segunda-feira, 22 de março de 2021

Mandando a real

Deu no Público / Espanha 15-03-2021, por Juan Losa

Carme Pinós: "El mercado diseñó nuestras ciudades y los arquitectos fueron cómplices"

Montagem: Àbeiradourbanismo
Apesar da expressão, digamos, pouco feliz, o 
título da matéria não me parece corresponder ao que de fato disse Pinós.

“Cúmplice necessário” é um modo retórico de destacar a ideia de que arquitetos e urbanistas “não têm tanto poder de decisão” quanto se costuma supor sobre aquilo que o entrevistador chama, candidamente, de "o modelo de cidade que habitamos". No que ela está, a meu juízo, coberta de razão.

Trata-se aqui, em última instância, da relação inevitavelmente conflituosa e prenhe de contradições entre o mercado e o planejamento na estruturação e conformação das cidades. Arquitetos ganham a vida projetando edifícios para seus clientes no marco da legislação em vigor e urbanistas planejando e administrando as cidades no marco da economia concorrencial-oligopolista que as constrói, destrói e reconstrói com a indispensável e generosa ajuda das engrenagens superiores do Estado. Por muito que queiram - e tantos como Pinós, você e eu, caro leitor, sempre hão de querer - eles não são donos de suas circunstâncias e raramente têm o poder de influenciá-las decisivamente.

Parafraseando um clássico aforismo da dialética moderna[1], os homens e mulheres constroem suas cidades, mas não conforme a sua vontade; não as constroem sob circunstâncias de sua escolha, mas sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.

E se alguma razão tinha a geógrafa Mercé Tatjer, também barcelonesa, ao dizer em 1973 - ainda antes, portanto, do período econômico a que hoje nos referimos como 'neoliberal' - que "todo intento de realizar um plano verdadeiramente social é verdadeiramente impossível no marco da sociedade capitalista", [2] é forçoso concluir que o exercício do urbanismo sob uma perspectiva social, vale dizer na contramão das exigências do capital, requer antes de tudo um agudo senso crítico e um adeus, seja resignado ou combativo, às ilusões quanto ao alcance e à estabilidade de seus efeitos. 

Por mais difícil, e até improvável, que seja chegar a uma resposta satisfatória, eu diria que a primeira pergunta que um planejador urbano deve fazer a si mesmo é: que espécie de resultados se pode esperar do planejamento urbano numa sociedade para a qual o planejamento da atividade econômica, força motriz da construção das cidades como de tudo mais, é um obstáculo à produção e distribuição da riqueza?

Resumindo: insinuar a responsabilidade dos arquitetos e urbanistas pelos impasses do planejamento urbano na sociedade concorrencial, como fez a editoria de Público ao dar título a esta matéria, é uma atitude tão equívoca quanto seria deduzir das limitações do planejamento a sua completa inutilidade. 

A propósito, numa emblemática entrevista concedida à revista Vitruvius em outubro de 2005, o urbanista, geógrafo e planejador brasileiro Flávio Villaça aponta as contradições entre os planos fundacionais de Brasília e Belo Horizonte e seus respectivos processos de ocupação e expansão nos seguintes termos:

“Brasília é talvez o exemplo máximo da falência do planejamento urbano no Brasil. Quando vejo que esse mesmo processo aconteceu em Belo Horizonte setenta anos antes, fico muito desapontado. Em Brasília, como em Belo Horizonte nas primeiras décadas do século XX, a parte planejada da cidade ficou sub ocupada, por décadas, enquanto a cidade crescia fora da parte planejada. Em ambas as cidades dentro de poucas décadas a população que vivia fora do plano já era bem maior que aquela dentro do plano. Então para que plano?”[3]

Em minha opinião, nem os arquitetos são "cúmplices do mercado" nem Brasília é "o exemplo máximo da falência do planejamento urbano no Brasil", como disse Villaça, quem sabe num arroubo retórico similar ao de Pinós.

Entender a natureza de nossas limitações e levá-las em conta na hora de fixarmos as metas de nossas intervenções urbanas, ou de criticarmos as irracionalidades e fraquezas deste ou daquele plano - e elas não faltam nos de Brasília e Belo Horizonte -, me parece ser o "x" dessa questão. 

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[1] MARX K, O 18 Brumário de Luis Bonaparte, 1852

[2] TATJER MIR Mercedes, La Barceloneta – del siglo XVIII al Plan de la Ribera. Barcelona: Los libros de la Frontera, 1973, p 91.
http://www.ub.edu/geocrit/la_barceloneta_del_siglo_xviii.pdf

[3] “Flávio Villaça / Entrevista", Vitruvius Outubro de 2005, por Denise M Teixeira http://www.vitruvius.com.br/.../entrevista/06.024/3309...

2021-03-22