1007/s43762-022-00036-z
[6] BORRERO OCHOA O, Economía Urbana y Plusvalia del Suelo. Bogotá: Bhandar Editores 2018, p. 65.
[7] [BRADFORD M G e KENT W A, Geografia Humana e Suas Aplicações (Tradução do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Supervisão de Raquel Soeiro de Brito e Paula Bordalo Lema)
A estrutura básica da grande cidade moderna é um arranjo sócio-espacial derivado da disputa incessante entre consumidores e fornecedores por vantagens individuais de localização, de tal maneira que à economia coletiva do “crescimento residencial axial regulado pelo princípio da [máxima] acessibilidade”, que traduzo como mínimo custo generalizado de deslocamento ao(s) centro(s) comercial(is), corresponde, descontado o montante pago em aluguéis, o benefício coletivo do “crescimento central dos negócios regulado pelo princípio da [máxima] “proximidade”, que assimilo ao conceito econômico de economia de aglomeração.
Dos centros comerciais de bairro aos shopping-centers aos grandes complexos de serviços, comércio e transportes, trata-se, em todos os casos, de recriar os centros urbanos, lugares históricos das economias de aglomeração, em condições “controladas” que maximizem, do ponto de vista das firmas e - supostamente - de seu público-alvo, as vantagens combinadas da urbanização e da localização.
Rua comercial, shopping center, centro urbano moderno e complexo comercial-financeiro são, pois, distintas formas históricas do fenômeno quintessencialmente urbano da economia de aglomeração – benefício que um dado conjunto de firmas extrai de sua relação de proximidade espacial.
Materializadas em estruturas físicas sujeitas à temporalidade característica da ocupação e usos da terra, essas formas históricas, ainda que sempre concorrentes e por vezes excludentes no longo prazo, são em geral concomitantes, e até complementares, testemunhas do caráter constitutivamente desigual do desenvolvimento econômico em geral e urbano em particular.
Fica a pergunta: por que razão a categoria “economia de aglomeração” é o fundamento dos centros de comércio "planejados" que chamamos de shopping centers, mas não dos centros “orgânicos”, mais exatamente históricos, das cidades?O centro comercial da cidade planejada
exibe, via de regra, um grau de concentração espacial muito menor do que aquele
que geralmente encontramos nas cidades de crescimento “orgânico”. Parece
razoável supor que a “desordem” do centro urbano não planejado, caracterizado
pelo máximo grau de concentração espacial dos negócios, a começar do comércio
varejista, é sensivelmente mais eficaz do ponto de vista do crescimento
econômico que a ordem urbana determinada pelos “projetos de cidade”, com ruas
largas, canteiros centrais, quadras regulares e lotes relativamente grandes.
Em termos simples, uma hora de caminhada pelo centro comercial compacto de uma
cidade “orgânica” de, digamos 200 mil habitantes, permite ao residente percorrer
uma quantidade e variedade substancialmente maiores de lojas e prestadores de serviços
do que, por exemplo, em uma cidade “planejada” de igual tamanho e padrão de
vida, como Erechim RS, ou Chivilcoy, no pampa bonaerense.
É certo que a intensidade do
efeito-aglomeração em um centro urbano depende muito mais da posição da cidade
no crescimento regional e nacional do que da densidade de ocupação do solo central: a trama regular não parece ter constituído obstáculo à formação acelerada, no
último quarto do século XIX, do Loop de Chicago como um dos mais potentes centros
urbanos de todo o planeta.
Será, de fato, a densificação dos centros
urbanos sobre a base do tecido urbano herdado do passado pré-capitalista mais
eficiente para os negócios e para o crescimento econômico urbano do que a densificação
propiciada pelos planos racionalistas da época do urbanismo dos traçados?
