Urbanologia: esboços

última edição 13-04-2023

O urbanismo é a arte e a técnica do projeto e construção de assentamentos urbanos, e até de cidades inteiras, com raízes que alcançam um passado milenar. 

Apesar de reconhecido, na aurora do século XX, como atividade profissional legalmente exercida com base em um tipo particular de capacitação técnico-científica, o urbanismo não se desdobrou em ciência na acepção moderna do termo: a ciência de como as cidades se formam, conformam e transformam para além dos desígnios, planos, especulações e mesmo realizações de filósofos, governantes, urbanistas, planejadores, legisladores e formuladores de políticas urbanas, subordinados todos, a cada época e lugar, às exigências, possibilidades e contradições que lhes são impostas pelas forças motrizes de suas respectivas formações sociais.

Tampouco o planejamento urbano, avatar tecnocrático do urbanismo da segunda metade do XX, se aventurou, por motivos que cabe investigar, a construir uma urbanologia que lhe desse suporte, balizas e - muito importante - consciência de seus limites.  

Proponho considerar o estudo da organização espacial urbana como síntese transdisciplinar e dimensão científica do urbanismo moderno, abrangendo uma vasta coleção de fenômenos constitutivos do processo urbanizador: gênese, expansão, centralidade, suburbanização, conurbação, metropolização, densificação, renovação edilícia, verticalização, gentrificação, favelização, segregação residencial, informalidade, localização, distribuição de infraestrutura e serviços públicos, mobilidade, mercado imobiliário e muitos outros.

Por não se ter constituído formalmente como urbanologia, a ciência da organização espacial urbana existe como coleção mais ou menos fragmentária de modelos / especulações teóricas e sínteses de pesquisa empírica acumulados, ao longo do século XX, em trabalhos de sociologia, geografia e economia urbanas. Seus exemplos mais notórios são os chamados modelos de estrutura urbana - “círculos concêntricos”, Burgess 1925; “setores circulares”, Hoyt 1939; “núcleos múltiplos”, Harris & Ullman 1945 - e o modelo alonso-thuneniano da distribuição espacial dos usos do solo urbano segundo a oferta de renda (1964). Exemplos de esquemas explicativos desagregados, muito menos conhecidos, mas nem por isso menos úteis, são o “efeito cordilheira" de Borrero 2003 e os “cones de alta renda” de Sabatini 2008, que abordaremos mais à frente.

Considerado o conjunto de relações e implicações da organização espacial urbana com o ambiente construído, ou, dito de outra forma, que a atuação das leis da economia espacial e da sociologia urbanas implicam um sem-número de efeitos observáveis em campos diversos do conhecimento, da técnica e da arte, incluído o desenho urbano, além de exigirem, como condição sine qua non, uma perspectiva e um consistente domínio dos métodos de pesquisa e interpretação histórica, é razoável considerar a "organização espacial urbana" como objeto de uma vertente científica informal do urbanismo, que compartilha o território epistemológico da Geografia Urbana.


Produto do engenho humano, mas não de seu designio

A construção das cidades é uma instância particular, porém crucial em nossa época, da reprodução da vida social à escala planetária. 

As incessantes transformações das estruturas socioespaciais urbanas são comandadas, para bem ou para mal, pela ação das forças motrizes do processo reprodutivo das cidades, que, embora criadas pelo engenho humano, operam como forças naturais cujos efeitos a sociedade busca, pela via do planejamento governamental, ora mitigar ora canalizar, mas não tem, ou acredita que não tem, nem deve ter, o poder de controlar.

Nós construímos as cidades, mas não segundo nosso arbítrio; não as construímos sob circunstâncias de nossa escolha, mas sob aquelas com que nos defrontamos diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. [*] Para além das iniciativas localizadas, geralmente projetos privados, cujas variáveis temos sob controle, a construção das cidades resulta das expectativas de inumeráveis vontades individuais e forças sociais conflitantes que, juntas, formam uma potência única desprovida de consciência e de vontade. [*] 

Por isso é necessário estabelecer uma clara distinção entre o estudo dos processos sócio-históricos de formação e transformação da cidade, que chamo tentativamente de “organização espacial urbana”, e os meios e práticas de supervisão, controle e interferência estatal em tais processos, enfeixados sob a rubrica “planejamento urbano”.


OEU, urbanização de mercado e planejamento

Por mais que nos esforcemos para planejá-las, as cidades têm a capacidade de se transformar, para bem ou para mal, pela ação de forças motrizes que não controlamos, mas precisamos, na medida do possível, compreender. Toda cidade moderna é um híbrido de herança, mercado e plano em proporções que variam enormemente caso a caso.

A interação entre a força fundamental da construção da cidade moderna, que costumamos chamar eufemisticamente de “o mercado”, e o conjunto de práticas estatais de controle, regulação e intervenção abrigadas sob a rubrica “planejamento”, é um aspecto crítico da organização espacial urbana, portanto de seu estudo.

A relação entre mercado e plano não é, com efeito, um "casamento entre iguais". A teoria e a experiência indicam que o planejamento tem um papel subordinado relativamente às leis que regem a moderna organização espacial urbana, sejam da alçada da economia, da sociologia ou da geografia urbanas, mesmo em países onde ele tem um papel de grande relevo na configuração do espaço construído e, em todos os demais, também nos ciclos e conjunturas em que a ação regulatória, fiscal e interventiva do Estado parece assumir a dianteira.

Em cada época e lugar, a mediação estatal nos processos de transformação das cidades está inevitavelmente sujeita às leis, exigências, possibilidades e contradições próprias do regime social.
 
*


O postulado de que existe uma ciência da organização sócio-espacial urbana, isto é, uma ciência da configuração, reconfiguração e transfiguração das cidades para além dos desígnios, planos e realizações de filósofos, urbanistas, planejadores, legisladores e formuladores de políticas urbanas, supõe o papel subordinado do planejamento urbano relativamente aos processos fundamentais descritos nos estudos de economia e sociologia urbanas.

E dado que a construção das cidades modernas é uma instância particular, porém crucial em nossa época, da reprodução da riqueza à escala planetária, não há razão para crer que, em um ambiente de mercado, o planejamento urbano possa ir mais longe, ou ser mais bem-sucedido, em seu esforço de discipliná-las, que dirá dirigi-las, do que o planejamento governamental em seu empenho de "ordenar" a economia como um todo.

*

O estudo sistemático da organização espacial, ou estrutura, urbana é, portanto, uma premissa lógica e prática do planejamento urbano, suas possibilidades, efeitos, limites, sucessos e fracassos.


O caráter histórico do planejamento urbano

A cidade moderna, vale dizer a cidade da formação social capitalista, é produzida "industrialmente", vale dizer em larga escala, por um consórcio mais ou menos explícito, mas nem por isso isento de tremendas contradições, entre os proprietários de capital, que constroem a maior parte das edificações, operam boa parte dos serviços públicos e exploram a renda da terra que eles valorizam, e seu Estado, que de modo geral provê a infraestrutura e, eventualmente, solo público para os grandes projetos de expansão da fronteira de negócios imobiliários. 


É nesse marco que nasce, em meados do século XIX, a técnica do urbanismo, herdeira da "arte urbana" pré-moderna, e mais tarde generalizada, a contrapelo do princípio - muito mais retórico que prático - da liberdade de mercado, como a ciência aplicada do planejamento urbano. 


O planejamento urbano nasce, em fins dos século XIX, e se desenvolve no transcurso do século XX como recurso do Estado de classe dos proprietários de capital para a mitigação dos efeitos deletérios da indústria da urbanização - construção civil, operação de serviços urbanos e exploração da renda do solo -, que afetam diretamente as próprias camadas sociais dela beneficiárias e constituem, num plano mais geral, um potente fator de instabilidade social e política. O planejamento moderno é, ele próprio, uma das dimensões da construção da cidade moderna pelo consórcio histórico entre a classe proprietária e seu Estado, contemporaneamente dito "consórcio Estado-mercado". 


A subordinação dos efeitos do planejamento às leis da economia e sociologia urbanas é tanto mais clara quanto menos potente é o arsenal de recursos de intervenção estatal no meio urbano.  


*


O planejamento urbano é a liça permanente, teórico-crítica e/ou político-administrativa, dos profissionais do século XX pelo governo da potência autorreprodutiva da urbanização de mercado. Limitado em seu alcance pela natureza de classe do Estado que o patrocina e aplica, o planejamento urbano moderno é, a um só tempo e contraditoriamente, empenho forçado da classe proprietária dominante em administrar a anarquia urbana derivada da concorrência pela via de seu disciplinamento e esforço mais ou menos consciente da cidadania em geral, e do trabalhadorado em particular, em prol do reconhecimento e explicitação do caráter social do processo de construção e reconstrução da cidade.


Por essa razão, o planejamento urbano é uma atividade profissional essencialmente pública, quase invariavelmente exercida em condições de grande incerteza e considerável turbulência.


"Physical planning of urban developments is extremely complex due to conflicting pressures on land use, contradictory socio-economic dynamics, uncertain prognoses and outcomes, multi-level governance structures, and limited public planning capacities. In addition, comprehensive planning of housing and supportive infrastructures often fails because planning experts dream up ambitious master plans that have little or no bearing on local conditions, knowledge, and needs and only enjoy modest political and popular support. Finally yet importantly, socio-economic turbulence, shifting political priorities, and bureaucratic resistance may undermine stated planning objectives and preferred strategies for how to attain them.”

SØRENSEN E e TORFING J, “The Copenhagen Metropolitan ‘Finger Plan’”. Em HART P e COMPTON M, Great Policy Successes, Oxford Scholarship Online: October 2019 https://oxford.universitypressscholarship.com/.../oso...


*


A relação entre o mercado de bens imóveis (benfeitorias, terrenos, projetos, administração etc.) e serviços urbanos e a prática do planejamento urbano em nível estatal constitui um capítulo à parte, de grande interesse na história do urbanismo e de suas disciplinas constitutivas. Ela é assinalada por uma ampla gama de autores de distintas épocas, nacionalidades e áreas técnico-científicas, com nuances que, em parte, se poderiam atribuir à já assinalada duplicidade inerente à interveniência estatal na construção da cidade - ora a serviço dos capitais de investimento, ora a serviço do "interesse geral".


Bastante representativa, por sua franqueza e pragmatismo, da subordinação do planejamento às leis do mercado é a abordagem do economista-avaliador e planejador urbano Oscar Borrero, especialista latinoamericano em recuperação de mais-valias imobiliárias para fins de financiamento urbano:


El conocimiento e identificación de la fase de desarrollo en que se encuentra cada sector de una ciudad es igualmente importante para los organismos de planeación de esa ciudad para saber en qué momento conviene adoptar una determinada política para estimular un proceso de rehabilitación, de renovación o de desarrollo de un sector. (..) Cuando la planeación urbana va en contra de las necesidades sociales y las leyes del mercado, genera un mayor caos urbano. La planeación debe ir delante de la demanda encauzando las necesidades. [BORRERO 2005]


*


Claro exemplo de reconhecimento da subordinação do planejamento às leis da expansão urbana é o Finger Plan de Copenhagen, de 1947, que propôs disciplinar o desenvolvimento da cidade ao longo de cinco eixos ferroviários suburbanos que se estendem à periferia a partir do núcleo compacto da cidade central. Os interstícios, ou "cunhas", entre os "dedos" foram designados áreas prediminantemente "verdes" com usos agrícolas e recreacionais.




*

As contradições, sucessos e fracassos do planejamento governamental vis à vis a força associada do capital e do Estado na construção da cidade moderna é um capítulo à parte, na verdade um livro inteiro, do estudo da organização espacial urbana. 

A construção das cidades é uma dimensão inseparável da economia de mercado, tanto mais crucial quanto mais dependente se torna a economia de mercado dos sobrelucros proporcionados pela extração da renda do solo e da venda, aos segmentos urbanos de altos rendimentos, de todo tipo de bens e serviços não competitivos.



Urbanização espontânea vs. urbanização planejada: formas históricas de condicionantes não naturais  

Os precedentes típicos na cidade pré-capitalista são o castro ortogonal romano e o muro feudal transformado em muralha no período mercantil-absolutista.   

Na moderna metrópole capitalista, a primeira família de condicionantes da construção da cidade pelo mercado é de caráter não regulatório: o próprio assentamento pré-capitalista - feudal, colonial, militar.

A segunda família são os 'grandes traçados' resultantes de planos de expansão de fins do século XIX, que operam como um tipo particular de condicionante regulatório. Um caso particular são os 'traçados' das cidades ex novo

A terceira família é a moderna normativa urbanística, incluída a sua forma generalizada, o Master Plan metropolitano.

A quarta família, híbrida de plano e mercado, são as grandes operações público-privadas, também ditas Grandes Projetos Urbanos. 
  

O prestígio do planejamento obscureceu o estudo da OEU 

Hipótese histórico-epistemológica: o desenvolvimento da "ciência da organização sócio-espacial urbana" teria sido obstaculizado pela tendência, própria do arranjo sócio-político alcançado no pós II Guerra, especialmente nos países "centrais", à superestimação dos poderes estabilizadores do planejamento econômico e seus derivados em face dos desequilíbrios inerentes à economia de mercado.

Corporatist negotiations combined with a stable political alliance between social democrats and social liberals have played a key role in the expansion of the universalistic welfare state before and especially after the Second World War. (..) [The Finger Plan] would never have taken off if it had not gained early support from a political coalition of planning experts, local and regional governments, and several ministries. Motives for entering into this broad political alliance differed. (..) The Ministry of Labour and the Ministry of Social Affairs were desperate to initiate public construction work in order to reduce mounting unemployment. They knew that investments in housing development and transport infrastructure would please the building and construction sector, including the strong trade unions (Jensen 1990). [SØRENSEN E e TORFING 2019, pp. 228-229]
 
Based on the analysis presented earlier, it is possible to identify a number of contextual factors that were conducive to the conception and execution of the Finger Plan and which help to explain its success. The first factor has to do with the timing of the Finger Plan, which could not have been better. The imminent end of the German occupation generated a huge enthusiasm for planning in the new era of peace and prosperity which seemed to be just around the corner. The negative, oppressive irrationality of the Second World War was to be replaced by a positive, rational, and potentially liberating planning future. (..) [ The second conducive factor was the high degree of professional autonomy within the Danish welfare state, which allowed a new generation of skilled and visionary planners to initiate the planning process, formulate an ambitious and comprehensive plan, and slowly generate political support for their bold ideas. [SØRENSEN E e TORFING 2019, pp. 234-235] 
 
As expectativas e batalhas prático-teóricas ao redor das ações reguladoras do Estado do bem-estar, no âmbito do "compromisso histórico" do segundo pós-guerra do século XX, obscureceram o fato de que tais ações reguladoras não têm o poder de neutralizar as leis gerais da construção/ expansão/ reconstrução da cidade em um regime de mercado, vale dizer de competição entre capitais individuais, tornando aparentemente supérflua aquela linha de pesquisa.

*

Obras históricas de fôlego, como as de Judt e Hall, escritas em fins do século XX, deixam transparecer esse "otimismo pós-, ou trans-, histórico". Seus capítulos conclusivos flertam com a ideia de que a sociedade europeia do bem-estar posterior à II Guerra representa a superação definitiva dos males sociais - urbanos no caso de Hall - do mundo herdado do século XIX. [*]


Modelos de estrutura urbana

A elaboração de modelos é um procedimento usual no processo de construção do conhecimento. Podemos descrevê-los como representações hiper-simplificadas da realidade que utilizamos para pôr em foco determinado aspecto ou relação que, em nosso estudo, supomos especialmente relevante. Eles nos ajudam a sintetizar o status de nossa compreensão dos fenômenos empiricamente observados e a formular novas hipóteses a serem submetidas à prova dos fatos e seus desenvolvimentos.


