sábado, 31 de janeiro de 2015

Sobre o coeficiente de aproveitamento básico dos terrenos urbanos

Republicação. Publicado originalmente em 23-03-2013


Sem tempo nem inspiração para produzir uma contribuição técnica, ofereço aos leitores a reprodução adaptada de uma mensagem que enviei, há algumas semanas, a um amigo urbanista, contendo reflexões pessoais sobre a natureza do Coeficiente de Aproveitamento Básico dos terrenos urbanos.

A propósito das contrapartidas por OODC irrisórias e até negativas nas áreas de baixa densidade de Niterói, eu penso que isso resulta da injustificada imposição de um limite mínimo =1 ao Coeficiente Básico. 
Ora, do ponto de vista da Outorga Onerosa do Direito de Construir, o Cb é apenas o patamar de isenção, tradicionalmente tomado como =1 por representar o “solo natural” por oposição ao “solo criado”; em outras palavras, Cb=1 seria o “coeficiente natural” representativo da terra como valor de uso
Como, porém, Cb=1 implica que a proporção 1/C da renda da terra não está sujeita a cobrança, se um terreno tem 10.000m2, C=1 e Cb=1, temos que os quase 10.000 m2 privativos que ele pode abrigar (+/- equivalentes a 10.000 m2 brutos construídos), ainda que vendidos a peso de ouro, não pagarão contrapartida por  OODC porque não há valorização por acréscimo de edificabilidade relativamente ao "coeficiente natural". 
Eis uma  excelente razão para não se cobrar OODC numa das regiões que mais gera renda do solo na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (e onde as baixas densidades geram mais custo para a coletividade): a Barra da Tijuca. As incorporadoras agradecem! 
No entanto, eu arrisco dizer que o Cb que melhor representa o valor de uso da terra não é Cb=1, mas Cb =Taxa de Ocupação, porque não estamos falando de natureza bruta, mas de natureza urbanizada! 
Um terreno urbano real é como um campo de futebol, onde, a despeito dos 105m de comprimento, só pode haver jogo, a qualquer instante da partida, entre as duas “linhas de impedimento”. 
De modo análogo, não se pode edificar fora de um perímetro que atenda à TO. O solo natural efetivamente edificado em qualquer empreendimento urbano é S*TO. Sob este critério, os únicos empreendimentos isentos de OODC seriam aqueles em que C=<TO. E, afinal, do ponto de vista da OODC, a área total do terreno é apenas a unidade de medida da quantidade de construção (para ser exato, o valor da OODC tampouco é função direta dos m2 construídos, mas dos m2 privativos à venda no estande). 
De todo modo, creio que esta só é uma questão relevante porque o Estatuto da Cidade determina que a OODC se cobre ao “acréscimo de valorização” suscitado pela diferença entre Cb e C, donde D=[1-(Cb/C)]*VR, sendo VR o valor residual do terreno para o empreendimento em questão. (É aqui que a nossa tradição de Solo Criado, inspirada por sua vez no plafond de densité francês, entra com o "princípio" do Cb=1). 
Do ponto de vista da pura recuperação da renda para pagar pela infraestrutura e serviços urbanos que a propiciam (no passado ou no futuro), poderíamos ter Cb=0, donde a valorização seria = 100% do valor residual e o “preço” da OODC seria = ao que eu chamo de TRR (Taxa de Recuperação da Renda), o verdadeiro preço da Outorga Onerosa e busílis de toda essa discussão.
Do ponto de vista das regras do Estatuto da Cidade, a maneira mais simples de operar a OODC em uma cidade já legislada é estipular o Coeficiente básico de tal modo que D=[1-(Cb/C)]*VR produza a OODC requerida. Em outras palavras, em uma cidade ou bairro com C=4, a adoção de Cb=3 resulta em recuperar-se 25% da renda total sem precisar de nenhum “coeficiente de planejamento” ou qualquer outro tipo de redutor. Na verdade, qualquer Cb>0 já é, por si próprio, um redutor. 
Em Niterói, fizemos, porém, o contrário: criamos Cs ainda maiores, com Cb=2 e até Cb=5 e aplicamos redutores suplementares chamados “fatores de correção”. Resultado, a OODC, mesmo quando aparentemente envolve “muito dinheiro”, equivale a uma pequena fração da renda da terra gerada no empreendimento.
O resultado de estimativas que fiz a respeito é, sob mais de um aspecto, estarrecedor! Em um empreendimento vizinho meu, na Rua Vereador Duque Estrada, o incorporador pagou cerca de 1% da valorização por acréscimo de edificabilidade, equivalente a menos de 0,64% da renda total estimada! Num imenso edifício de 16.500 m2 privativos recém-concluído na Rua João Pessoa, Jardim Icaraí, o incorporador pagou algo como 6,7% da valorização, equivalente a 4,6% da renda total.  
Para fins de comparação, eu estimo, com base nas simulações apresentadas pelo prof. Paulo Sandroni em seu Blog, que no bairro de Arthur Alvim, zona leste de São Paulo, onde os preços de venda são bem menores do que os de Santa Rosa e Jardim Icaraí, o empreendedor paga por Outorga Onerosa algo como 47,5% da valorização por acréscimo de edificabilidade, equivalente a cerca de 31% da renda total! 
No caso de lugares de alta renda e baixa densidade, como lotes de 10.000m2 e C=1, ou C=1,5, a adoção de Cb=TO (um número fracionário) permite estabelecer um acréscimo de renda relevante sujeito a OODC que poderá ser, em seguida, “politicamente regulado” pelo que eu chamo de “Fator de Recuperação da Valorização”. Dando nome aos bois, o FRV conduz a valorização determinada pela diferença entre o Cb e C a patamares politicamente factíveis. 
Desde já, eu opino que todas as cidades brasileiras deveriam convergir para o critério de recuperar 50% do acréscimo de renda suscitado pela diferença entre Cb e C, sendo Cb, de preferência, =TO. (O Estatuto da Cidade não impõe Cb=1). É claro que este critério daria um baita susto no “mercado” (leia-se as incorporadoras), que de imediato se declarariam falidas!
Todo incorporador iria, querer, a partir daí, que o Cb estivesse sempre bem pertinho de C e assim começaria a verdadeira discussão, ainda pendente, sobre a OODC: que porcentagem da renda gerada nos empreendimentos imobiliários de alta densidade pode a coletividade legitimamente reclamar?
2013-03-23