É recorrente a ideia de que a largura das ruas sempre implica em valorização devido à maior quantidade de tráfego que acomoda. Mas numa rua comercial, a largura é praticamente irrelevante (..). Ainda que alguns negócios prefiram locais abertos, as ruas comerciais estreitas têm a vantagem da comunicação facilitada entre os dois lados, principalmente quando a largura da rua não limita a altura dos edifícios [HURD R, Cap IV Ground Plan of Cities]
Quando,
nos primeiros vinte anos deste século, o quadro imobiliário do centro de nossas
cidades foi totalmente renovado com a demolição do colonial e a implantação do
neoclássico e do ecletismo, não houve
alteração na estrutura urbana, pois esses centros não perderam sua importância,
sua posição, natureza nem localização. [VILLAÇA Flavio, Espaço Urbano no
Brasil] [Destaque PJ]
As duas primeiras décadas
do século XX marcam, no Brasil, o nascimento das metrópoles capitalistas, cujo traço distintivo é a urbanização de mercado: de um lado as empresas loteadoras, contrutoras e prestadoras de serviços públicos urbanos, de outro uma classe média ascendente - comerciantes, militares, funcionários, especialistas, artesãos e trabalhadores qualificados - capaz de arcar com custos de transportes e financiamentos a longo prazo.
Por não considerar o
salto qualitativo realizado na transição da urbanização mercantil-escravista
para a urbanização capitalista, Villaça perde de vista que é assim que nasce o
“centro” no que até então era “a cidade”. Embora não perca a sua
"localização, importância e posição", o velho núcleo
colonial-imperial perde, sim, a sua “natureza”: sobre a cidade que comanda
o campo ao seu redor, nasce o centro que comandará a metrópole. O novo centro
da urbanização de mercado começará, então, a se estender na direção da migração
dos abastados e a se desdobrar em subcentros em todas as direções. Em algum
deles poderá se fixar, muito mais tarde, o novo polo financeiro da metrópole.
É a indústria da urbanização, ou urbanização de mercado, que dá conteúdo e forma à urbe radiocêntrica. É ela que converte as chácaras semi-rurais em bairros residenciais, os antigos caminhos rurais em vetores radiais de expansão, os aldeamentos satélites estrategicamente situados em embriões de futuros subcentros e, finalmente, a própria “cidade” em “centro”! - uma mudança geográfica radical e meteórica na escala temporal da modernidade urbana, portadora de uma percepção coletiva do espaço inteiramente renovada ainda que pouco acessível aos hábitos mentais das antigas gerações: sua transposição para a linguagem corrente levaria ainda algumas décadas para se completar.
*
O uso do termo "cidade" para designar o que hoje chamamos "Centro está registrado em um sem-número de obras literárias da segunda metade do século XIX e primeiro quarto do século XX.
José de Alencar 1870:
“Naquela mesma tarde em que o deixamos na sua casa de Botafogo, terminado o jantar, mandou aprontar o tílburi e voltou à cidade. Seu aparecimento àquela hora na Rua do Ouvidor causou estranheza: um leão de raça, como ele, não passeia ao escurecer, sobretudo no centro do comércio, onde só ficam os que trabalham.” [Alencar, José de. A Pata da Gazela (1870), em Obras Completas de José de Alencar II: Romances Urbanos p. 454. Edição do Kindle.]
Aluísio de Azevedo (1890):
"Uma verdadeira patuscada esse passeio à cidade! (..) Ninguém tomou bonde; e por toda a viagem discutiram e altercaram em grande troça, comentando com gargalhadas e chalaças gordas o que iam encontrando, a chamar a atenção das ruas por onde desfilava a ruidosa farândola. [Azevedo, Aluísio. O Cortiço (1890). Em Obras Completas de Aluísio Azevedo II: Romances vol. 2 (1889-1901) Edição do Kindle.]
Em “Maria Cora”, conto de Machado de Assis ambientado no Rio de Janeiro de 1893, o narrador-protagonista Correia, que reside numa casa de pensão no Catete, diz:
“De manhã tinha o relógio parado.