Modelos são representações do objeto de estudo segundo algum tipo de estrutura interna, isto é, um certo arranjo de componentes e relações estipulados pelos estudiosos como relevantes para os fenômenos sob exame. Significa (1) que tanto os “modelos” quanto as “estruturas” são construtos, vale dizer representações mentais mais ou menos estáticas que não devem, em hipótese alguma, ser confundidas como os objetos e fenômenos que pretendem representar;  e que, portanto, (2) qualquer objeto, fenômeno ou processo nos oferece um número indeterminado de estruturas, que podemos generalizar em modelos, de utilidade distinta para distintos campos de estudo. 


A formulação de modelos representativos de uma dada coleção de objetos, ou fenômenos, supõe a escolha das estruturas a considerar. Não há nenhuma razão para supor, por exemplo, que a malha radioconcêntrica seja um “melhor” modelo de cidade do que, digamos, um diagrama de figura-fundo. O primeiro baseia-se na estrutura espacial “rede primária de acessibilidade”, o segundo na estrutura espacial “área urbana edificada”. Assim como a malha radiocêntrica é a forma idealizada, ou modelo, da expansão radial da cidade a partir do centro, a figura-fundo é a forma idealizada, ou modelo, da tendência que tem toda cidade de repartir-se o solo em construído e não-construído. Não é possível dizer que o primeiro modelo é mais “correto”, ou “representativo da cidade” do que o segundo: eles contêm estruturas distintas, a serviço da exploração e explicação de distintos fenômenos. De modo análogo, um esquema da distribuição espacial dos usos do solo nas grandes cidades inglesas na segunda metade do século XIX não é um modelo mais representativo dessas mesmas cidades do que um esquema da distribuição espacial da residência por estratos sociais: também eles recorrem a distintas estruturas para auxiliar a resolução de distintos problemas ou, como objetos complementares, a resolução de um mesmo problema. 


Dado que todo modelo é uma generalização de fenômenos e relações empiricamente observados, ou generalização hipótetica de fenômenos a ser submetida à prova dos fatos e seus desenvolvimentos, deduz-se que a todo modelo subjaz ao menos um esboço de teoria. Dizer, como faz Villaça a respeito de Hoyt, que seu modelo de estrutura urbana “não tem pretensão teórica” é uma contradição em termos. Se Hoyt não tivesse pretensão teórica não teria formulado um modelo: contentar-se-ia em apresentar seus mapas e o leitor que tirasse suas conclusões. Postular um modelo de organização espacial urbana implica reconhecer que o arranjo espacial dos elementos urbanos considerados se repete, ainda que com distintas configurações, no universo das cidades estudadas, ou seja, forma um padrão.

Ao formular seu modelo de organização urbana em setores de círculo, Hoyt converte a sua empiria em teoria - mais ou menos explícita e desenvolvida dependendo do apetite, ou do interesse, do autor. Ao abstrair em um modelo uma série de mapas de dados empíricos da localização residencial em n cidades norte-americanas, Hoyt está procedendo a uma generalização, que é o procedimento teórico elementar sem o qual não poderá passar às etapas seguintes, por exemplo a busca das forças geradoras desse padrão. A generalização de resultados empíricos em um modelo é, em si mesmo, uma assunção teórica: um mapa mental a postular que, satisfeitas certas restrições quanto, por exemplo, à época, tamanho, país etc, qualquer cidade há de exibir aquele padrão - hipótese confirmada, aliás, pelo uso que faz Villaça do modelo de Hoyt para as cidades brasileiras. 

Se o diagrama de Hoyt, elaborado como generalização de dados de um certo conjunto de cidades norte-americanas na década de 1930, serve ao estudo da organização espacial das metrópoles brasileiras na década de 1990, Villaça está obrigado a reconhecer que, necessariamente, as cidades norte-americanas estudadas por Hoyt têm muito em comum com as metrópoles brasileiras estudadas por Villaça - do contrário seu modelo seria inservível como ferramenta de estudo.


*


Burgess, Hoyt e Harris-Ullman são universalmente conhecidos como autores de "modelos de estrutura urbana", conceito que julgo conter uma armadilha epistemológica: capturada pelo irresistível fascínio dos “modelos”, a proto-história dos estudos da organização espacial da cidade moderna foi, a partir da publicação do artigo de Harris e Ullman intitulado “The Cities”, em 1945, muitas vezes reduzida a um debate bizantino sobre as virtudes e defeitos dos diagramas ali exibidos (Burgess 1925, Hoyt 1939, Harris-Ullman 1945) como síntese inconteste de uma linha de pesquisa geográfica que a rigor não existiu.


Todo esse empenho comparativo se choca com a recorrente falta de referências ao contexto das obras e às reais pretensões de seus autores, com a omissão da questão do que se entende, nos estudos urbanos, por “modelo” e “estrutura” e quais seriam sua utilidade e limitações.



Os modelos de Chicago

Os modelos de organização espacial da sociologia urbana de Chicago e seu entorno técnico-científico configuram o esboço, ou proto-história, de um urbanismo produzido como ciência, que virá mais tarde a se cristalizar no âmbito da Geografia. Eles não buscam dizer como a cidade deve ser, mas como ela tende a ser - do ponto de vista da disposição espacial de seus componentes físicos e da distribuição dos usos do solo e dos grupos sociais -, para além dos desígnios de urbanistas e planejadores de quaisquer especialidades. 

Subjacentes a esses modelos estão processos e arranjos sociais fundamental, mas não exclusivamente, determinados por vantagens econômicas e de status social, sejam mensuráveis ou apenas percebidas como tal. A tipologia que a comanda não é a das edificações, mas a dos usos da terra, e sua lógica é locacional. 

*

A invenção por Harris & Ullman, em 1945, da "santíssima trindade" dos estudos de organização espacial urbana (Burgess 1925, Hoyt 1939 e Harris-Ullman 1945) é o capítulo mais notório, e também o mais problemático, de sua história. Sua relevância se assenta no fato de constituir-se esse artigo no evento criador de uma estirpe - a dos modelos sintéticos. Baseado numa visão distorcida do verdadeiro conteúdo das contribuições que o precederam, ele constrói, com esses fragmentos, uma sequencia de modelos sintéticos de organização espacial urbana cujo valor é essencialmente heurístico. Os três modelos representam como que três etapas de aproximação do pensamento abstrato à forma organizacional do fenômeno da urbanização. Sua relação interna é assim descrita por Richardson:

“Estes três conceitos de estrutura urbana não são diametralmente opostos uns aos outros. Cada conceito provavelmente tem alguma importância para explicar a estrutura de qualquer cidade. (..) Os conceitos de setores radiais e núcleos múltiplos obviamente levam em consideração um número maior de complicações que a interpretação das zonas concêntricas, mas a modificam ao invés de refutá-la. (..) no modelo de núcleos múltiplos são encontradas, em torno de cada núcleo secundário, as mesmas tendências básicas que a teoria das zonas concêntricas estabelecia para o centro da cidade (gradientes de aluguel, diferenciação no uso da terra etc.). As mesmas concepções teóricas gerais, como a tentativa de minimizar os custos de atrito tomada como princípio organizacional, são aplicáveis em grau variável a todas as três concepções de estruturas de uma cidade.” [RICHARDSON p.160]
O estudo da organização espacial urbana demanda modelos sintéticos, como são os 3 modelos clássicos reunidos por Harris-Ullman em 1945, tanto quando uma bem-estruturada caixa de ferramentas, isto é, uma coleção de modelos parciais representativos de aspectos específicos da economia, geografia e história urbana. 
"The internal structure of cities has proven to be a subject of extraordinary richness and of such complexity that only a modest beginning has been toward its understanding. [ALONSO 1964, p2]


As leis, ou princípios, da organização espacial urbana  

"Se as cidades crescessem ao azar, o problema da criação, distribuição e mudança dos valores da terra seria insolúvel. Basta um exame superficial para estabelecer semelhanças entre as cidades e a investigação aprofundada demonstra que seus movimentos estruturais, por mais irregulares e complexos que pareçam, respondem a princípios definidos. [HURD 1903]


As leis da organização espacial urbana são, como a maioria das leis econômicas e sociológicas, de caráter tendencial. Além disso, já foram todas enunciadas em distintos estudos de distintas procedências no campo das ciências humanas.

*

A expansão radial em todas as direções como princípio diretor do crescimento urbano parece ter sido originalmente postulada em 1903 pelo economista, avaliador e analista de crédito hipotecário Richard Hurd em seu livro Principles of City Land Values.

Cities originate at their most convenient point of contact with the outer world and grow in the lines of least resistance or greatest attraction, or their resultants. (..) Growth in cities consists of movement away from the point of origin in all directions, except as topographically hindered, this movement being due both to aggregation at the edges and pressure from the centre.


Segundo diz o prefácio, à falta de referências confiáveis sobre o tema do valor da terra urbana Hurd se propôs a “esboçar uma teoria da estrutura das cidades” e “estabelecer a escala de valores médios do solo criada por seus usos, equipamentos e serviços”.

*

O princípio da expansão radial-concêntrica das cidades foi expresso em 1925 pelo sociólogo Ernest Burgess, professor-pesquisador da Universidade de Chicago, no capítulo 4 do livro The City:Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment. Seu objetivo, como indica o título citado, não era construir uma teoria sobre a estrutura urbana, mas situar no espaço o fenômeno urbano da “invasão-sucessão” de zonas residenciais socialmente estruturadas ao redor do centro da cidade, fonte dos problemas sociológicos que cuidava de investigar:

Os típicos processos de expansão urbana podem ser adequadamente ilustrados por um conjunto de círculos concêntricos, numerados para indicar tanto a sucessão das zonas como a sua diferenciação. [ O diagrama [anexo] é a representação idealizada da tendência das cidades e metrópoles se expandirem radialmente a partir da área central de negócios - no mapa, o “Loop" (I).

Poucas linhas abaixo, Burgess admite o caráter irregular, desigual ou assimétrico da expansão radial-concêntrica:

“É ocioso dizer que nem Chicago nem qualquer outra cidade se encaixa perfeitamente nesse esquema ideal. Aqui, complicações são introduzidas pela situação lacustre, pelo trajeto do rio, pelas ferrovias, por fatores históricos da localização industrial, pela relativa resistência das comunidades à invasão etc.”

Em seu texto “Urban Areas”, de 1929*, Burgess destacará o arruamento ortogonal imposto pela Land Ordinance de 1785 às terras conquistadas a oeste, vale dizer o fator regulatório, como um complicador adicional do esquema de zonas urbanas concêntricas.

E intuindo, quem sabe, que o “centro” a partir do do qual se dá a “expansão radial em todas as direções” supõe uma periferia urbanizada, ou em vias de urbanização, já existente ao seu redor, Burgess postula, alguns parágrafos adiante, o princípio da “descentralização centralizada” das grandes cidades dos EUA:

“Uma boa medida da relação da centralização com os demais processos da vida urbana é a entrada diária de mais de meio milhão de pessoas no CBD de Chicago. Mais recentemente surgiram, nas zonas periféricas, sub-centros satélites que não representam, ao que parece, o “esperado” renascimento dos bairros, mas a fusão das comunidades locais em uma unidade econômica maior. A Chicago de ontem, um ajuntamento de núcleos rurais e colônias de imigrantes, vive hoje um processo de reorganização rumo a um sistema descentralizado centralizado de comunidades locais e sub-centros visível ou invisivelmente dominados pelo CBD”.

A fórmula da “descentralização centralizada” corrige, ou ajusta, a ideia original meramente intuitiva de que as cidades se expandem “do centro para a periferia”. Por que não dizer que as cidades se expandem da periferia par o centro? “Descentralização centralizada” significa que periferia e centro se expandem reciprocamente, aquela em extensão, este em densidade.

“This chart represents an ideal construction of the tendencies of any town or city to expand radially [in all directions] from its central business district". (Burgess 1925-29) 

A fórmula retoma, em outras palavras e com menos ambições teóricas, o postulado de Hurd de que a expansão urbana é simultaneamente central e axial.


*

Richardson, em sua Economia Regional de 1969, considera “a tentativa de minimizar os custos de atrito” um “princípio organizacional [da estrutura urbana]” aplicável “a todas as três concepções [Burgess, Hoyt e Ullman-Harris] de estrutura de uma cidade (RICHARDSON p.160). 

O Central Business District da geografia norte-americana é a forma moderna do aglomerado histórico ou fundacional das cidades, que vem a se desenvolver como polo econômico, isto é, como "centro". O aglomerado só pode se transformar em centro mediante uma rede de acessibilidade, cuja forma moderna supõe por sua vez um mercado de solo-localização e serviços de transporte. Centralidade é uma relação econômico-espacial. A centralidade urbana é uma relação econômico-espacial entre distintos usos do solo, mediada pelo layer radial da rede geral de acessibilidades. 

*

Preempção locacional pela maior oferta de renda (highest bid rent) [HURD 1903, ALONSO 1964]. Os usos mais rentáveis e as famílias com maior excedente de rendimento têm o poder de se instalar no território nas localizações que mais lhes convenham. Consequentemente, os perdedores da disputa pela localização A se tornam, em seguida, vencedores da disputa pela localização B e assim por diante, até a localização que pagará nada mais do que a renda absoluta da terra urbana - aquela abaixo da qual nenhum o proprietário cederá a terra para qualquer uso.       

*

A localização é um fato 100% relacional, quer estejamos falando de cidade, região, país ou mundo.

*

A determinação mais geral da localização urbana, que relaciona cada uma delas com todas as demais, é o preço da terra que a ancora. Cada localização é o produto da disputa permanente de todos os demandantes e todos os usos por espaço, mediada pela oferta de renda.

Consequentemente, cada novo fato locacional afeta o mapa de preços da cidade inteira - processo de reconfiguração incessante ao qual se costuma associar a imagem do "couro de vaca", isto é, uma superfície contínua, irregular e flexível que muda de configuração sempre que uma pressão é exercida em um ponto qualquer.

Numa acepção mais restrita, a localização de residências, indústrias, lojas etc, se refere à relação espacial, o mais das vezes determinada como distância-custo, que dois ou mais grupos sociais estabelecem entre si segundo os usos / atividades a que se dedicam no solo que ocupam. Quando dizemos que uma família reside no bairro X, está implícito que seu membros economicamente ativos trabalham em algum lugar da mesma cidade, ou metrópole, que adquirem os bens materiais de que necessitam no centro e subcentros da mesma cidade (..).

O comércio varejista, por exemplo, implica um arranjo espacial que assegure aos distribuidores o menor custo de uso do espaço e aos demandantes o menor custo de transporte. Resulta do lado dos distribuidores a aglomeração, que reduz o custo agregado do espaço pela otimização das viagens dos demandantes; e do lado dos demandantes, a disposição ao redor da aglomeração e a formação de corredores de acessibilidade. Os corolários desse arranjo são: do ponto de vista geográfico a formação do centro urbano e, do ponto de vista econômico, o aumento dos preços do solo proporcional à sua aproximação.

Outro efeito típico do "conteúdo relacional e cíclico/histórico dos usos-localizações" é o binômio residencia-indústria - proximidade que é vital para o trabalhadorado fabril e anátema para "as burguesias" (apud Villaça). (..)


Outras relações podem ser encontradas na literatura:

O comércio grossista tem interesse em permanecer bem próximo aos bancos, estando estes, igualmente, atraídos pelo porto. Exercem uma espécie de atração recíproca uns sobre os outros. [SANTOS, M (1959) O Centro da Cidade de Salvador P. 78]

*

A expansão radial tem um 
caráter desigual, no espaço e no tempo, resultante (1) das irregularidades geomórficas e topográficas do espaço, (2) da diferença estrutural entre eixos radiais "exógenos", isto é, oriundos das relações econômicas do assentamento com o espaço regional circundante, e os eixos radiais "endógenos", aqueles gerados pelos processos de expansão da própria cidade; (2a) dos obstáculos à expansão erguidos pelos próprios assentados, (3) da multiplicidade dos usos do solo urbano com suas respectivas exigências de acessibilidade, (4) da natureza relacional dos usos-localizações, (5) da desigual capacidade de oferta de renda pelo solo-localização etc.  