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O futebol e a cidade: prodígios da oferta fixa

Futuro da seleção brasileira já está 'fatiado' com empresários
A seleção brasileira [de futebol] que inicia nesta quinta-feira a disputa do Sul-Americano sub-20, no Uruguai, não tem as mesmas caras conhecidas do time que venceu a mesma competição há quatro anos, com Neymar & Cia. No mundo dos negócios, porém, os jovens já são vistos como 'minas de ouro'. Infelizmente, nem tanto para seus clubes. (Continua)
Jogador de futebol não é um "bem". Mas seus vínculos contratuais sim, na forma de "direitos econômicos". E como os grandes craques são escassos e irreprodutíveis, não espanta que este mercado tenha semelhanças com o das melhores localizações urbanas (terrenos ou frações ideais): são todos “bens de oferta fixa”.

Isto significa que, ao contrário dos bens industriais em geral,  seus preços são determinados pela concorrência entre demandantes, prevalecendo, na compra ou arrendamento dos bens de maior "utilidade", os demandantes com maior capacidade de pagamento (ou endividamento).

Dito de outra forma, o preço de um bem de oferta fixa equivale ao máximo* que um demandante está apto e disposto a pagar para não ter de se contentar com o bem de utilidade imediatamente inferior. 

E, por essa mesma razão, a carga tributária, ao invés de se repartir, pela via da concorrência entre vendedores e compradores, equitativamente entre uns e outros, tende a recair integralmente sobre os primeiros - como ocorre com os bens arrematados em leilões.


Nas cidades, os impostos sobre a propriedade do solo (ITBI, IPTU) reduzem, em valor equivalente, o aluguel, ou preço de transação  dos imóveis, razão pela qual os locadores são adversários viscerais dos aumentos de IPTU e das taxas condominiais. De um modo geral, tudo o que a municipalidade deixa de cobrar à propriedade do solo como imposto se transforma em renda privada sob a forma de aluguel ou preço de venda (aluguel capitalizado).

 Transpondo esse raciocínio para o futebol, é fácil deduzir que a dívida fiscal (INSS, etc.) que o governo deixa de cobrar dos clubes se converte, como uma espécie de subsídio à demanda, em maior capacidade de compra e, daí, em aumento dos preços dos jogadores.

E se a inadimplência fiscal for uma prática comum nesse mercado, o resultado será uma inflação generalizada de preços e a transferência líquida da receita pública não arrecadada para os bolsos dos proprietários dos direitos econômicos dos jogadores e dos intermediários das transações.

Em outras palavras, toda a dívida dos clubes com o governo há muito já se converteu em capital privado pikettiano nas contas bancárias dos espertalhões do futebol. 

E clubes como Flamengo e Fluminense, que vêm suando a camisa para honrar seus débitos com a Receita Federal, acabam, tal como o comprador de um lote clandestino que recebe tempos depois um carnê de IPTU, pagando por seus craques pela segunda vez. Capisce?  

*E também por causa disso, os negócios envolvendo futebolistas de alto nível são, como as transações de imóveis excepcionalmente bem localizados, muito propícios à lavagem de dinheiro proveniente de negócios obscuros.

2015-01-16