Chegando à cidade, desci a Rua do Ouvidor, até a da Quitanda
(..)”
*
Ainda na minha infância, na Niterói na década de 1960, meus pais diziam “vamos à cidade”. O ônibus 30 era a linha Martins Torres-Cidade.
Embora tardia relativamente aos fatos, a plena conversão
etimológica da “cidade” em “Centro” resulta de uma “revolução semântica” fundada
na mudança de percepção da estrutura do espaço em que se vive: não mais uma
coleção de arraiais ao redor da cidade, mas uma única urbe expandida por
justaposição de parcelamentos lindeiros a vias radiais servidas por transportes
mecânicos, que tudo ligam ao que agora é “centro”.
*
Ao descrever o processo de formação do centro urbano em algumas das metrópoles estudadas em seu Espaço Intra-Urbano no Brasil, Villaça deixa claro, com profusão de detalhes e insaites analíticos, que em nenhuma delas a centralidade urbana pré-capitalista, ou da metrópole nascente, se materializava num complexo designado “Centro”, mas em um conjunto de funções centrais (portuária, comercial, político-administrativa) simbolicamente representadas pelo “passeio comercial” frequentado pela burguesia em ascensão: no Rio de Janeiro a "Rua do Ouvidor", em Porto Alegre a "Rua da Praia", em Belo Horizonte a "Rua da Bahia".
De especial interesse nessa discussão é o caso de Salvador, assim descrito por Milton Santos na "Nota Prévia" ao seu ensaio de 1959 O Centro da Cidade de Salvador:
O crescimento recente da cidade e
a expansão de suas atividades conduziram à modificação da fisionomia do centro,
provocando o aparecimento de grandes edifícios, construídos nos espaços vazios,
ou substituindo velhas casas. É a esse conjunto que os baianos chamam "A
Cidade", quando se referem à parte alta, e "O Comércio", quando
falam da parte baixa do centro de Salvador. É aí que a vida urbana e regional
encontra o seu cérebro e o seu coração." [SANTOS p 20]
Mais recentemente, Adriana Capretz B Silva (2006) assim descreveu a relação entre o Núcleo Colonial Antônio Prado, fundado em 1887, e o núcleo urbano original de Ribeirão Preto:
Havia três
acessos do núcleo colonial para o núcleo urbano já existente, que era chamado
de “cidade” (..). A Sede [área verde da figura abaixo] (..) foi concebida com a
finalidade de constituir um prolongamento da “Cidade” e, por este motivo, esses
lotes eram denominados “urbanos”.
O nome "Cidade Nova" tem registros que remontam ao período do reinado de D João VI. Até o início do século XIX, a região era um alagadiço que servia de rota de passagem entre o Centro e as zonas rurais da Tijuca e São Cristóvão. Com os aterros feitos com a intenção de melhorar esta travessia, surgiu o projeto de impulsionar o crescimento da cidade para a área, vindo daí o nome. [Isto se deu, concretamente, com o Decreto de 26 de abril de 1811, firmado pelo então Príncipe Regente. O diploma (..) estabelece (..) isenções do imposto da décima para novas edificações residenciais, «nos terrenos situados na Cidade Nova [...] e em qualquer outro lugar pantanoso». (https://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade_Nova_(Rio_de_Janeiro) (Edição 03-09-2022)
Observe-se na passagem acima que seu autor, inadvertidamente, descreve a Cidade Nova como um lugar situado entre "o Centro e as zonas rurais da Tijuca e São Cristóvão". Ora, numa época em que Tijuca e São Cristóvão eram zonas rurais, não existia "Centro"! Existia a "cidade", razão pela qual a urbanização referida no Decreto de abril de 1811 se chama "Cidade Nova".
Ou seja, passamos de uma longa transição em que o Centro ainda era dito "a cidade" para uma época em que a cidade colonial-imperial pré-capitalista é referida como "Centro"!