O caráter "desigual", "irregular", ou "assimétrico" da moderna expansão radial-concêntrica foi assinalado desde muito cedo por ninguém menos do que o inventor do "modelo das zonas concêntricas", Ernest Burgess.

“É ocioso dizer que nem Chicago nem qualquer outra cidade se encaixa perfeitamente nesse esquema ideal. Aqui, complicações são introduzidas pela situação lacustre, pelo trajeto do rio, pelas ferrovias, por fatores históricos da localização industrial, pela relativa resistência das comunidades à invasão etc.”[Burgess 1925]


O caráter desigual da expansão radial-concêntrica urbana resulta, dentre outros fatores, do fato de que somente um pequeno número de vetores radiais correspondem a ligações regionais [Villaça], que, por serem o que são, atraem usos incompatíveis com as expectativas de localização residencial das camadas sociais de mais alta renda, portanto maior poder de preempção – como depósitos, fábricas, garagens, oficinas e grandes postos de abastecimento. Nas imediações desses usos tenderão a se localizar residências proletárias de padrões diversos conforme, também, o poder de preempção das famílias relativamente às vantagens/desvantagens da micro-localização.


*

Auto-segregação espacial do mercado de residências", fundada no desejo de ascensão social. (Hurd, Hoyt, Sabatini, Abramo)

the basis of residence values is social and not economic —even though the land goes to the highest bidder— the rich selecting the locations which please them, those of moderate means living as near by as possible, and so on down the scale of wealth, the poorest workmen taking the final leavings, either adjacent to such nuisances as factories, railroads, docks, etc., or far out of the city. (..) The main consideration in the individual selection of a residence location is the desire to live among one's friends or among those whom one desires to have for friends; for which reason there will be as many residence neighborhoods in a city as there are social strata. (..) these social considerations explaining the strong pressure in all cities towards the best residence sections. The contrast should be noted that business property is selected by the man from an economic standpoint, and residence property by the woman from a social standpoint. [!!!] Social growth and pressure is upwards from class to class, all ranks being continually recruited from below —as well as dropping members from time to time— and the ultimate aim in residence location is to be as close as possible to those of the highest social position [HURD 1903 p. 77-78]


*


Múltiplos centros e gradientes de preços  

*  

"Efeitos aglomeração" específicos de cada uso. 



Arranjo sócio-espacial e rede física

Embora sujeitos aos mesmos princípios de economia espacial e por ela interrelacionados, arranjo sócio-espacial e rede física são construtos distintos, "camadas" de estrutura urbana relativamente independentes e muitas vezes conflitantes. Ao passo que o arranjo sócio-espacial responde diretamente ao fenômeno da centralidade, que é o efeito generalizado da disputa dos agentes individuais pelas localizações mais acessíveis relativamente às suas prioridades, ou reciprocamente mais vantajosas - geralmente as relações espaciais moradia/emprego e moradia/comércio e serviços -, a rede física pode ser severamente afetada pela tendência à disposição ortogonal dos arruamentos, princípio básico da economia do aproveitamento da terra urbana. 

Na cidade moderna, as forças que regem a organização sócio-espacial não se subordinam às estruturas físicas pré-existentes. A "economia da localização" se sobrepõe à "economia da ocupação" segundo as suas próprias regras. As leis da organização sócio-espacial urbana são as mesmas, e seus efeitos análogos, na cidade "radiocêntrica" de Porto Alegre, nos vastos reticulados de Barcelona e Chicago e na rede de anéis viários tangentes da AUC de Salvador.

*

No capítulo introdutório de seu célebre estudo de 1939 sobre a estrutura e crescimento dos bairros residenciais nos EUA, Homer Hoyt faz uso da seguinte citação: 
"(..) vistas do alto, as cidades norte-americanas são uma coleção de arruamentos reticulados de vários tamanhos, formas e níveis de edificação, com pouquíssimas irregularidades [...] uma monotonia mecânica, estereotipada e desprovida de imaginação onde raramente se enxerga algo parecido com um padrão orgânico”. ["Our Cities, Their Role in the National Economy", Report of the Urbanism Committee to the National Resources Committee, (Washington, D. C., June 1937), p. 5.] 
Isso não o impediu de postular para essas cidades o padrão de organização socioespacial urbana que veio a ser conhecido como o “modelo de setores de círculo”, cuja matriz é, obviamente, a malha radioconcêntrica. 

*
Radioconcêntricas são estruturas radiais que apresentam elementos dispostos em forma de anéis, ou coroas circulares, concêntricos. Dado o caráter heterogêneo e assimétrico da expansão radial urbana, a formação de círculos e anéis concêntricos de quaisquer natureza é altamente improvável – donde a crítica generalizada, mas muitas vezes injusta, ao que ficou conhecido na história do urbanismo como o “modelo de círculos concêntricos” de Burgess, que não ignorava o caráter irregular / desigual / assimétrico da expansão radial das cidades:

It hardly needs to be added that neither Chicago nor any other city fits perfectly into this ideal scheme. Complications are introduced by the lake front, the Chicago River, railroad lines, historical factors in the location of industry, the relative degree of the resistance of communities to invasion, etc. 

É assim que Burgess, após haver enunciado a lei geral de que "as cidades se expandem radialmente em todas as direções", a especifica como desenvolvimento radial desigual resultante de constrangimentos naturais, construídos e socialmente determinados. Vale dizer, antecipa as restrições gerais à matriz radioconcêntrica urbana que, segundo Hoyt, assumirá para o mercado residencial estadunidense a forma do "modelo de setores de círculo" - independentemente das estruturas físicas reticuladas sobre as quais se desenvolvem.
“O plano reticular foi levado para o Oeste com os pioneiros, dado que era o método mais simples de dividir o território. Sua vantagem particular era que uma nova cidade podia ser planejada nos escritórios das imobiliárias do Leste e as terras vendidas sem que nem comprador nem vendedor tivessem nunca visto o lugar". (Britannica 1963 V 5 p 816, “City Planning”)
Temos aqui o fundamento histórico da flagrante contradição, nas grandes cidades do Meio-Oeste norte-americano, entre o arranjo sócio-espacial radial, determinado pela economia das localizações urbanas e a malha urbana básica essencialmente reticulada, determinada pela economia da ocupação do solo. [individual vs. coletivo] 


A ideia de que Burgess formulou um "modelo radioconcêntrico" de organização espacial urbana é um mito construído por seus "sucessores" na "escola de Chicago", Hoyt e Harris/Ullman, baseado na descontextualização do esquema gráfico por ele utilizado para ilustrar o processo de "invasão-sucessão" de zonas urbanas na cidade de Chicago. A longevidade desse mito repousa, por outro lado, na força do verdadeiro "modelo" por ele formulado - tampouco com essa intenção, diga-se de passagem -, o da "expansão radial desigual das cidades em todas as direções", que os modelos posteriores de Hoyt e Harris/Ullman não fizeram senão, cada um à sua maneira, confirmar e enriquecer.

*

Não se trata de que inexistam tendências radiocêntricas na cidade colonial, ou  proto-capitalista, isto é, de que sua organização sócio-espacial não manifeste a lei do menor custo-distância, mas de que aqui ela é uma força débil relativamente a outros determinantes, materializando-se via de regra como expansão linear ao longo da via principal e, em menor medida, como reprodução mais ou menos regular da quadra padrão no sentido transversal. 
"Com o incremento natural da população, foi a cidade [do Rio de Janeiro] descendo das encostas da colina e estendendo-se pelas várzeas que a rodeavam, sobretudo pela orla da praia que cinge o regaço mais abrigado da formosa baía, e corre em face à Ilha das Cobras. Aí, fronteiro ao ancoradouro dos navios, com o fomento do comércio, se ergueram as tercenas e os cais, onde não tardaram a agrupar-se em volta das casas das alfândegas e dos contos as lojas e armazéns dos mercadores. Após essas, embora já mais arredadas da beira-mar, vinham as outras classes trazidas pelo desejo de estarem mais próximas ao centro do povoado, onde é mais ativo o tráfego." (José de Alencar, Alfarrábios, 1873)
Recuando ainda mais longe no passado:
"Revisando-se os trabalhos básicos com uma abordagem sociotopográfica, percebe-se uma clara diferenciação física, social e funcional do espaço urbano baixo-medieval, que torna o fator localização um dado extremamente significativo e muito mais valioso e rico do que o previsto nos modelos anglo-saxões mencionados. Ao contrário do postulado por Vance, surge uma nítida diferenciação econômico-espacial, variável de cidade para cidade, com bairros “ricos, médios e pobres”. A classificação espacial por grandes áreas em função do grau de riqueza média revela esquemas “centro-periferia”: o aumento da distância ao centro traz uma manifesta redução dos níveis médios de riqueza." (Itálicos no original). [ESPUCHE A G e BASSOLS M G, “’Transició’ i ciutat: les transformacions de l’estructura de l’espai”, em Revista d’Historia Moderna – Manuscrits No. 4/5, Abril 1987]
*

O traço distintivo da expansão urbana iniciada em fins do século XIX é o surgimento da indústria da urbanização, traduzida no desenvolvimento, ainda que em ritmos distintos, de três segmentos de mercado indissoluvelmente ligados: de terras periféricas à “cidade”, de construção civil e de serviços públicos. 

A indústria da urbanização de fins do século XIX materializa a combinação, no âmbito espacial das cidades coloniais-imperiais, de novas circunstâncias sócio-econômicas regionais, nacionais e globais de que toda grande cidade brasileira obviamente faz parte, mas está longe de ser o núcleo motor: aumento significativo da população, elevação do rendimento de um número significativo de famílias e disponibilidade de capitais ávidos por valorização. 


A aurora da indústria da urbanização coincide não com a elevação do nível de vida do trabalhadorado da indústria, comércio e serviços, que só se tornará um fator decisivo na Europa e Estados Unidos posteriores à II Guerra Mundial, e ainda mais tarde no Brasil, mas com a formação e expansão da pequena-burguesia urbana: lojistas, prestadores de serviços e, muito especialmente entre nós, funcionários públicos e militares. 


O trabalhadorado nascente participa da transição urbana brasileira por meio da mão de obra migrante - substancialmente mais qualificada e melhor remunerada do que os serviçais egressos da escravidão - para a qual a nascente indústria dos loteamentos dispõe de produtos estrategicamente situados ao longo dos corredores ferro-portuários que ligam as capitais, física e economicamente, a sua interlândias mais dinâmicas e ao restante do país. 


Grosso modo, a conversão dos núcleos urbanos pré-capitalistas em metrópoles radiadas equivale à conversão, pela via da indústria da urbanização - parcelamentos, serviços urbanos, construção civil e crédito -, das propriedades rurais circundantes em bairros residenciais, dos antigos núcleo rurais arraiais em subcentros, e, consequentemente, da própria “cidade” em “centro”. 


Ao contrário do que ocorre com a expansão do núcleo colonial-imperial, a formação da metrópole radiada se dá de fora para dentro, saltando a fronteira da “cidade” para, desde sua periferia semi-rural, soldar-se pouco a pouco ao núcleo original que ainda se expande lentamente. Refluindo sobre o núcleo colonial, a nova metrópole radiada o revoluciona de acordo com suas necessidades, impondo-lhe novos critérios técnicos e estéticos. 

Ao passo que na cidade colonial o empuxo da "economia da localização" é insuficiente para se sobrepor à "economia da ocupação", isto é, o crescimento se dá pela justaposição lenta e progressiva de novas quadras ao aglomerado original, na cidade moderna ocorre o inverso: o mercado de localizações faz saltar a fronteira da ocupação urbana, impondo já não mais um expansão por justaposição de quadras, mas por criação de loteamentos, que se adaptam ao traçado das vias de acesso - radial ao que deixou de ser “cidade” para se converter em "Centro" -, deixando o mais das vezes pelo caminho grandes espaços por ocupar, vale dizer ainda não incorporados ao mercado de produtos-localização.

*

O “radiocentrismo” é o modo de ser da urbanização de mercado desde as primeiras fases de seu desenvolvimento, diretamente associadas à migração de pequeno-burgueses, funcionários públicos e trabalhadores qualificados para localizações periféricas às cidades coloniais, ou proto-capitalistas, como adquirentes de bens imobiliários vendidos no mercado e usuários regulares dos meios de transporte público coletivo produzidos por concessionários. Ele se expressa necessariamente como matriz do arranjo sócio-espacial urbano e como configuração física da rede de meios de transporte público que corresponde a tal arranjo - independentemente da forma da rede de ruas pré-existente.

Na urbanização de mercado, o arranjo sócio-espacial e a distribuição dos meios de transporte público são conduzidos, braço a braço, pela capacidade de oferta de renda dos demandantes de solo-localização, donde a relação predominante, ainda que desigualmente distribuída na matriz radioconcêntrica, entre o complexo principal de comércio-serviços e os agrupamentos, ou bairros, residenciais.

A forma radiocêntrica da rede de ruas, como em Porto Alegre, é um desenvolvimento urbano particular, mais provavelmente resultante da expansão baseada em parcelamentos de solo sucessivos, de escala relativamente modesta, ao longo dos antigos caminhos de acesso ao núcleo pré-moderno; vale dizer, de uma apropriação fragmentária do território circundante ao núcleo pré-moderno para fins da produção capitalista da cidade, na forma do loteamento das terras da nobreza declinante não sujeito a nenhum arranjo espacial pré-determinado, como são tipicamente a Barcelona do eixample de Cerdá e a Chicago parcelada e arruada, desde muito antes de sua fundação, em 1833, por dispositivo legal federal (Land Ordinance of 1785).


*


O sistema viário, por seu turno, é ele próprio um construto complexo, de configuração mista segundo se trate do arruamento em geral ou da rede de vias estruturais. De forma análoga às redes ferroviária e metroviária, o sistema rodoviário principal da metrópole moderna tende a apresentar a disposição radiocêntrica determinada pelo princípio geral do menor custo-distância, ou, mais exatamente, da maior acessibilidade das localizações residenciais ao centro urbano principal. Em geral, esse sistema principal se superpõe, por meio de obras públicas de grande envergadura, ao arruamento, tendencialmente ortogonal, legado pelos ciclos de parcelamento e ocupação privada do solo que o precederam. 

*


A “via perimetral” está diretamente relacionada à expansão urbana baseada na íntima relação dos mercados de imóveis e automóveis, aspecto distintivo das sociedades economicamente desenvolvidas e semidesenvolvidas do século XX. De um modo geral, vias e sistemas de transporte perimetrais resultam (a) do aumento das trocas espaciais entre subcentros não colineares (corradiais), próprios das redes urbanas complexas, e (b) da otimização espontânea ou planejada do movimento periferia-centro por meio da sua redistribuição espacial segundo as capacidades dos sistemas radiais. 

Quase todas as grandes metrópoles do mundo são hoje servidas por grandes vias perimetrais, às vezes dispostas em anéis concêntricos mais ou menos completos. Em algumas megacidades, até o sistema de Metrô conta com a sua linha distribuidora perimetral - duas, no caso de Pequim. 


Porto Alegre metrópole linear 

A “metrópole” de Villaça não é entidade político-administrativa, mas mancha urbana, critério que considero indiscutivelmente adequado ao estudo da estrutura socioespacial das cidades. Uma das partes mais brilhantes de Espaço Intra-Urbano no Brasil é, justamente, a distinção dos processos de conurbação que formam as manchas urbanas das metrópoles brasileiras.

Contudo, uma mancha urbana marcadamente "linear" não supõe uma "estrutura" de natureza outra que não a "radial assimétrica com propensão à formação de aneis concêntricos". A linearidade da mancha urbana é um atributo de forma, não de conteúdo; é o aspecto que a assume a expansão radial em conurbações em que uma das direções do crescimento concentra, por constrangimentos da geografia física, circunstâncias da geografia econômica ou uma combinação de ambas, múltiplos vetores de expansão, que podemos qualificar de “históricos” por exercerem o máximo da sua força em diferentes etapas do processo de desenvolvimento metropolitano.

O problema da "mancha linear" já aparece resolvido na própria obra de Villaça, uma vez que a estrutura espacial de Porto Alegre, a despeito de sua linearidade, não escapa de ser representada, na página 115, junto com todas as demais metrópoles, segundo o esquema de setores de círculo de Hoyt, que, atendendo ao "modelo de Burgess", é construído sobre uma representação radioconcêntrica da estrutura urbana básica da cidade. Pode-se dizer que o modelo de Hoyt, construído a partir de um objeto de pesquisa radicalmente distinto do de Burgess, reafirma não apenas a sua veracidade geral (the tendencies of any town or city to expand radially from its central business district") como as suas restrições quando à homogeneidade / simetria:

“It hardly needs to be added that neither Chicago nor any other city fits perfectly into this ideal scheme. Complications are introduced by the lake front, the Chicago River, railroad lines, historical factors in the location of industry, the relative degree of the resistance of communities to invasion, etc” [Burgess 1925]


O problema da centralidade 

A despeito de seu sucesso e inequívoca utilidade para o estudo da organização espacial urbana, os modelos espaciais da tradição thuneniana, desenvolvidos no âmbito da economia espacial neoclássica nos legaram uma importante lacuna: "dão por assentado algo que queremos explicar - a formação do centro comercial urbano" [SILVA].

Nos modelos da tradição thuneniana, o "centro" urbano é um axioma; um ponto sem dimensão que concentra, a priori, todos os empregos, em relação ao qual se estabelecem os preços prováveis de todas as localizações urbanas e seus respectivos usos - quer pelos princípios teórico-dedutivos do mínimo custo de atrito (HAIG) e do custo constante de localização (WINGO), quer pelo princípio empírico-indutivo da oferta de renda ditada pela preferência do consumidor (ALONSO). [*]  

Decorrem daí três perguntas. (1) Como se forma o centro urbano? (2) Qual princípio, ou combinação de princípios, governa a ocorrência simultânea da moderna distribuição radial-concêntrica das residências e do agrupamento central dos negócios? (3) Por que razão a categoria “economia de aglomeração” é o fundamento dos centros de comércio "planejados" que chamamos de shopping centers, mas não dos centros “orgânicos”, mais exatamente históricos, das cidades?

*

Se podría decir que todo el complejo edificio de la ciencia de la economía espacial reposa sobre el problema del costo de la distancia que uno tiene de vencer para realizar las tareas cotidianas de mantenimiento y reproducción de la vida.

De esa restricción proviene el fenómeno capital de la geografía urbana que es la centralidad, es decir el efecto colectivo, o generalizado, del esfuerzo de cada agente económico para minimizar sus costos de desplazamiento, incluso en una acepción más amplia de costo no monetario. Todos quieren “estar lo más cerca de" las cosas a que atribuyen valor, o de que tienen necesidad, es decir de los recursos socialmente producidos - más o menos valorados por sus atributos naturales. La centralidad es la relación espacial que el costo de la distancia establece entre demandantes y proveedores de productos y servicios de uso o consumo rutinarios.

Para un conjunto de objetos iguales, "lo más cerca de" implica la disposición en anillos sucesivos "alrededor de". En un modelo territorial sencillo de asentamiento de residentes de cara a un mercado como suma de decisiones individuales, "lo mas cerca de" implica situar-se cada uno a lo largo de cuantos caminos puedan existir "a partir de", generando procesos expansivos de tendencia radial. La accesibilidad entra en el esquema.

Y, a medida que la distancia económica a tierras ubicadas entre los caminos radiales pueda ser menos grande que a la próxima parcela disponible a lo largo del radio, ocurre la ocupación progresiva de los intersticios, siguiendo ramificaciones que, con el paso del tiempo, tienden a fusionarse como anillos más o menos regulares de ocupación alrededor del "centro". 



Sin embargo, las leyes de la economía espacial no actúan en una situación ideal donde solo existen residentes y un mercado. Además, su clara manifestación en la red urbana supone al menos un mercado de suelo e costos de transporte. Por lo que, ellas no determinan la forma física de la red urbana más que en un sentido muy general, y sobrepuesto a la trama histórica de la ciudad, el de la expansión radial en múltiples direcciones, con cierta propensión a la consolidación de anillos concéntricos. Más exactamente, ellas determinan el patrón de distribución y densidad de los distintos usos del suelo sobre la red física, que se puede representar en términos modernos como una estructura radial de desarrollo desigual en las múltiples direcciones alrededor de un "punto" focal - tipicamente el lugar de los comercios, servicios y gobierno -, como en el diagrama siguiente, derivado del concepto de distribución residencial según sectores de círculo de Homer Hoyt, 1939. 

La "expansión radial de la ciudad en multiples direcciones con cierta propensión a la consolidación de anillos concéntricos", es decir el esquema radioconcéntrico, puede se exhibir más o menos claramente en el plan físico - como en el mapa de Porto Alegre del año 1928 - a depender de como lo permita el sítio natural y de cuanto no lo impidan las regulaciones urbanísticas y los planes de urbanización, en especial los dameros mas o menos vastos da la época moderna. 

La generalización de la produción para el intercambio, es decir de la produción / circulación / consumo de mercancías, materiales y imateriales, dentre ellos los propios bienes inmuebles y servicios que constituyen el substracto material de la urbe, en la sociedad capitalista madura, trajo consigo, además del crecimiento exponencial de las ciudades, la proliferación del fenómeno de las centralidades urbanas. Las metrópolis no tienen una, sino que múltiples centralidades, con áreas de influencia muy a menudo superpuestas. 

La centralidad tiene una importancia capital en la estructura de la ciudad moderna. Ella manifesta en el plan geográfico la escasez económica del suelo, forma de escasez que se sobrepone a todas las demás - escasez por restricciones normativas al uso y edificabilidad del suelo, escasez relativa a la variedad y calidad de los servicios, escasez por incompatibilidades raciales, sociales o étnicas etc. - y que resulta de la competencia de las famílias y firmas por las localizaciones reciprocamente más ventajosas. La centralidad es como una contración del espacio del asentamiento, tanto más clara y intensa cuanto más integrada es la producción y consumo de bienes y servicios urbanos a la economía de mercado. 

Así como las áreas de anillos sucesivos de igual sección alredor de un punto son vertiginosamente decrecientes en la aproximación al mismo punto, la cantidad de espacio disponible alrededor de um cluster de comercio y servicios será tanto más pequeña y escasa respecto a la demanda, y por lo tanto más cara, cuanto más cerca nos pongamos de dicho cluster. Por decirlo de otra manera, aunque todos los puntos de un territorio urbano fueran homogéneamente servidos de infraestructura y servicios a la parcela, sería imposible que fueran todos igualmente próximos a los centros de trabajo, consumo, servicios personales, ocio etc.

La contracción del espacio que supone la centralidad en la moderna economía de mercado es procesada, compensada y de esa forma continuamente reproducida, en el marco del propio mercado de productos inmobiliarios y hasta donde lo permiten las limitaciones técnicas y normativas existentes en un dado momento, por la intensificación del uso del suelo mediante la edificación en altura, que multiplica las unidades inmobiliarias erguidas sobre cada parcela, y el correspondiente fraccionamiento jurídico de la propiedad, que propicia a su titular la multiplicación de las rentas de localización.

Respecto al campo la ciudad es, ella misma, centralidad. La centralidad es como una norma reguladora intrínseca del mercado de suelo, que no ha sido creada por ningún gobierno; una fuente de escasez que yace en el corazón de la economía del espacio socialmente construído, es decir histórico, y es su propio modo de ser. Una ciudad en la que no hay ninguna especie de “centro” solo puede existir en el plan ideal, como en una sociedad desarrollada fictícia donde no hay mercado, o en el plan teórico de una sociedad sobredesarollada igualitaria más allá del mercado.


Distância, aglomeração, centralidade: uma hipótese

O que se segue é um modelo territorial simples da conversão acelerada, por força de um boom de preços de certo produto agrícola, de um pequeno assentamento de famílias de trabalhadores rurais em núcleo urbano. Sua finalidade é destacar a hipotética inter-relação do custo da distância e da economia de aglomeração no processo de formação e desenvolvimento das centralidades urbanas.

Não se trata, bem entendido, de uma hipótese arbitrária, caída do céu. Ela foi deduzida das constatações empíricas e formulações teóricas de estudiosos das cidades da primeira metade do século XX, notadamente Hurd (1903), Haig (1926) e Burgess (1925-29) [1], sobre a expansão radial e o custo da distância, bem como da grande ausência percebida em todos esses trabalhos - e todos os modelos posteriormente elaborados pela economia espacial: a formação do próprio centro. Esse background será descrito na versão completa da presente contribuição, ainda em construção.

*
O modelo representa um núcleo agrícola em expansão ao redor de um empório [a] situado no entroncamento de três caminhos, onde se abastecem as famílias trabalhadoras. Os rendimentos das famílias provêm do trabalho nas lavouras circundantes e de serviços prestados a outras famílias da própria comunidade, executados por todos os seus membros em idade laboral. O deslocamento às lavouras é feito a pé, ou por bicicleta, sendo aleatórias as diferenças de tempo de percurso relativamente ao local de residência. Não há, portanto, custo monetário de transporte, mas o tempo despendido no suprimento da unidade (compras e serviços) é perda de tempo de trabalho remunerado, portanto de rendimento das famílias. Todas as residências têm tamanho similar e pertencem às empresas agrícolas proprietárias das terras, às quais se pagam aluguéis. O empório paga aluguel a um proprietário residente na grande cidade mais próxima.

A minimização do tempo de trabalho perdido em tarefas de abastecimento doméstico exige que as famílias se estabeleçam à menor distância possível do empório, portanto ao longo dos caminhos existentes, gerando um processo expansivo do assentamento de tendência radial [A]. À medida, porém, que a distância a terrenos intersticiais se torna igual ou menor que às próximas parcelas disponíveis ao longo dos caminhos radiais, inicia-se a ocupação progressiva dos setores circulares seguindo ramificações [B] que, com o tempo, tendem a fundir-se em anéis mais ou menos regulares de ocupação ao redor do empório [C].


A acelerada expansão do assentamento ao redor do empório converte, pouco a pouco, os caminhos convergentes em corredores de acessibilidade - atributo relacional das localizações que inclui o suporte viário e, no nosso caso, o custo econômico do deslocamento. A tendência à equalização das distâncias radiais e radio-circunferenciais ao empório determina a configuração estelar, por oposição a circular, da urbe em formação.

O desenvolvimento lógico deste modelo é que um segundo comerciante, por exemplo um boticário (b), não terá nenhuma razão para estar em outra localização que não a vizinhança imediata do empório. E não apenas por ficar em um ponto mais acessível aos fornecedores, mas, principalmente, porque assim (1) proporcionará a cada família assentada poupar custos de deslocamento correspondentes à possibilidade de dirigir-se regularmente a ambos os estabelecimentos em uma única viagem e (2) maximizará a economia coletiva em custos de deslocamento por estar à distância ótima de todos os potenciais clientes.

O custo de deslocamento não incorrido pelo conjunto dos residentes em viagens exclusivas a um e outro estabelecimento - e não imediatamente gasto como renda de aluguel - poderá então se converter em receita adicional para o empório (a) e a botica (b) e, por extensão, para todos os demais estabelecimentos e prestadores de serviços - a padaria (c), o barbeiro (d), o dentista (e), o armarinho (f) - que vierem a se instalar naquilo que, a partir de certo grau de expansão da comunidade e aglomeração das firmas, chamar-se-á "centro urbano”.



A rápida expansão radial-concêntrica do assentamento e a concomitante formação do centro urbano, que marcam a transição do núcleo rural à categoria de “cidade”, trarão consigo a geração de novos empregos no comércio, serviços e pequena indústria centralmente localizados e o gasto monetário dos trabalhadores com serviços de transportes. A acessibilidade das firmas aglomeradas no centro urbano lhes proporcionará, então, o benefício adicional da máxima oferta de mão de obra ao mínimo custo de transporte, fatores de estabilização do preço da força de trabalho.

*
Chamo de economia primária de aglomeração o benefício que a contiguidade proporciona às firmas de comércio e serviços de varejo por efeito da conversão dos custos diretos e indiretos de deslocamento poupados aos residentes de um assentamento urbano em gastos de consumo. À minimização do dispêndio coletivo com deslocamentos proporcionado pela disposição radial-concêntrica do assentamento corresponde - descontada a renda paga em aluguéis - a maximização das receitas do comércio e serviços de varejo aglomerados em seu centro.

Custo (poupado) da distância e economia (primária) de aglomeração aqui se apresentam, pois, como categorias econômico-espaciais inter-relacionadas, as duas faces, ou dois aspectos indissociáveis, do fenômeno da centralidade em um ambiente urbano, cujo fundamento é a relação espacial mutuamente vantajosa que estabelecem entre si os residentes urbanos e os fornecedores de bens e serviços de varejo.

Movidos por seus interesses particulares, residentes e comerciantes / prestadores de serviços geram um arranjo espacial que assegura aos primeiros o menor custo coletivo de deslocamento e aos segundos o maior ganho de localização: do lado dos residentes-demandantes uma distribuição de configuração radial-concêntrica ao redor dos varejistas, do lado dos varejistas a aglomeração no centro da rede radial-concêntrica - conectando-se os dois lados dessa equação sócio-espacial em permanente desequilíbrio por meio de corredores de acessibilidade.

Ao passo que os residentes buscam, pela via da proximidade aos estabelecimentos principais, minimizar seu custo individual de deslocamento, os varejistas de bens e serviços buscam, por meio da aglomeração no centro da rede, capturar a maior parte possível da economia coletiva em custos de deslocamento - disputando-a aos proprietários do solo, que a exigem como renda de aluguel - para convertê-la em consumo das famílias, consequentemente em lucro comercial. O lucro comercial excedente assim gerado tenderá, por sua vez, a ser convertido em renda de aluguel econômica e espacialmente concentrada.

Rendimentos disponíveis “não imediatamente gastos em renda de aluguel” supõem que, numa comunidade urbana em expansão com economia em crescimento, a renda extraída pelos proprietários do solo-localização nunca poderá, por mais que o persigam, zerar o saldo de consumo (aquele que excede as necessidades básicas) da totalidade das famílias tampouco o lucro econômico (aquele que excede o lucro médio) da totalidade das firmas.

A aglomeração aparece, assim, ao comércio e serviços de varejo, como exigência incontornável da competição com a propriedade fundiária pela captura dos saldos de rendimento das famílias.

No conjunto, a disposição radial-concêntrica dos residentes-demandantes ao redor do aglomerado de varejistas opera como acelerador do consumo de bens da agricultura e da indústria, portanto do crescimento econômico em um regime de mercado, tanto mais necessária quanto menor for a produtividade do trabalho e o nível dos salários e tanto mais vital quanto mais pesado for o ônus do aluguel sobre os rendimentos das famílias e os lucros do varejo.

Fosse a cidade mero espelho, ou materialização instantânea e imutável, desse "arranjo ótimo e mutuamente vantajoso" entre um pequeno número de assentados e seus respectivos varejistas e prestadores de serviços, essa seria a configuração urbana mais eficiente do ponto de vista econômico - o "plano urbano da mão invisível do mercado” -, cujo conteúdo já apareceria, aliás, como manifestamente social.

Com o auxílio deste modelo, eu considero a hipótese de que as famílias se distribuem ao redor do comércio para reduzir ao mínimo o seu custo de deslocamento e o comércio se aglomera no centro da rede para disputar aos proprietários de imóveis o excedente de consumo das famílias. Em outras palavras, sugiro que custo de deslocamento e economia de aglomeração são categorias econômicas inter-relacionadas que explicam a configuração básica da cidade moderna: a expansão radial-concêntrica, ou, talvez mais exatamente, a “descentralização centralizada” formulada por Burgess a propósito de Chicago em 1925.