E não se diga que é porque se trata de um texto não-acadêmico. No capítulo "The Internal Structure of the City: the central area" de sua obra-magna de 1983 An introduction to urban historical geography, o geógrafo Harold Carter, embora parta do princípio inquestionável de que o centro comercial tal como o conhecemos não existia nas cidades baixo-medievais e renascentistas, nem por isso deixa de utilizar recorrentemente o termo "centro" para designar os edifícios, e a respectiva área urbana, de onde se exercia o "controle político e religioso" sobre a cidade - sem ao menos um esboço de discussão sobre o fenômeno da "centralidade".(..) the city was dominated by the centres of political and religious control. Castle, or town hall, and cathedral or church, were the major buildings and retail trade only incidental to these formative elements. [CARTER Harold, An Introduction to Urban Historical Geography. London; Baltimore, Md. : E. Arnold 1983, p. 150]
https://archive.org/details/introductiontour0000cart/page/n6/mode/1up
*
Condomínios horizontais periféricos e condomínios verticais centrais destinados a demandantes da mesma faixa de oferta de renda manifestam simultaneamente, cada um à sua maneira, relativamente aos demandantes de menor capacidade de oferta de renda, as regras do menor custo de atrito.
Se a ascensão da burguesia capitalista no país recém saído da escravidão acentua o fosso social existente entre os mais ricos e os mais pobres, criando desde a origem contrastes urbanos que alcançam os dias de hoje, não é menos certo que a urbanização de mercado, e a organização sócio-espacial que dela emerge, supõem um espectro de faixas de rendimento familiar que abrange todas as classes sociais: capitalistas, latifundiários residentes na cidade, (restos do) patriciado, pequena burguesia urbana e rural e parte do trabalhadorado.
A existência, nas grandes metrópoles, de enclaves ou setores urbanos mais ou menos nitidamente segregados pela raça, etnia, nacionalidade e classe social não nega, embora lhe acrescente complexidade, o fato de a organização sócio-espacial urbana ser primordialmente determinada pela capacidade de oferta de renda das empresas e famílias pelo solo-localização - ainda que mediada pelo fenômeno sociológico do agrupamento territorial de famílias que se veem como semelhantes. [Abramo, Sabatini]
Na moderna economia de mercado, a primazia do dinheiro é capaz de operar maravilhas sociológicas como transformar, da noite para o dia, desprezíveis bandidos saídos das fileiras do lumpensinato urbano em respeitáveis burgueses com livre acesso à segurança bancária e à fina flor da sociedade da finança.
As expressões camadas de alta renda e burguesias foram utilizadas como sinônimos. Por burguesias entende-se tanto a pequena, média e alta burguesias como as burguesias industrial, mercantil ou financeira. [Quando houve necessidade de separar classes dentro desses grandes conjuntos, utilizaram-se expressões como alta burguesia e classe média. (..) Consideramos que num trabalho da amplitude deste (..), as diferenções entre esses conceitos poderiam ser minimizadas sem prejuízo da análise. [p.14]
O urbanismo é a arte e a técnica de construção de urbanizações, e até cidades inteiras, com raízes que alcançam um passado milenar; mas é também, ouso dizer, uma ciência na acepção moderna do termo, ainda que inexista nesse sentido como área formalmente constituída: a ciência de como as cidades se formam e transformam independentemente dos desígnios, planos e realizações de construtores, arquitetos, filósofos, engenheiros, urbanistas, planejadores e formuladores de políticas urbanas, subordinados todos, a cada época e lugar, às exigências, possibilidades e contradições próprias do regime social que as constroem.
A cidade "moderna", vale dizer a cidade da formação social capitalista, é produzida industrialmente por um consórcio mais ou menos explicito, e prenhe de contradições, entre o Estado, que provê a infraestrutura e, eventualmente, solo público, e o capital privado, que constrói as edificações, opera boa parte dos serviços públicos e explora a renda da terra que eles valorizam.