*

A hipótese sócio-histórica derivada do modelo econômico-espacial aqui proposto é a de que a interdependência entre o custo econômico da distância e a economia primária de aglomeração, assim como a configuração espacial radial-concêntrica que corresponde a essa relação, subjazem ao desenvolvimento de qualquer cidade na época moderna [2] ainda que não se apresentem, em sua forma pura, em nenhuma, dentre outras razões a de que os processos urbanos se dão sobre uma base material de grande rigidez e longa duração - arruamento, estrutura parcelária, casario - herdada dos períodos precedentes.

Como qualquer outro modelo de estrutura e/ou expansão urbana, este é uma reconstrução idealizada de fragmentos de realidade que o autor supõe existir, ou ter existido, em uma certa coleção de cidades em dada etapa ou trânsito de seu desenvolvimento histórico. A identificação e concatenação desses fragmentos é, portanto, o desafio que se apresenta à continuidade da pesquisa.

*

Apontamentos: HURD 1903 - crescimento urbano axial e central


O que aqui apresento aos leitores é uma compilação de seções e passagens de Richard Hurd (Principles of City Land Values, 1903) sobre sua concepção de “crescimento urbano axial e central”.

Para além da imensa riqueza de observações históricas, geográficas, urbanísticas e até arquitetônicas que este profundo estudioso do parque imobiliário das grandes cidades estadunidenses de inícios do século XX tem a oferecer, e que justifica por si só a leitura atenta do material aqui reunido, o postulado de que o crescimento das cidades se dá necessariamente sob aquelas duas formas combinadas é, provavelmente, a mais instigante e profícua contribuição de Hurd ao estudo da organização espacial urbana.

Vejo-o como uma promissora pista para avançar no entendimento da relação entre “centro” e “periferia”, ou da estrutura tendencialmente radioconcêntrica da cidade moderna e contemporânea, cronicamente obscurecida pela noção intuitiva e geralmente aceita de que a cidade se expande a partir de um centro axiomaticamente estabelecido. 

Em sua obra magna de 1998 Espaço Intra-Urbano no Brasil [1] (Cap. 10, Os centros principais), Villlaça observou a impossibilidade lógica e histórica de um centro que pré-existe à sua própria periferia, e vice-versa, contradição que se apresenta já em 1925 na descrição feita por Burgess daquele que veio a ser conhecido como “o modelo de estrutura urbana em círculos concêntricos”:

Esta figura é uma representação ideal da tendência que tem toda cidade de se expandir radialmente a partir de seu distrito central de negócios – no esquema, ‘The Loop’ (I). [2] 

O problema reaparece, na década de 1960, no modelo alonso-thuneniano da economia espacial, tal como apontado pelo professor Correia da Silva, da Universidade do Porto, num trabalho de doutoramento do ano de 2004 intitulado “Space in Economics — A Historical Perspective”:

A relevância contemporânea do modelo de Von Thunen reside na sua adaptação à economia urbana, que permitiu o estudo da renda urbana e suburbana e da localização das famílias e atividades econômicas nas cidades. (..) A característica fundamental da economia urbana refletida no modelo é a necessidade que têm as famílias de ir ao centro para trabalhar usando um sistema radial de transportes. (..) Um defeito [fault] dessa abordagem é dar por resolvido [it assumes] algo que queremos explicar: a existência do centro comercial urbano [urban central market].[3]

Com uma redundância que talvez não seja casual, Batty assim expressa, em recente artigo aqui divulgado sobre as cidades lineares, a fórmula geral de Burgess nos termos da economia espacial alonso-thuneniana:

“As cidades tendem a crescer ao redor de algum centro, em zonas concêntricas de uso do solo ordenadas de acordo com sua capacidade de pagar aluguel [ofertar renda], ligadas ao núcleo por meio de rotas radiais bem definidas que convergem para o centro”.[4]

Em contraste, e ainda que não se pretenda uma teoria da configuração radial-concêntrica da cidade moderna, o crescimento urbano simultaneamente “axial” e “central” a partir do ponto de origem postulado e descrito por Hurd em 1903 estabelece uma clara relação de reciprocidade e interdependência espacial, não valorada por ele em termos monetários mas inegavelmente econômica, entre o comércio de varejo e os residentes urbanos que dele dependem para se prover de bens e serviços. Trata-se, para os varejistas, antes de mais nada, de se agrupar no “lugar que mais convém aos clientes” para "assegurar-lhes que não deixarão de encontrar aquilo de que precisam".

O ponto de vista das firmas de varejo, neste caso, aponta para o que veio mais tarde a ser batizado na teoria econômica como “economia de aglomeração”, porém com um conteúdo distinto. Não se trata de externalidades positivas da concentração geográfica para as firmas individualmente consideradas, mas de benefícios coletivos diretos para o comércio de varejo agrupado no lugar mais conveniente ao conjunto das famílias do assentamento urbano: "os lojistas não se aglomeram para comerciar uns com os outros, mas para poupar aos seus potenciais fregueses os inconvenientes [custos diretos e indiretos] de buscar o que precisam em lojas dispersas pela cidade. O fato de uma loja atrair o freguês e outra fazer a venda tende a ser compensado, no longo prazo, pelo intercâmbio de fregueses”.

Significa que as famílias precisam residir o mais próximo possível do comércio tanto quanto as firmas precisam se estabelecer à menor distância agregada possível das famílias.

O assentamento dos residentes ao longo dos eixos radiais e suas adjacências, sempre o mais próximo possível do centro da rede, e a aglomeração dos varejistas no assentamento original e segmentos radiais contíguos aparecem, portanto, como manifestações economicamente interrelacionadas do mesmo fenômeno quintessencialmente urbano da aglomeração em geral. Toda a cidade é aglomeração.

Vale recuperar aqui a noção hurdiana de “crescimento urbano simultaneamente axial e central, em todas as direções a partir do ponto de origem” não do centro da cidade, que ainda está por se formar. A formação do centro urbano como desdobramento histórico do assentamento resulta de um processo de “contínua especialização nos negócios e diferenciação nas classes sociais”, que começa com “a separação de comércio e residência”, originalmente unidos em edificações de altos e baixos agrupadas junto aos elementos primordiais: embarcadouros, encruzilhadas, travessias fluviais etc. Ao passo que “mesmo nos menores povoados é vantajoso para as poucas lojas existentes estar aglomeradas”, as novas residências buscam a periferia imediata do assentamento, "onde os preços do solo são mais baixos", porém à menor distância possível dos comércios “para que os lojistas possam se deslocar a pé até o trabalho”. "Com o crescimento da cidade, a tendência é a concentração dos negócios no núcleo comercial e a dispersão periférica das residências ao longo dos eixos radiais. Toda expansão periférica será acompanhada de uma correspondente adaptação do centro de negócios."

Esses fragmentos reunidos compõem uma razoável descrição de como se dá o processo de especialização espacial pelo qual as residências formam a(s) periferia(s) urbanas e os negócios o centro e os subcentros. 

Aqueles dois tipos interrelacionados de economia de aglomeração poderiam, consequentemente, ser ditos primários, de natureza 100% social, explicativos da configuração geral e da dinâmica expansiva das cidades modernas, ao passo que as economias de aglomeração descritas e estudadas no âmbito da economia neoclássica, como os benefícios privados do agrupamento de fábricas em distritos especializados, do varejo em shopping centers e dos bancos no centro financeiro, seriam formas específicas que poderíamos considerar secundárias, ou derivadas. A metrópole capitalista não surgiu da fábrica, do shopping center, nem da Bolsa: tipicamente, ela expandiu e reconstruiu, de acordo com suas necessidades, a própria "cidade moderna", definida por Park como sendo, antes de tudo, um “lugar de trocas, que nasceu e cresceu ao redor do mercado”. [5] A propósito, cabe registrar aqui a forma como Borrero Ochoa (2018), com base em Camagni, descreve a relação entre o "princípio da aglomeração" e o desenvolvimento das cidades: 

“O princípio da aglomeração nasce nas aldeias rurais e povoados que vivem dos camponeses ou agricultores da região. (..) aos domingos, dia de descanso, o comércio e praças de mercado desses povoados se abrem para que os habitantes rurais venham comprar alimentos, insumos agrícolas e buscar serviços de saúde ou mecânica automotriz. (..) Assim se desenvolve uma cidade a partir de um pequeno povoado dotado de certa dinâmica econômica. [6]

A hipótese de uma relação quantitativa, vale dizer monetária, entre aqueles dois tipos interdependentes de economias de aglomeração teria, naturalmente, de levar em conta a parte dos rendimentos das famílias e do lucro das firmas de varejo que a propriedade da terra reclama como renda de aluguel, aquela tanto maior quanto menor a distância ao núcleo varejista, portanto inversamente proporcional ao custo de deslocamento, e esta tanto maior quanto menor a distância agregada ao conjunto das famílias, vale dizer mais próximo do centro geométrico da rede. Não tenho a pretensão de desenvolvê-la. Basta-me aqui referir que a redução do poder de consumo dos residentes por aumento de distância ao centro comercial, e consequente gasto de transporte, além de imediatamente dedutível dos efeitos de curto prazo das políticas contemporâneas de “tarifa zero” nos transportes urbanos, é uma restrição logicamente inquestionável da teoria dos lugares centrais de Christaller (1933):

"Assim, um consumidor que tenha de se deslocar a um lugar central para adquirir um bem terá menos dinheiro disponível do que um que viva no próprio lugar central, porque tem de pagar o custo do transporte. Ficará, assim, sujeito a comprar menos. Este efeito de fricção da distancia, causado pelo custo do transporte (pressuposto 1) provoca o decréscimo da procura com a distância ao lugar central." [7]

O postulado hurdiano do “crescimento urbano em todas as direções, simultaneamente axial e central”, parece reforçar a hipótese, avançada em artigo já publicado neste blog, [8] de que a estrutura da grande cidade moderna é um arranjo sócio-espacial derivado da disputa incessante entre consumidores e fornecedores por vantagens individuais de localização, sim, de tal maneira, porém, que à economia coletiva do “crescimento residencial axial regulado pelo princípio da [máxima] acessibilidade”, que traduzo como mínimo custo generalizado de deslocamento ao(s) aglomerados(s) comercial(is), corresponde, descontado o montante pago em aluguéis, o benefício coletivo do “crescimento central dos negócios regulado pelo princípio da [máxima] “contiguidade” [proximity], que assimilo ao conceito econômico neoclássico de "economia de aglomeração."

Das vantagens recíprocas, indicadas por Hurd, da localização relativa das famílias e firmas na cidade em expansão, vale dizer do crescimento urbano simultaneamente “axial” e “central”, podemos derivar a hipótese de que a configuração tendencialmente radial-concêntrica das cidades modernas resulta de um princípio de economia de aglomeração generalizado e socialmente construído, algo como o yin-yang da cidade capitalista, em que o “crescimento axial” é a forma de aglomeração própria dos residentes, que minimiza os custos coletivos de deslocamento, e o “crescimento central” a forma de aglomeração própria das firmas, que converte a economia coletiva das famílias em lucros comerciais (e industriais), primeiro sob a forma elementar da maximização das vendas de varejo e, logo, sob a forma complexa da maximização da mão de obra disponível ao mínimo custo de transportes, vale dizer do barateamento relativo da força de trabalho.

fundamento da configuração tendencialmente radio-concêntrica da cidade capitalista madura é, portanto, o próprio processo de produção-distribuição-consumo de bens e serviços. As famílias se aglomeram o mais próximo possível dos fornecedores e empregadores, e estes o mais próximo possível do conjunto das famílias, para obter o maior benefício, respectivamente, de seu trabalho e de seu capital - sujeitando-se, por conseguinte, a pagar mais aluguel. Espécie de imposto privado sobre o privilégio de ocupar as localizações urbanas mais centrais e proveitosas, a renda da terra urbana é, como eficazmente demonstrado pelo modelo alonso-thuneniano da distribuição dos distintos usos, a medida e o princípio regulador de sua escassez constitutiva. 

Dado que a produção de riqueza na formação social capitalista supõe, e é tanto maior quanto maior for o consumo de mercadorias, materiais e imateriais, segue-se que a aglomeração radial-periférica dos residentes urbanos ao redor da aglomeração central dos varejistas e prestadores de serviços ou, mais simplesmente, a configuração tendencialmente radioconcêntrica das cidades em expansão, é, em si mesma, um dispositivo espacial facilitador e acelerador do processo de acumulação do capital em geral, uma máquina de economia social sobre a qual irá se desdobrar, diversificar e expandir - a ponto de se converter em seu contrário, uma máquina de deseconomia social - a organização espacial intrinsecamente desigual da grande metrópole contemporânea. 
____
NOTAS

[1] VILLAÇA Flavio, Espaço Intra-Urbano no Brasil. FAPESP São Paulo 2001

[2] BURGESS E W, “The Growth of the City: An Introduction to a Research Project", em PARK R E, BURGESS E W e MCKENZIE R D, The City: Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment, The University of Chicago Press, 1984: Chicago e Londres, p. 50.
http://shora.tabriz.ir/Uploads/83/cms/user/File/657/E_Book/Urban%20Studies/park%20burgess%20the%20city.pdf

[3] CORREIA da SILVA J (2004), "Space in Economics — A Historical Perspective".
https://www.fep.up.pt/docentes/joao/material/space.pdf

[4] BATTY M, "The Linear City: illustrating the logic of spatial equilibrium". Comput.Urban Sci. 2, 8 (2022)
https://link.springer.com/article/10.1007/s43762-022-00036-z

[5] PARK R E, “The City: Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment”, em  PARK R E, BURGESS E W e MCKENZIE R D, The City. The University of Chicago Press, 1984: Chicago e Londres, p.12.
http://shora.tabriz.ir/Uploads/83/cms/user/File/657/E_Book/Urban%20Studies/park%20burgess%20the%20city.pdf

[6] BORRERO OCHOA O, Economía Urbana y Plusvalia del Suelo. Bogotá: Bhandar Editores 2018, p. 65.

[7] [BRADFORD M G e KENT W A, Geografia Humana e Suas Aplicações (Tradução do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Supervisão de Raquel Soeiro de Brito e Paula Bordalo Lema)

[8] JORGENSEN P, “Distância, aglomeração, centralidade: uma hipótese”. À beira do urbanismo  (blog) 08-03-2021

Do princípio geral às cidades reais 

A estrutura básica da grande cidade moderna é um arranjo sócio-espacial derivado da disputa incessante entre consumidores e fornecedores por vantagens individuais de localização, de tal maneira que à economia coletiva do “crescimento residencial axial regulado pelo princípio da [máxima] acessibilidade”, que traduzo como mínimo custo generalizado de deslocamento ao(s) centro(s) comercial(is), corresponde, descontado o montante pago em aluguéis, o benefício coletivo do “crescimento central dos negócios regulado pelo princípio da [máxima] “proximidade”, que assimilo ao conceito econômico de economia de aglomeração.

*

Na sociedade capitalista madura, em que se generaliza a produção para a troca, vale dizer a produção de mercadorias incluídas os próprios bens imobiliários e serviços urbanos, os princípios econômicos interdependentes, ou reciprocamente determinados, do mínimo custo de deslocamento e do máximo ganho de aglomeração se traduzem na configuração tendencialmente radial-concêntrica da expansão urbana, quaisquer que sejam as variantes determinadas por obstáculos naturais, elementos previamente construídos ou restrições socialmente estabelecidas.


*

Na cidade moderna, interpõem-se à livre e pura manifestação do "arranjo ótimo de mercado” discutido acima (1) as limitações geomorfológicas do território, (2) o hardware urbano das formações econômicas passadas, que têm a faculdade de durar décadas e até séculos, (3) a grande propriedade fundiária herdada do períodos precedentes e (4) os planos e regulamentos urbanísticos, incluído o caso-limite da "cidade nova", cujo projeto constitui, invariavelmente, uma espécie de Leito de Procusto ao qual o impulso da expansão urbana regida pelas leis do mercado é obrigado primeiro a se adaptar e, logo, a transbordar.