Esta proposição assumidamente reducionista visa estabelecer o contexto em que se consolida, em meados do século XIX, a técnica do urbanismo, herdeira da "arte urbana" pré-moderna, mais tarde generalizada, a contrapelo da liberdade de mercado, como a ciência aplicada do planejamento urbano. O urbanismo moderno é, ele próprio, uma das dimensões da construção da cidade moderna pelo consórcio histórico entre a burguesia e seu Estado, contemporaneamente dito "consórcio Estado-mercado".
A construção da cidade moderna é movida pelos "agentes econômicos" com (ou sem, no caso dos agentes não-econômicos mais tarde convertidos em agentes econômicos informais) o suporte direto do Estado, e a ajuda de projetistas de formação diversa, muito frequentemente engenheiros, eventualmente agrimensores e, mais recentemente, equipes interdisciplinares o mais das vezes coordenadas por arquitetos.
O planejamento urbano é a liça permanente, teórico-crítica e/ou político-administrativa, dos profissionais do século XX pelo "governo" da potência autorreprodutiva da cidade-mercadoria. Limitado em seu alcance pela natureza de classe do Estado que o patrocina e aplica, o urbanismo / planejamento urbano moderno é, a um só tempo e contraditoriamente, empenho forçado da classe proprietária dominante em administrar o caos urbano gerado pela economia concorrencial e esforço mais ou menos consciente da cidadania em geral, e do trabalhadorado em particular, pela explicitação do caráter social da construção da cidade.
Por essa razão, o urbanismo / planejamento urbano na esfera pública é uma atividade profissional exercida, quase invariavelmente, em condições de grande incerteza e considerável turbulência.
*
Muito mais do que um ramo da indústria, a urbanização se afirma, desde meados do século XIX no mundo norte-atlântico e na aurora do século XX nas economias subordinadas, como uma cadeia de negócios interdependentes e retro-alimentantes que integra bancos e entidades de crédito e poupança; empreendedores imobiliários e construtores; corretores e agentes cartorários; fornecedores e operadores de serviços urbanos de transporte, água, eletricidade, gás e telefonia; fabricantes e fornecedores de materiais de construção, veículos, mobiliário e equipamentos domésticos; topógrafos, engenheiros, arquitetos, advogados, contabilistas; lojistas dedicados ao comércio local; artesãos e reparadores; e um exército de trabalhadores de níveis diversos de qualificação. Subjacente a essa formidável invenção capitalista está a mais-valia do solo em vias de urbanização, inflada por espirais de valorização decorrentes do descompasso entre o crescimento contínuo da demanda e a escassez crônica da oferta, que aristocratas e capitalistas disputam, eventualmente repartem entre si, como renda da simples propriedade ou como lucro extraordinário do empreendimento.
*
Uma interessante descrição do centro urbano como justaposição/sobreposição de ambientes legados por distintos ciclos urbanizadores aparece em Milton Santos, O Centro da Cidade de Salvador (1959 / Nota Prévia):
(..) durante o último século, o eixo da economia nacional se deslocou para o sul, e a capital baiana viveu um período de quase estagnação, de crescimento lento, situação que somente mudou a partir de 1940, de um lado porque um novo dinamismo lhe foi comunicado, e de outro lado porque acolheu enormes vagas de rurais, tangidos do campo.
Todos esses fatos marcaram, profundamente, a fisionomia da cidade e a sua vida, refletindo-se sobretudo no que hoje constitui sua parte central. As riquezas de que foi a depositária durante os primeiros séculos permitiram a construção de belas igrejas e palácios, casarões e sobrados que suportaram as ofensas do tempo e continuam na paisagem como uma nota singular. Por outro lado, uma certa ausência de dinamismo da vida urbana, durante um largo período, não somente impediu um desenvolvimento maior da área central, como contribuiu igualmente para a permanência do seu aspecto secular. Mas os sobrados, havendo perdido sua destinação original, deterioraram-se até construir o que, em conjunto, são hoje, isto é, uma área de slums. O crescimento recente da cidade e a expansão de suas atividades conduziram à modificação da fisionomia do centro, provocando o aparecimento de grandes edifícios, construídos nos espaços vazios, ou substituindo velhas casas. É a esse conjunto que os baianos chamam "A Cidade", quando se referem à parte alta, e "O Comércio", quando falam da parte baixa do centro de Salvador. É aí que a vida urbana e regional encontra O seu cérebro e o seu coração.*
A construção de assentamentos suburbanos em escala industrial a partir de meados do século XIX tem um papel fundamental no desenvolvimento do urbanismo. A importância do livro de Unwin consiste, precisamente, em traduzir os conceitos e conquistas analiticas de Sitte para as necessidades da já então pujante indústria dos parcelamentos suburbanos, não por acaso na Grã-Bretanha.
Foi pelas mãos dos próprios Unwin e Parker - secundados por muitos outros que a historiografia não alcança -, que a cidade-jardim incorporou o avatar "ponto de venda", "marca" capaz de transpor fronteiras nacionais e servir a décadas, na verdade já mais de um século, de vida da indústria dos loteamentos, de quaisquer padrões de densidade, e até mesmo da indústria da incorporação imobiliaria de altíssima densidade, pela via da mera prática de se batizarem e rebatizarem bairros inteiros acrescentando-lhes o qualificativo "-jardim".
O fato de os primeiros bairros e cidades operárias lembrarem em alguma medida os construtos utópicos não nos autoriza a ver aí uma inspiração, ou mesmo uma tradição, mas somente o fato de que os construtos e os projetos não têm como evitar similitudes fincadas na cultura construtiva de sua época. Os mais brilhantes utopistas não podiam imaginar construções e grupos de construções que não fossem baseadas na técnica construtiva de sua época. Nas verdade, o caráter utópico dos construtos não provém de suas especulações edilícias, ou urbanísticas, mas em seu modelo de sociedade, que não é suscetível de ser desenhado. A filosofia reformadora dos séculos XVIII e XIX usa recursos gráficos, além de literários, porque essas sociedades ideais se projetam como “colônias” ou “cidades”. O urbanismo não nasce da necessidade de criarem-se sociedade utópicas em forma de colônias operárias, mas da necessidade que tinha a burguesia de salvar-se do caos urbano criado pela revolução das forças produtivas por ela mesma engendrada, o que significou, na Inglaterra, criarem-se em certas periferias colônias operárias e, em outras, loteamentos de baixa densidade para famílias abonadas.
Boa parte, senão a maior, do que aconteceu - para bem e para mal - às cidades do mundo nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial remonta, podemos dizer, às ideias de uns poucos visionários que viveram e escreveram há muito tempo, quase ignorados e até mesmo rejeitados por seus contemporâneos. (...) Algumas dessas visões eram utópicas, quando não milenaristas (..). Sua implementação, depois de descobertas e ressuscitadas, aconteceu no entanto em lugares, circunstâncias e por meio de mecanismos quase sempre muito diversos daqueles que seus criadores haviam cogitado (...) não admira que com resultados muitas vezes bizarros e até catastróficos. [Capítulo 1, "Cidades da Imaginação]
Ebenezer Howard é o mais importante personagem individual de toda essa história. [Capítulo 4, “A Cidade no Jardim”]
*
O estudo de Navacués nos permite apreciar a realização de Soria [Cidade Linear] "dos pés para a cabeça", isto é, como projeto de urbanização antes que como utopia urbanística, ambiguidade que a define, quem sabe ao lado da cidade-jardim howardiana, como híbrido histórico: pode-se discutir se é o programa de reforma social que para poder sair à luz se adapta às exigências da nascente indústria da suburbanização ou se é esta que, ainda debutante, se apresenta aqui e ali em trajes de colônia semi-rural destinada ao aperfeiçoamento físico e moral das classes laboriosas.