*

A configuração urbana radial-concêntrica subjaz a toda grande cidade da época moderna como manifestação das leis espaciais da economia de mercado, mais ou menos visível nas estruturas que escolhamos observar. Por exemplo, ela é transparente no transporte público subterrâneo, bastante clara no sistema rodovias expressas metropolitanas, mas muitas vezes oculta, ou semi-oculta, nos arruamentos urbanos, sujeitos à primazia de grandes planos urbanísticos como em Barcelona, do parcelamento apriorístico do solo como em todo o meio-oeste dos EUA, e de obstáculos geomorfológicos como em qualquer cidade serrana.


*

Se a centralidade urbana pode ser deduzida da mera conversão ao consumo dos gastos de deslocamento poupados, por um número crítico de famílias trabalhadoras, ao armazém da vila, não admira que com a ascensão, a partir da Segunda Guerra Mundial, de uma vasta classe média detentora de consideráveis excedentes de consumo sobre as necessidades básicas e as despesas de transportes, os subcentros e, logo, os shopping centers, tenham proliferado como cogumelos em todas as grandes metrópoles do planeta.


*

Por outro lado, esse "arranjo ótimo de mercado" é tanto negado pela complexidade de sua forma desenvolvida - segmentos econômicos com distintas necessidades quanto ao uso do solo e classes sociais com interesses econômicos contraditórios - quanto destruído por sua própria dinâmica: imensas deseconomias de escala resultantes da super- expansão da malha e correspondente super-adensamento dos espaços centrais, as quais recairão sobre o capital social total na forma de investimentos e serviços públicos intrinsecamente deficitários.



Formas históricas da "economia de aglomeração"

Um dos traços mais marcantes da grande cidade contemporânea é o revolucionamento incessante dos empreendimentos voltados à multiplicação dos benefícios econômicos da aglomeração – e da renda do solo que lhes corresponde. 

Dos centros comerciais de bairro aos shopping-centers aos grandes complexos de serviços, comércio e transportes, trata-se, em todos os casos, de recriar os centros urbanos, lugares históricos das economias de aglomeração, em condições “controladas” que maximizem, do ponto de vista das firmas e - supostamente - de seu público-alvo, as vantagens combinadas da urbanização e da localização. 

Rua comercial, shopping center, centro urbano moderno e complexo comercial-financeiro são, pois, distintas formas históricas do fenômeno quintessencialmente urbano da economia de aglomeração – benefício que um dado conjunto de firmas extrai de sua relação de proximidade espacial. 

Materializadas em estruturas físicas sujeitas à temporalidade característica da ocupação e usos da terra, essas formas históricas, ainda que sempre concorrentes e por vezes excludentes no longo prazo, são em geral concomitantes, e até complementares, testemunhas do caráter constitutivamente desigual do desenvolvimento econômico em geral e urbano em particular.

Fica a pergunta: por que razão a categoria “economia de aglomeração” é o fundamento dos centros de comércio "planejados" que chamamos de shopping centers, mas não dos centros “orgânicos”, mais exatamente históricos, das cidades?

*

A contradição mais notória entre a racionalidade arquitetônica e as leis da economia urbana envolve a rede de acessibilidade: ao passo que a “economia da localização” comanda a formação da rede radial-concêntrica de circulação e transportes, a “economia da ocupação da terra” tende à generalização da rede local reticulada. Uma segunda contradição, mais sutil e difícil de demonstrar, talvez seja a que opõe o padrão de densidade espacial considerado adequado às zonas residenciais aos ganhos de aglomeração esperados pelos negócios no centro urbano principal.

O centro comercial da cidade planejada exibe, via de regra, um grau de concentração espacial muito menor do que aquele que geralmente encontramos nas cidades de crescimento “orgânico”. Parece razoável supor que a “desordem” do centro urbano não planejado, caracterizado pelo máximo grau de concentração espacial dos negócios, a começar do comércio varejista, é sensivelmente mais eficaz do ponto de vista do crescimento econômico que a ordem urbana determinada pelos “projetos de cidade”, com ruas largas, canteiros centrais, quadras regulares e lotes relativamente grandes. Em termos simples, uma hora de caminhada pelo centro comercial compacto de uma cidade “orgânica” de, digamos 200 mil habitantes, permite ao residente percorrer uma quantidade e variedade substancialmente maiores de lojas e prestadores de serviços do que, por exemplo, em uma cidade “planejada” de igual tamanho e padrão de vida, como Erechim RS, ou Chivilcoy, no pampa bonaerense.

É certo que a intensidade do efeito-aglomeração em um centro urbano depende muito mais da posição da cidade no crescimento regional e nacional do que da densidade de ocupação do solo central: a trama regular não parece ter constituído obstáculo à formação acelerada, no último quarto do século XIX, do Loop de Chicago como um dos mais potentes centros urbanos de todo o planeta.

Será, de fato, a densificação dos centros urbanos sobre a base do tecido urbano herdado do passado pré-capitalista mais eficiente para os negócios e para o crescimento econômico urbano do que a densificação propiciada pelos planos racionalistas da época do urbanismo dos traçados?

É recorrente a ideia de que a largura das ruas sempre implica em valorização devido à maior quantidade de tráfego que acomoda. Mas numa rua comercial, a largura é praticamente irrelevante (..). Ainda que alguns negócios prefiram locais abertos, as ruas comerciais estreitas têm a vantagem da comunicação facilitada entre os dois lados, principalmente quando a largura da rua não limita a altura dos edifícios [HURD R, Cap IV Ground Plan of Cities]



O caráter histórico do "Centro"

Quando, nos primeiros vinte anos deste século, o quadro imobiliário do centro de nossas cidades foi totalmente renovado com a demolição do colonial e a implantação do neoclássico e do ecletismo, não houve alteração na estrutura urbana, pois esses centros não perderam sua importância, sua posição, natureza nem localização. [VILLAÇA Flavio, Espaço Urbano no Brasil] [Destaque PJ]

As duas primeiras décadas do século XX marcam, no Brasil, o nascimento das metrópoles capitalistas, cujo traço distintivo é a urbanização de mercado: de um lado as empresas loteadoras, contrutoras e prestadoras de serviços públicos urbanos, de outro uma classe média ascendente - comerciantes, militares, funcionários, especialistas, artesãos e trabalhadores qualificados - capaz de arcar com custos de transportes e financiamentos a longo prazo. 

Por não considerar o salto qualitativo realizado na transição da urbanização mercantil-escravista para a urbanização capitalista, Villaça perde de vista que é assim que nasce o “centro” no que até então era “a cidade”.  Embora não perca a sua "localização, importância e posição", o velho núcleo colonial-imperial perde, sim, a sua “natureza”: sobre a cidade que comanda o campo ao seu redor, nasce o centro que comandará a metrópole. O novo centro da urbanização de mercado começará, então, a se estender na direção da migração dos abastados e a se desdobrar em subcentros em todas as direções. Em algum deles poderá se fixar, muito mais tarde, o novo polo financeiro da metrópole.

É a indústria da urbanização, ou urbanização de mercado, que dá conteúdo e forma à urbe radiocêntrica. É ela que converte as chácaras semi-rurais em bairros residenciais, os antigos caminhos rurais em vetores radiais de expansão, os aldeamentos satélites estrategicamente situados em embriões de futuros subcentros e, finalmente, a própria “cidade” em “centro”! - uma mudança geográfica radical e meteórica na escala temporal da modernidade urbana, portadora de uma percepção coletiva do espaço inteiramente renovada ainda que pouco acessível aos hábitos mentais das antigas gerações: sua transposição para a linguagem corrente levaria ainda algumas décadas para se completar. 

*

O uso do termo "cidade" para designar o que hoje chamamos "Centro  está registrado em um sem-número de obras literárias da segunda metade do século XIX e primeiro quarto do século XX. 

José de Alencar 1870:

“Naquela mesma tarde em que o deixamos na sua casa de Botafogo, terminado o jantar, mandou aprontar o tílburi e voltou à cidade. Seu aparecimento àquela hora na Rua do Ouvidor causou estranheza: um leão de raça, como ele, não passeia ao escurecer, sobretudo no centro do comércio, onde só ficam os que trabalham.”  [Alencar, José de. A Pata da Gazela (1870), em  Obras Completas de José de Alencar II: Romances Urbanos p. 454. Edição do Kindle.]

Aluísio de Azevedo (1890): 

"Uma verdadeira patuscada esse passeio à cidade! (..) Ninguém tomou bonde; e por toda a viagem discutiram e altercaram em grande troça, comentando com gargalhadas e chalaças gordas o que iam encontrando, a chamar a atenção das ruas por onde desfilava a ruidosa farândola. [Azevedo, Aluísio. O Cortiço (1890). Em Obras Completas de Aluísio Azevedo II: Romances vol. 2 (1889-1901) Edição do Kindle.]

Em “Maria Cora”, conto de Machado de Assis ambientado no Rio de Janeiro de 1893, o narrador-protagonista Correia, que reside numa casa de pensão no Catete, diz:


“De manhã tinha o relógio parado. Chegando à cidade, desci a Rua do Ouvidor, até a da Quitanda (..)” 

 *

Ainda na minha infância, na Niterói na década de 1960, meus pais diziam “vamos à cidade”. O ônibus 30 era a linha Martins Torres-Cidade.

Embora tardia relativamente aos fatos, a plena conversão etimológica da “cidade” em “Centro” resulta de uma “revolução semântica” fundada na mudança de percepção da estrutura do espaço em que se vive: não mais uma coleção de arraiais ao redor da cidade, mas uma única urbe expandida por justaposição de parcelamentos lindeiros a vias radiais servidas por transportes mecânicos, que tudo ligam ao que agora é “centro”.  

*

Ao descrever o processo de formação do centro urbano em algumas das metrópoles estudadas em seu Espaço Intra-Urbano no Brasil, Villaça deixa claro, com profusão de detalhes e insaites analíticos, que em nenhuma delas a centralidade urbana pré-capitalista, ou da metrópole nascente, se materializava num complexo designado “Centro”, mas em um conjunto de funções centrais (portuária, comercial, político-administrativa) simbolicamente representadas pelo “passeio comercial” frequentado pela burguesia em ascensão: no Rio de Janeiro a "Rua do Ouvidor", em Porto Alegre a "Rua da Praia", em Belo Horizonte a "Rua da Bahia".

De especial interesse nessa discussão é o caso de Salvador, assim descrito por Milton Santos na "Nota Prévia" ao seu ensaio de 1959 O Centro da Cidade de Salvador:

O crescimento recente da cidade e a expansão de suas atividades conduziram à modificação da fisionomia do centro, provocando o aparecimento de grandes edifícios, construídos nos espaços vazios, ou substituindo velhas casas. É a esse conjunto que os baianos chamam "A Cidade", quando se referem à parte alta, e "O Comércio", quando falam da parte baixa do centro de Salvador. É aí que a vida urbana e regional encontra o seu cérebro e o seu coração." [SANTOS p 20]

Mais recentemente, Adriana Capretz B Silva (2006) assim descreveu a relação entre o Núcleo Colonial Antônio Prado, fundado em 1887, e o núcleo urbano original de Ribeirão Preto:

Havia três acessos do núcleo colonial para o núcleo urbano já existente, que era chamado de “cidade” (..). A Sede [área verde da figura abaixo] (..) foi concebida com a finalidade de constituir um prolongamento da “Cidade” e, por este motivo, esses lotes eram denominados “urbanos”.

*

O nome "Cidade Nova" tem registros que remontam ao período do reinado de D João VI. Até o início do século XIX, a região era um alagadiço que servia de rota de passagem entre o Centro e as zonas rurais da Tijuca e São Cristóvão. Com os aterros feitos com a intenção de melhorar esta travessia, surgiu o projeto de impulsionar o crescimento da cidade para a área, vindo daí o nome. [Isto se deu, concretamente, com o Decreto de 26 de abril de 1811, firmado pelo então Príncipe Regente. O diploma (..) estabelece (..) isenções do imposto da décima para novas edificações residenciais, «nos terrenos situados na Cidade Nova [...] e em qualquer outro lugar pantanoso». (https://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade_Nova_(Rio_de_Janeiro) (Edição 03-09-2022)

Observe-se na passagem acima que seu autor, inadvertidamente, descreve a Cidade Nova como um lugar situado entre "o Centro e as zonas rurais da Tijuca e São Cristóvão". Ora, numa época em que Tijuca e São Cristóvão eram zonas rurais, não existia "Centro"! Existia a "cidade", razão pela qual a urbanização referida no Decreto de abril de 1811 se chama "Cidade Nova". 

Ou seja, passamos de uma longa transição em que o Centro ainda era dito "a cidade" para uma época em que a cidade colonial-imperial pré-capitalista é referida como "Centro"! 

E não se diga que é porque se trata de um texto não-acadêmico. No capítulo "The Internal Structure of the City: the central area" de sua obra-magna de 1983 An introduction to urban historical geography, o geógrafo Harold Carter, embora parta do princípio inquestionável de que o centro comercial tal como o conhecemos não existia nas cidades baixo-medievais e renascentistas, nem por isso deixa de utilizar recorrentemente o termo "centro" para designar os edifícios, e a respectiva área urbana, de onde se exercia o "controle político e religioso" sobre a cidade - sem ao menos um esboço de discussão sobre o fenômeno da "centralidade". 

(..) the city was dominated by the centres of political and religious control. Castle, or town hall, and cathedral or church, were the major buildings and retail trade only incidental to these formative elements. [CARTER Harold, An Introduction to Urban Historical Geography. London; Baltimore, Md. : E. Arnold 1983, p. 150]
https://archive.org/details/introductiontour0000cart/page/n6/mode/1up

*

Caso clássico: City of  London 

Suburbanização




Mercado imobiliário

O mercado de produtos-localizacão está organizado segundo a capacidade de indústria de ofertar diferentes tipos de produtos para diferentes tipos de demanda. Famílias de mesma capacidade de oferta de renda demandam diferentes tipos de produtos-localização. Como a indústria não pode oferecer um produto-localizacao específico a cada cliente individual, o poder de preempção se manifesta como escolha "coletiva", por segmentos de mercado. Ou seja, as leis conjugadas da menor distância e maior acessibilidade são relativas a pacotes de produtos-localização. 

Condomínios horizontais periféricos e condomínios verticais centrais destinados a demandantes da mesma faixa de oferta de renda manifestam simultaneamente, cada um à sua maneira, relativamente aos demandantes de menor capacidade de oferta de renda, as regras do menor custo de atrito. 



Estratos sociais vs. classes sociais 

Se a ascensão da burguesia capitalista no país recém saído da escravidão acentua o fosso social existente entre os mais ricos e os mais pobres, criando desde a origem contrastes urbanos que alcançam os dias de hoje, não é menos certo que a urbanização de mercado, e a organização sócio-espacial que dela emerge, supõem um espectro de faixas de rendimento familiar que abrange todas as classes sociais: capitalistas, latifundiários residentes na cidade, (restos do) patriciado, pequena burguesia urbana e rural e parte do trabalhadorado.

A existência, nas grandes metrópoles, de enclaves ou setores urbanos mais ou menos nitidamente segregados pela raça, etnia, nacionalidade e classe social não nega, embora lhe acrescente complexidade, o fato de a organização sócio-espacial urbana ser primordialmente determinada pela capacidade de oferta de renda das empresas e famílias pelo solo-localização - ainda que mediada pelo fenômeno sociológico do agrupamento territorial de famílias que se veem como semelhantes. [Abramo, Sabatini]

Assim se manifesta no plano da cidade, e não sem múltiplas contradições, a primazia do dinheiro, própria da civilização capitalista, sobre todas as demais determinações incluída a classe social marxiana. Na organização espacial urbana, em primeiro lugar vem o dinheiro - quer estejamos falando de proprietários, adquirentes, ocupantes, inquilinos ou simples usuários de bens e serviços urbanos.

Na moderna economia de mercado, a primazia do dinheiro é capaz de operar maravilhas sociológicas como transformar, da noite para o dia, desprezíveis bandidos saídos das fileiras do lumpensinato urbano em respeitáveis burgueses com livre acesso à segurança bancária e à fina flor da sociedade da finança.

Temos aqui um aparente paradoxo: ao mesmo tempo que o advento da urbanização de mercado não pode ser compreendida abstraindo-se a formação e expansão da pequena burguesia, isto é, a classe social dos pequenos proprietários e detentores de terras, capitais, imóveis e todo tipo de direitos pecuniários contra o Tesouro do Estado, o mercado propriamente dito não pode sê-lo senão pela subsunção de todas as classes sociais na determinação mais genérica da classe de rendimentos ou estrato social. A ideia de que a estrutura socioespacial urbana é um espelho, ou projeção, da estrutura de classe é um obstáculo ao entendimento da metrópole capitalista. A segregação espacial de grupos sociais e usos do solo pela via do mercado intrinsecamente não-competitivo de localizações é o modo normal de estruturação socioespacial da grande cidade contemporânea. Esse fato não é negado, muito ao contrário, pela intervenção recorrente do Estado, seja para eliminar remanescentes “indesejáveis” como zonas de cortiços, favelas centrais, colônias de ex-escravos etc., seja para destinar as localizações mais distantes e desvalorizadas aos grandes programas habitacionais.

*

(..) persistente confusão das categorias "estrato social" e "classe social", em prol de um pernicioso reducionismo: nas metrópoles brasileiras de Villaça, tudo converge para o conflito entre duas classes sociais, ora ditas "burguesias" e "camadas populares", ora setores de "alta renda" e "baixa renda", ora "ricos" e "pobres", ora "vencedores" e "derrotados" da competição espacial. Vale registrar para posterior discussão que, na metrópole capitalista, os perdedores da disputa pelo solo-localização A são, quase sempre, vencedores da disputa pelo solo-localização B, inclusive no interior dos "grandes grupos": proprietários formais, locatários formais e informais em geral. A matriz sociológica de Villaça aparece assim resumida: 
 
As expressões camadas de alta renda e burguesias foram utilizadas como sinônimos. Por burguesias entende-se tanto a pequena, média e alta burguesias como as burguesias industrial, mercantil ou financeira.      [Quando houve necessidade de separar classes dentro desses grandes conjuntos, utilizaram-se expressões como alta burguesia classe média. (..) Consideramos que num trabalho da amplitude deste (..), as diferenções entre esses conceitos poderiam ser minimizadas sem prejuízo da análise. [p.14]



URBANISMO: fatos, projetos, modelos, especulações, utopias e metáforas  

O urbanismo é a arte e a técnica de construção de urbanizações, e até cidades inteiras, com raízes que alcançam um passado milenar; mas é também, ouso dizer, uma ciência na acepção moderna do termo, ainda que inexista nesse sentido como área formalmente constituída: a ciência de como as cidades se formam e transformam independentemente dos desígnios, planos e realizações de construtores, arquitetos, filósofos, engenheiros, urbanistas, planejadores e formuladores de políticas urbanas, subordinados todos, a cada época e lugar, às exigências, possibilidades e contradições próprias do regime social que as constroem. 


A cidade "moderna", vale dizer a cidade da formação social capitalista, é produzida industrialmente por um consórcio mais ou menos explicito, e prenhe de contradições, entre o Estado, que provê a infraestrutura e, eventualmente, solo público, e o capital privado, que constrói as edificações, opera boa parte dos serviços públicos e explora a renda da terra que eles valorizam.

Esta proposição assumidamente reducionista visa estabelecer o contexto em que se consolida, em meados do século XIX, a técnica do urbanismo, herdeira da "arte urbana" pré-moderna, mais tarde generalizada, a contrapelo da liberdade de mercado, como a ciência aplicada do planejamento urbano. O urbanismo moderno é, ele próprio, uma das dimensões da construção da cidade moderna pelo consórcio histórico entre a burguesia e seu Estado, contemporaneamente dito "consórcio Estado-mercado".

A construção da cidade moderna é movida pelos "agentes econômicos" com (ou sem, no caso dos agentes não-econômicos mais tarde convertidos em agentes econômicos informais) o suporte direto do Estado, e a ajuda de projetistas de formação diversa, muito frequentemente engenheiros, eventualmente agrimensores e, mais recentemente, equipes interdisciplinares o mais das vezes coordenadas por arquitetos. 


O planejamento urbano é a liça permanente, teórico-crítica e/ou político-administrativa, dos profissionais do século XX pelo "governo" da potência autorreprodutiva da cidade-mercadoria. Limitado em seu alcance pela natureza de classe do Estado que o patrocina e aplica, o urbanismo / planejamento urbano moderno é, a um só tempo e contraditoriamente, empenho forçado da classe proprietária dominante em administrar o caos urbano gerado pela economia concorrencial e esforço mais ou menos consciente da cidadania em geral, e do trabalhadorado em particular, pela explicitação do caráter social da construção da cidade.


Por essa razão, o urbanismo / planejamento urbano na esfera pública é uma atividade profissional exercida, quase invariavelmente, em condições de grande incerteza e considerável turbulên
cia.

*

As regiões centrais das grandes metrópoles se caracterizam pela justaposição / superposição de ambientes urbanos herdados de distintos ciclos de valorização imobiliária, de obras públicas, de regulação urbanística, de cultura arquitetônica e, naturalmente, de gestão político-administrativa, geralmente não concomitantes, com frequência inconclusos e o mais das vezes geradores de resultados imprevistos. 

Nas cidades latino-americanas, esse efeito é intensificado pelo caráter espasmódico do desenvolvimento econômico a que os países estão sujeitos desde os primórdios de sua integração ao mercado mundial de bens, serviços e capitais.

É essa reciclagem compulsória permanente, marcada por intervenções urbanas de foco variável (embelezamento, expansão, renovação, gentrificação, preservação, revitalização, mobilidade etc), que confere aos nossos grandes centros a sua notável heterogeneidade urbanística, dando-lhes um aspecto ora agradavelmente diverso e contrastado, ora incomodamente canhestro, ora francamente caótico.

*


Muito mais do que um ramo da indústria, a urbanização se afirma, desde meados do século XIX no mundo norte-atlântico e na aurora do século XX nas economias subordinadas, como uma cadeia de negócios interdependentes e retro-alimentantes que integra bancos e entidades de crédito e poupança; empreendedores imobiliários e construtores; corretores e agentes cartorários; fornecedores e operadores de serviços urbanos de transporte, água, eletricidade, gás e telefonia; fabricantes e fornecedores de materiais de construção, veículos, mobiliário e equipamentos domésticos; topógrafos, engenheiros, arquitetos, advogados, contabilistas; lojistas dedicados ao comércio local; artesãos e reparadores; e um exército de trabalhadores de níveis diversos de qualificação. Subjacente a essa formidável invenção capitalista está a mais-valia do solo em vias de urbanização, inflada por espirais de valorização decorrentes do descompasso entre o crescimento contínuo da demanda e a escassez crônica da oferta, que aristocratas e capitalistas disputam, eventualmente repartem entre si, como renda da simples propriedade ou como lucro extraordinário do empreendimento.


*


Uma interessante descrição do centro urbano como justaposição/sobreposição de ambientes legados por distintos ciclos urbanizadores aparece em Milton Santos, O Centro da Cidade de Salvador (1959 / Nota Prévia):

(..) durante o último século, o eixo da economia nacional se deslocou para o sul, e a capital baiana viveu um período de quase estagnação, de crescimento lento, situação que somente mudou a partir de 1940, de um lado porque um novo dinamismo lhe foi comunicado, e de outro lado porque acolheu enormes vagas de rurais, tangidos do campo.
Todos esses fatos marcaram, profundamente, a fisionomia da cidade e a sua vida, refletindo-se sobretudo no que hoje constitui sua parte central. As riquezas de que foi a depositária durante os primeiros séculos permitiram a construção de belas igrejas e palácios, casarões e sobrados que suportaram as ofensas do tempo e continuam na paisagem como uma nota singular. Por outro lado, uma certa ausência de dinamismo da vida urbana, durante um largo período, não somente impediu um desenvolvimento maior da área central, como contribuiu igualmente para a permanência do seu aspecto secular. Mas os sobrados, havendo perdido sua destinação original, deterioraram-se até construir o que, em conjunto, são hoje, isto é, uma área de slums. O crescimento recente da cidade e a expansão de suas atividades conduziram à modificação da fisionomia do centro, provocando o aparecimento de grandes edifícios, construídos nos espaços vazios, ou substituindo velhas casas. É a esse conjunto que os baianos chamam "A Cidade", quando se referem à parte alta, e "O Comércio", quando falam da parte baixa do centro de Salvador. É aí que a vida urbana e regional encontra O seu cérebro e o seu coração.
*

A construção de assentamentos suburbanos em escala industrial a partir de meados do século XIX tem um papel fundamental no desenvolvimento do urbanismo. A importância do livro de Unwin consiste, precisamente, em traduzir os conceitos e conquistas analiticas de Sitte para as necessidades da já então pujante indústria dos parcelamentos suburbanos, não por acaso na Grã-Bretanha.

Foi pelas mãos dos próprios Unwin e Parker - secundados por muitos outros que a historiografia não alcança -, que a cidade-jardim incorporou o avatar "ponto de venda", "marca" capaz de transpor fronteiras nacionais e servir a décadas, na verdade já mais de um século, de vida da indústria dos loteamentos, de quaisquer padrões de densidade, e até mesmo da indústria da incorporação imobiliaria de altíssima densidade, pela via da mera prática de se batizarem e rebatizarem bairros inteiros acrescentando-lhes o qualificativo "-jardim".

*

O urbanismo moderno nasce, em fins do século XIX, da e para a reprodução da sociedade burguesa. Não há que estranhá-lo, nem lamentá-lo. A sociedade burguesa criou todos os ramos da moderna ciência aplicada, porque é este o seu modo de ser. A burguesia criou a técnica moderna em todos os campos de atividade, colocando-as a serviço do desenvolvimento da sociedade da mercadoria. A própria cidade é, para a burguesia, uma imensa coleção de mercadorias, a começar pela própria força de trabalho. 

Não espanta que na origem do urbanismo moderno estejam não tanto as especulações dos socialistas utópicos, como costumeiramente dito nos tratados de urbanismo, mas os múltiplos projetos de bairros e cidades operárias, sobretudo na Europa e em especial a Inglaterra. 

A busca das origens do urbanismo moderno nas especulações utópicas é uma deformação intelectual derivada da tradição idealista. Ao contrário de Lavedan, que escreveu a história do urbanismo desde a mais remota antiguidade, Choay a restringiu aos sacerdotes do século XIX e XX. 

*

Curiosamente, Choay, que só reconhece o urbanismo a partir do momento em que ele, em suas próprias palavras, se torna especializado e reivindica o estatuto de ciência, não inclui em sua concepção de urbanismo os modelos de Chicago - que é o que de mais afim ao método científico moderno produziu o urbanismo em toda a sua história!

*

O fato de os primeiros bairros e cidades operárias lembrarem em alguma medida os construtos utópicos não nos autoriza a ver aí uma inspiração, ou mesmo uma tradição, mas somente o fato de que os construtos e os projetos não têm como evitar similitudes fincadas na cultura construtiva de sua época. Os mais brilhantes utopistas não podiam imaginar construções e grupos de construções que não fossem baseadas na técnica construtiva de sua época. Nas verdade, o caráter utópico dos construtos não provém de suas especulações edilícias, ou urbanísticas, mas em seu modelo de sociedade, que não é suscetível de ser desenhado. A filosofia reformadora dos séculos XVIII e XIX usa recursos gráficos, além de literários, porque essas sociedades ideais se projetam como “colônias” ou “cidades”. O urbanismo não nasce da necessidade de criarem-se sociedade utópicas em forma de colônias operárias, mas da necessidade que tinha a burguesia de salvar-se do caos urbano criado pela revolução das forças produtivas por ela mesma engendrada, o que significou, na Inglaterra, criarem-se em certas periferias colônias operárias e, em outras, loteamentos de baixa densidade para famílias abonadas.

*

O urbanismo moderno, ao contrário de sua História, é marcado por uma cisão, profunda e crônica, entre fatos e especulações. Ao passo que construtores e reguladores de cidades did their job no marco da iniciativa privada e da regulação estatal que lhes fora legada pela geração precedente, os críticos e reformadores sociais o fizeram construindo soluções ideais, assim legando aos historiadores futuros material com que escrever uma história mais ilustrada e culturalmente prazerosa. Parafraseando Bohigas (enquanto os arquitetos fazem planos os engenheiros constroem a cidade), podemos dizer que enquanto os empreendedores construíam a cidade, do jeito que lhes era próprio e interessante construir, com o concurso de engenheiros, arquitetos e trabalhadores em geral, os reformadores sociais, atuando por vezes como dublês de profissionais do desenho urbano, construíam a futura história do urbanismo! 


Peter Hall, um dos maiores artífices do legado de Howard para a história do urbanismo e das cidades, sustenta com todas as letras uma interpretação histórica 100% idealista na abertura do capítulo de Cities of Tomorrow dedicado à cidade-jardim:
Boa parte, senão a maior, do que aconteceu - para bem e para mal - às cidades do mundo nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial remonta, podemos dizer, às ideias de uns poucos visionários que viveram e escreveram há muito tempo, quase ignorados e até mesmo rejeitados por seus contemporâneos. (...) Algumas dessas visões eram utópicas, quando não milenaristas (..). Sua implementação, depois de descobertas e ressuscitadas, aconteceu no entanto em lugares, circunstâncias e por meio de mecanismos quase sempre muito diversos daqueles que seus criadores haviam cogitado (...) não admira que com resultados muitas vezes bizarros e até catastróficos. [Capítulo 1, "Cidades da Imaginação]
Ebenezer Howard é o mais importante personagem individual de toda essa história. [Capítulo 4, “A Cidade no Jardim”] 
Para Hall, o subúrbio-jardim é uma materialização imperfeita da cidade-jardim howardiana.

Antecipando, porém, uma clara contradição entre sua concepção do papel dos “seers” e os fatos da história urbana que traria à discussão no capítulo seguinte, o mesmo Hall recomenda, na abertura do capítulo 3, dedicado à suburbanização das grandes cidades norte-atlânticas no período 1900-1940, a leitura simultânea dos capítulos dedicados à suburbanização e à cidade-jardim como sendo a única maneira de fazer frente ao “dilema, insolúvel para o autor como para o leitor da história do planejamento urbano, do que veio primeiro: se a galinha da suburbanização ou o ovo da filosofia” [*]. 


Segundo Hall, “quando o tic-tac do relógio do planejamento urbano começou a soar, por volta de 1900”, o próprio problema que ele buscava resolver - a concentração da miséria urbana na grande cidade do século XIX, objeto da “continuada obsessão de seus pais filosóficos” -, começou a mudar. A urbe começou a se dispersar e desconcentrar, “em parte pela reação de legisladores e reformadores locais, em parte pela ação das forças de mercado”, daí resultando “uma súbita e extraordinária melhoria dos padrões de moradia para um amplo espectro da população”. [*]

Chama a atenção a disposição dos personagens nesta cena urbana da aurora do século XX: no plano de fundo temos os “pais filosóficos do planejamento”, visionários criadores de mundos futuros, obcecados com os aleijões da grande cidade vitoriana; no proscênio, os “legisladores e reformadores locais” ocupados em dispersar e desconcentrar a cidade ombro a ombro com a “forças de mercado”. Para quem se espantou, no capítulo 4, com o papel demiúrgico atribuído aos seers na construção da cidade ocidental no século XX, a introdução do capítulo 3 é um banho de realidade. Eu tive a felicidade de lê-los nessa ordem. [*nota sobre a fartura de info do livro de Hall]

Lanço mão dessas passagens de Hall para situar metodologicamente o exame do contexto em que Ebenezer Howard produziu o seu esquema de descentralização urbana na Inglaterra vitoriana. 