Uma dessas contradições, de consequências práticas pouco claras mas culturalmente bem estabelecida, diz respeito à natureza singular de seu "núcleo histórico" - abrangendo o “centro” propriamente dito e o perímetro urbano original -, nem sempre devidamente reconhecido, ou valorizado, como tal pelos munícipes e suas instituições.
*
Diria o senso comum que a construção de uma nova capital é, por definição, um grande projeto urbano. Mas pode não sê-lo na acepção que o urbanismo contemporâneo dá ao termo, grafado o mais das vezes com iniciais maiúsculas ou referido pela sigla GPU/GUP.
Não se trata de filigrana conceitual: os Grandes Projetos Urbanos contemporâneos são importantes condutores do circuito financeiro global, precipuamente destinados, na maioria dos casos, a gerar oportunidades de negócios imobiliários e seus acessórios por meio da urbanização e comercialização de solo público com potencial de valorização derivado das qualidades intangíveis da própria metrópole. A reivindicação da urbanização autofinanciada com recursos da renda do solo, mesmo quando mais publicitária que real, é um sinal inequívoco de que as motivações estratégicas geralmente associadas, inclusive a de “mover a economia”, não lhes bastam como fonte de legitimação e enraizamento no ideário coletivo.
Cidades novas, embora relativamente comuns à escala dos séculos, são excepcionalidades no campo do urbanismo, resultantes de processos de colonização de natureza diversa, de políticas estatais de desenvolvimento territorial, do enfrentamento de catástrofes naturais e sociais e do que poderíamos chamar de "repaginação" do poder político em situações, reais e imaginárias, de clivagem histórica. Ou de combinações dessas circustâncias.
Cidades novas também podem, com certeza, surgir como empreendimentos explicitamente comerciais, como no caso da rede urbana do Noroeste paranaense. E não está excluído, muito ao contrário, que a construção de uma nova capital, ainda que por sólidas “razões de Estado”, seja terreno fértil para a proliferação de operações especulativas:
"Confesso nunca ter visto lugar tão deprimente. Partes do Capitólio e da mansão presidencial ainda em construção e nada mais. Trabalhadores morando em barracos que, quando da minha última visita à cidade, em 1806, estavam ainda intactos - e ocupados. Eu especulei com terras como todo mundo, incluindo o general Washington, que acabara de comprar dois lotes perto do Capitólio. Eu dei entrada num terreno próximo à Casa Branca. Uma loucura! Homens a cavalo no meio da mata escura com mapas nas mãos apontando para chão e dizendo: "Aqui fica a esquina da rua tal com a rua tal. Pertinho do Capitólio. Vou construir aí uma casa - não, um hotel”. Mas no final, quem investiu nesses pântanos ganhou rios de dinheiro." VIDAL, Gore, Burr: A Novel (Vintage International) (English Edition).
A localização do centro comercial e
bancário é um aspecto crítico das cidades ex novo. Ele raramente se estabelece
no lugar preconizado, e em nenhum caso da forma como imaginada, pelo projetista
da “cidade planejada”, em parte porque essa localização depende de movimentos
históricos pouco previsíveis - como a rápida evolução da tecnologia e da economia
dos transportes -, em parte porque os projetistas tendem a desconsiderar o fato
de que, como já explicava Hurd em 1903, o centro se forma ao redor do ponto de
contato com o mundo exterior e se expande, ou desdobra, na direção determinada
pela opção residencial das camadas de alta e média renda. Salvo quando
rigidamente controlado pelo “projeto de cidade”, como em Brasília, na
urbanização de mercado o centro comercial e bancário ocupa o lugar mais
adequado aos negócios, não aos critérios técnicos, pretensões estéticas e
ideais filosóficos do projetista.
A despeito das sólidas evidências
proporcionadas pelo espetacular crescimento das grandes cidades dos EUA, nos planos de urbanização de fins do século XIX a noção de “centro
urbano” ainda é basicamente governada pela ideia barroco-tardia do “centro
cívico”, local de agrupamento das edificações ligadas às instituições dos
poderes temporal e religioso: no “urbanismo dos traçados”, devidamente
embrulhado na racionalidade geométrica puramente abstrata da organização
espacial positivista; nas cidades-jardim, organizado ao redor do parque central
howardiano. Em forma de conservadorismo, reformismo ou vanguardismo, constitui
uma característica do urbanismo dedicado ao projeto de cidade ex-novo a negação
da aglomeração comercial e bancária como força motriz da ocupação e crescimento
do centro da moderna cidade capitalista.
O urbanismo moderno não nasceu junto com com o processo técnico e econômico que gerou e modelou a cidade industrial. Veio mais tarde, quando se evidenciou que os efeitos quantitativos dessa transformações se tornaram conflitantes a ponto de tornar inevitável a necessidade de remediá-los. [ De modo geral, a técnica urbanística aparece com atraso relativamente aos acontecimentos que tem por missão controlar e tem um caráter curativo. [Benevolo L, Le Origini dell’Urbanistica Moderna, 1963]
Almost precisely in 1900, as a reaction to the horrors of the 19th century slum city, the clock of planning history started ticking. But, paradoxically, as it did so, another much older and bigger timepiece started to drown it out. The very problem, that the infant planning movement sought to address, almost instantly began to change its shape. Most of the philosophical founders of the planning movement continued to be obsessed with the evils of the congested Victorian slum city – which indeed remained real enough, at least down to World War Two, even to the 1960s. But all the time, the giant city was changing, partly through the reaction of legislators and local reformers to these evils, partly through market forces. The city dispersed and concentrated. [HALL 1988 Cities of Tomorrow, p. 48]
El conocimiento e identificación de la fase de desarrollo en que se encuentra cada sector de una ciudad es igualmente importante para los organismos de planeación de esa ciudad para saber en qué momento conviene adoptar una determinada política para estimular un proceso de rehabilitación, de renovación o de desarrollo de un sector. (..) Cuando la planeación urbana va en contra de las necesidades sociales y las leyes del mercado, genera un mayor caos urbano. La planeación debe ir delante de la demanda encauzando las necesidades. [Borrero Oscar, “Formación de los precios del suelo urbano”, 2005]
La crisis del fordismo urbano se manifiesta, sobre todo, a través de dos ejes de cambio: por una parte, la tendencia hacia la flexibilización urbana por sobre el urbanismo modernista y regulador; y por otra, la caída en el financiamiento estatal de la materialidad urbana (vivienda, equipamientos e infraestructura) y de algunos servicios urbanos colectivos. En ambos casos, el mercado resurge como mecanismo principal de coordinación de la producción de la ciudad, ya sea a través de la privatización de las empresas públicas o por la hegemonía del capital privado en la producción de las materialidades residenciales y comerciales urbanas. Este predominio del mercado como mecanismo de coordinación de las decisiones de uso del suelo constituye un rasgo característico de la ciudad neoliberal, en contraste con el periodo del fordismo urbano, cuando el papel del mercado en la producción de las materialidades urbanas estaba fuertemente mediado por el Estado a través de la definición tanto de las reglas de uso del suelo como de las características de tales materialidades. La crisis del fordismo urbano implica, por tanto, el “retorno del mercado” como elemento determinante en la producción de la ciudad neoliberal. [ABRAMO 2012]
http://shora.tabriz.ir/Uploads/83/cms/user/File/657/E_Book/Urban%20Studies/park%20burgess%20the%20city.pdf
[2] Entendida como aquela em que já predominam o trabalho assalariado e a produção para o mercado, mas não necessariamente a grande indústria.