Ao contrário de Hall, eu não vejo as idéias urbanísticas derivando umas das outras em um processo de aperfeiçoamento autocontido, como que geradas num debate entre sábios do Olimpo filosófico e daí reveladas a profissionais - hélas! - condenados pela realidade a fazer delas meros simulacros. Planos e projetos urbanísticos não são exteriorizações imperfeitas de Ideias sublimes. Estas, mesmo quando vestidas de soluções de valor universal, tanto quanto quaisquer planos e projetos práticos são respostas para problemas de determinado tempo e lugar - inspiradas nos exemplos do passado, eventualmente pioneiras, por vezes geniais a depender do enfoque de quem julga, mas sempre marcadas pelas circunstâncias em que vivem, trabalham, estudam e cogitam seus autores.  A Ideia de Howard era tão imperfeita quanto as realizações de seus epígonos. 

No plano temporal, cabe assinalar que a suburbanização das grandes cidades norte-atlânticas não começa no momento escolhido por Hall para discutir sua relação com as ideias e iniciativas do planejamento urbano, isto é, quando este vem à luz na primeira década do século XX. Ela começa muito antes: para alguns autores, ainda na década de 1830; para outros, por volta de 1850. Digamos, para simplificar, em meados do século XIX. 

*

Fatos urbanos, projetos e planos urbanísticos, teorias e especulações urbanísticas, utopias sociais e até metáforas filosóficas aparecem, com frequência, entrelaçados em trabalhos de história do urbanismo. E não por acaso: todos fazem parte da trama de eventos que nos trouxe às cidades onde vivemos. Contudo, não apenas o papel dos fatos, dos projetos, dos planos, dos modelos, das especulações, das utopias e das metáforas urbanas nessa trama é bastante distinto, como a natureza de sua articulação e o modo como exercem sua influência recíproca exigem atenção especial. Distingui-los e, sobretudo, separá-los analiticamente, é uma tarefa árdua e complexa, mas absolutamente necessária. 

*

O estudo de Navacués nos permite apreciar a realização de Soria [Cidade Linear] "dos pés para a cabeça", isto é, como projeto de urbanização antes que como utopia urbanística, ambiguidade que a define, quem sabe ao lado da cidade-jardim howardiana, como híbrido histórico: pode-se discutir se é o programa de reforma social que para poder sair à luz se adapta às exigências da nascente indústria da suburbanização ou se é esta que, ainda debutante, se apresenta aqui e ali em trajes de colônia semi-rural destinada ao aperfeiçoamento físico e moral das classes laboriosas. 



CIDADES NOVAS: PROJETO, EXPANSÃO E PLANEJAMENTO

O estudo das cidades ex novo da época moderna importa menos pela fama que carregam de "cidades planejadas" do que pelo testemunho que nos dão das possibilidades, limites e contradições envolvidas no processo de planejamento urbano.

Uma dessas contradições, de consequências práticas pouco claras mas culturalmente bem estabelecida, diz respeito à natureza singular de seu "núcleo histórico" - abrangendo o “centro” propriamente dito e o perímetro urbano original -, nem sempre devidamente reconhecido, ou valorizado, como tal pelos munícipes e suas instituições.

Em textos não acadêmicos disponíveis na Internet, o termo cidade planejada quase sempre se refere a alguma cidade construída "do zero" - quer sobre um autêntico vazio rural, quer sobre um núcleo rural ou litorâneo pré-existente. Sua marca distintiva é a existência de um traçado.

Na verdade, o "plano" de uma cidade nova pode tanto consistir em pouco mais do que um simples tabuleiro, como no caso de Teresina e Aracaju - disputadas como "mais antiga cidade planejada do Brasil" - como, no outro extremo, em um conjunto urbano totalmente edificado e rigidamente regulado, como no caso de Brasília. O mais das vezes, no entanto, verificam-se situações intermediárias: um trama projetada de vias e praças públicas, acompanhada de um conjunto de regulações básicas relativas ao zoneamento, ocupação do solo e preservação de áreas verdes - o caso de Maringá.

O certo é que, em quase todos os casos, o crescimento da cidade nova transborda o limite originalmente estabelecido e novos ciclos regulatórios e de obras públicas - viárias, principalmente - têm início, para dar conta, dentre outros, do próprio processo de expansão urbana. Não raro, esse transbordamento é concomitante à execução do projeto original, pela via do assentamento não devidamente programado dos trabalhadores envolvidos em sua construção.

É assim que as "cidades planejadas", independentemente de sua posição na escala da modernidade, se convertem, pode-se dizer, em núcleos históricos de suas próprias transfigurações metropolitanas, caracterizados não pela antiguidade dos conjuntos edificados remanescentes - geralmente reciclados, lá onde existem, para uso geral sob a tutela de programas especiais de proteção e conservação - mas pelos atributos técnicos, funcionais e artísticos de componentes ainda plenamente operacionais como o traçado, os parques e áreas verdes, os centros cívico e administrativo etc., mais ou menos bem adaptados aos primeiros ciclos de sua vida útil.  


Estou postulando que o núcleo planejado de uma metrópole fundada no século XX pode ser tão “histórico” e prenhe de significados e tradições quanto qualquer Centro Histórico declarado Patrimônio da Humanidade pelas Nações Unidas! Depende, talvez, do que o observador entende por “história” e do que busca no qualificativo que lhe corresponde.

*

Diria o senso comum que a construção de uma nova capital é, por definição, um grande projeto urbano. Mas pode não sê-lo na acepção que o urbanismo contemporâneo dá ao termo, grafado o mais das vezes com iniciais maiúsculas ou referido pela sigla GPU/GUP. 


Em geral, os modernos GPUs são intervenções - como prefere Garay [*] - de grande escala e elevada complexidade nas cidades existentes. Grandes Projetos Urbanos constroem, ou reconstroem, pedaços de cidade dentro da grande cidade, quase sempre incorporando acréscimos de valor do solo gerados pela própria intervenção à equação de seu financiamento.

Não se trata de filigrana conceitual: os Grandes Projetos Urbanos contemporâneos são importantes condutores do circuito financeiro global, precipuamente destinados, na maioria dos casos, a gerar oportunidades de negócios imobiliários e seus acessórios por meio da urbanização e comercialização de solo público com potencial de valorização derivado das qualidades intangíveis da própria metrópole. A reivindicação da urbanização autofinanciada com recursos da renda do solo, mesmo quando mais publicitária que real, é um sinal inequívoco de que as motivações estratégicas geralmente associadas, inclusive a de “mover a economia”, não lhes bastam como fonte de legitimação e enraizamento no ideário coletivo.

Cidades novas, embora relativamente comuns à escala dos séculos, são excepcionalidades no campo do urbanismo, resultantes de processos de colonização de natureza diversa, de políticas estatais de desenvolvimento territorial, do enfrentamento de catástrofes naturais e sociais e do que poderíamos chamar de "repaginação" do poder político em situações, reais e imaginárias, de clivagem histórica. Ou de combinações dessas circustâncias.

Cidades novas também podem, com certeza, surgir como empreendimentos explicitamente comerciais, como no caso da rede urbana do Noroeste paranaense. E não está excluído, muito ao contrário, que a construção de uma nova capital, ainda que por sólidas “razões de Estado”, seja terreno fértil para a proliferação de operações especulativas: 

"Confesso nunca ter visto lugar tão deprimente. Partes do Capitólio e da mansão presidencial ainda em construção e nada mais. Trabalhadores morando em barracos que, quando da minha última visita à cidade, em 1806, estavam ainda intactos - e ocupados. Eu especulei com terras como todo mundo, incluindo o general Washington, que acabara de comprar dois lotes perto do Capitólio. Eu dei entrada num terreno próximo à Casa Branca. Uma loucura! Homens a cavalo no meio da mata escura com mapas nas mãos apontando para chão e dizendo: "Aqui fica a esquina da rua tal com a rua tal. Pertinho do Capitólio. Vou construir aí uma casa - não, um hotel”. Mas no final, quem investiu nesses pântanos ganhou rios de dinheiro." VIDAL, Gore, Burr: A Novel (Vintage International) (English Edition). 

Contudo, e apesar de que pode ser às vezes difícil distinguir, na governança da classe proprietária dominante, o interesse geral das ambições particulares, não há que duvidar que  a construção de uma cidade é, em qualquer caso, um evento muito mais complexo, historicamente significativo e carregado de contradições do que a renovação de um perímetro urbano. Ao passo que aqui predomina o binômio engenharia financeira / arquitetura urbana, com eventuais elementos de preservacionismo edilício e proteção social, lá se impõe uma matriz infinitamente mais ampla de aspectos envolvidos e problemas por resolver, como são a justificação histórica, econômica e política da proposta, o processo de decisão, a disputa pelo lugar, a seleção do plano urbanístico, a mobilização de recursos financeiros, materiais e humanos, o soerguimento de uma nova economia urbana, a construção da estrutura de administração e governo etc, culminando no nó górdio do próprio assentamento: um novo bairro internacional no Centro da metrópole pode não ter uma única residência submercado, ou mesmo residência alguma; uma nova capital jamais, ainda que o projeto não a tenha previsto e a construção não a tenha realizado. Na cidade estarão todos, inclusive os “sem cidade”. 

*

A localização do centro comercial e bancário é um aspecto crítico das cidades ex novo. Ele raramente se estabelece no lugar preconizado, e em nenhum caso da forma como imaginada, pelo projetista da “cidade planejada”, em parte porque essa localização depende de movimentos históricos pouco previsíveis - como a rápida evolução da tecnologia e da economia dos transportes -, em parte porque os projetistas tendem a desconsiderar o fato de que, como já explicava Hurd em 1903, o centro se forma ao redor do ponto de contato com o mundo exterior e se expande, ou desdobra, na direção determinada pela opção residencial das camadas de alta e média renda. Salvo quando rigidamente controlado pelo “projeto de cidade”, como em Brasília, na urbanização de mercado o centro comercial e bancário ocupa o lugar mais adequado aos negócios, não aos critérios técnicos, pretensões estéticas e ideais filosóficos do projetista. 

A despeito das sólidas evidências proporcionadas pelo espetacular crescimento das grandes cidades dos EUA, nos planos de urbanização de fins do século XIX a noção de “centro urbano” ainda é basicamente governada pela ideia barroco-tardia do “centro cívico”, local de agrupamento das edificações ligadas às instituições dos poderes temporal e religioso: no “urbanismo dos traçados”, devidamente embrulhado na racionalidade geométrica puramente abstrata da organização espacial positivista; nas cidades-jardim, organizado ao redor do parque central howardiano. Em forma de conservadorismo, reformismo ou vanguardismo, constitui uma característica do urbanismo dedicado ao projeto de cidade ex-novo a negação da aglomeração comercial e bancária como força motriz da ocupação e crescimento do centro da moderna cidade capitalista.



___
NOTAS

[*] “A história se faz de tal modo que o resultado final sempre deriva dos conflitos entre muitas vontades individuais, cada uma das quais, por sua vez, é o que é por efeito de uma multidão de condições especiais; são, pois, inumeráveis forças que se entrecruzam umas com as outras, um grupo infinito de paralelogramos de força dos quais surge uma resultante – o acontecimento histórico – que, por sua vez, pode ser considerado produto de uma potência única que, como um todo, atua sem consciência e sem vontade”. [Engels Friedrich, “Carta a Josepf Bloch” (21.09.1890). In Marx e Engels, “Obras Escogidas“, T. II. Madrid, Editorial Ayuso, 1975.]https://radiopeaobrasil.com.br/colunistas/marx-os-homens-fazem-a-historia-mas-nao-escolhem-como/

[*] Urban geography is not about planning. It is concerned with certain aspects of the inherent spatial or geographical structure of society on which planning must be based [DICKINSON 1947 xiii) 

[*] So long as the market, circumscribed as it may be by public policy, is the principle machinery allocating urban space among competitive use, this interaction will be the dominant city shaping force in our society." [WINGO L 1961, p.93]


O urbanismo moderno não nasceu junto com com o processo técnico e econômico que gerou e modelou a cidade industrial. Veio mais tarde, quando se evidenciou que os efeitos quantitativos dessa transformações se tornaram conflitantes a ponto de tornar inevitável a necessidade de remediá-los. [ De modo geral, a técnica urbanística aparece com atraso relativamente aos acontecimentos que tem por missão controlar e tem um caráter curativo. [Benevolo L, Le Origini dell’Urbanistica Moderna, 1963]

Almost precisely in 1900, as a reaction to the horrors of the 19th century slum city, the clock of planning history started ticking. But, paradoxically, as it did so, another much older and bigger timepiece started to drown it out. The very problem, that the infant planning movement sought to address, almost instantly began to change its shape. Most of the philosophical founders of the planning movement continued to be obsessed with the evils of the congested Victorian slum city – which indeed remained real enough, at least down to World War Two, even to the 1960s. But all the time, the giant city was changing, partly through the reaction of legislators and local reformers to these evils, partly through market forces. The city dispersed and concentrated. [HALL 1988 Cities of Tomorrow, p. 48]

El conocimiento e identificación de la fase de desarrollo en que se encuentra cada sector de una ciudad es igualmente importante para los organismos de planeación de esa ciudad para saber en qué momento conviene adoptar una determinada política para estimular un proceso de rehabilitación, de renovación o de desarrollo de un sector. (..) Cuando la planeación urbana va en contra de las necesidades sociales y las leyes del mercado, genera un mayor caos urbano. La planeación debe ir delante de la demanda encauzando las necesidades. [Borrero Oscar, “Formación de los precios del suelo urbano”, 2005]

La crisis del fordismo urbano se manifiesta, sobre todo, a través de dos ejes de cambio: por una parte, la tendencia hacia la flexibilización urbana por sobre el ur­banismo modernista y regulador; y por otra, la caída en el financiamiento estatal de la materialidad urbana (vivienda, equipamientos e infraestructura) y de algunos servicios urbanos colectivos. En ambos casos, el mercado resurge como mecanis­mo principal de coordinación de la producción de la ciudad, ya sea a través de la privatización de las empresas públicas o por la hegemonía del capital privado en la producción de las materialidades residenciales y comerciales urbanas. Este predo­minio del mercado como mecanismo de coordinación de las decisiones de uso del suelo constituye un rasgo característico de la ciudad neoliberal, en contraste con el periodo del fordismo urbano, cuando el papel del mercado en la producción de las materialidades urbanas estaba fuertemente mediado por el Estado a través de la definición tanto de las reglas de uso del suelo como de las características de tales materialidades. La crisis del fordismo urbano implica, por tanto, el “retorno del mercado” como elemento determinante en la producción de la ciudad neoliberal. [ABRAMO 2012]




______
REFERÊNCIAS

HURD R M, Principles of City Land Values. New York, Record and Guide 1903
https://archive.org/details/principlesofcity00hurdrich/page/n4/mode/1up

HAIG Robert, "Toward an Understanding of the Metropolis: Part I and Part II". Quarterly Journal of Economics, 40 (1926), 179-208 e 402-434

BURGESS E W, “The Growth of the City: An Introduction to a Research Project", em BURGESS, E W e PARK R E, The City:Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment, The University of Chicago Press, 1984: Chicago e Londres
http://shora.tabriz.ir/Uploads/83/cms/user/File/657/E_Book/Urban%20Studies/park%20burgess%20the%20city.pdf

BURGESS E W, "Urban Areas", em SMITH e WHITE, Chicago, an Experiment in Social Sciences Research, Chicago: University of Chicago Press 1929, pp 113-38
https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=mdp.39015005490290&view=1up&seq=17

[2] Entendida como aquela em que já predominam o trabalho assalariado e a produção para o mercado, mas não necessariamente a grande indústria.