quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Desapropriações por utilidade pública podem e devem financiar-se com a valorização do solo lindeiro

Agradeço ao Prof. Eduardo Reese a gentileza de ter-me enviado extenso material sobre a história e o conteúdo urbanístico da Avenida de Mayo, Buenos Aires.
A arquiteta Elizabeth Castanheira postou, em 16-10, o seguinte comentário ao texto “Transmilênios e recuperação...”
"Na prática urbanística todos os caminhos deveriam levar à gestão pública da valorização da terra, mas geralmente, e infelizmente, não levam. Como exemplos de desperdício do não uso desses instrumentos podemos citar a Linha Amarela e o Metrô. A questão do entorno na implantação desses equipamentos de transporte nunca é tratada da forma que deveria. Para reduzir o custo da desapropriação, reduz-se a área de atuação do projeto, resultando em pequenas parcelas de solo de utilização restrita. Se fosse desenvolvido um projeto urbano utilizando a TPC, as questões do custo da desapropriação e da qualidade urbanística no entorno poderiam ser resolvidas."
Do alto de sua experiência com os problemas de regularização urbanística da Linha Amarela, via expressa pedagiada que corta o Rio de Janeiro em sentido nordeste-sudoeste (certas obras públicas também demandam regularização urbanística), bem como de sua vivência profissional e cidadã com os remanescentes do Metrô, Elizabeth toca num ponto nevrálgico da prática de grandes projetos de infraestrutura de transporte urbano no Brasil, que poderíamos chamar de “plano de desapropriação e gestão do solo lindeiro”.

Como, em geral, projetos de infraestrutura de transporte urbano não são considerados projetos urbanísticos e, além disso, são executados “a toque de caixa” para atender à agenda política, as desapropriações são entregues aos setores especializados das municipalidades, para que satisfaçam os requerimentos mínimos do projeto de engenharia.

Este procedimento nasce da falta de percepção dos governantes e gestores para o potencial do desenvolvimento do solo direta e indiretamente afetado para o financiamento do projeto a curto, médio e longo prazos e resulta invariavelmente em desastres urbanísticos de difícil solução.

Podemos nos perguntar, por exemplo, quanto já teria custado ao Metrô do Rio de Janeiro, só em perda de receita direta (venda de bilhetes), o relativo vazio urbano que há 30 anos cerca as estações de Estácio e Praça Onze – por gestão ineficiente do solo lindeiro, boa parte dele lotes estatais e remanescentes de desapropriações. Ou quanto já teria custado à cidade o fato de a Linha Amarela estar no melhor do casos “embarreirando” o tecido urbano pré-existente e, no pior, espremida entre áreas de ocupação irregular. Isto para não falar do potencial de receitas indiretas que poderiam ter esses projetos com uma gestão urbanística eficaz do solo adjacente valorizado pela própria obra – projetos habitacionais sociais e de mercado, centros comerciais, postos de abastecimento etc.



A busca de precedentes latino-americanos para esse debate nos faz retroceder impressionantes 125 anos. Na Buenos Aires da década de 1880, o então intendente Torcuato de Alvear, homem “insuspeito” no que toca a suas orientações político-ideológicas, travou um intenso duelo jurídico-político com famílias da alta sociedade e representantes locais em defesa de seu projeto de financiar a abertura da Avenida de Mayo – componente vital do eixo cívico que hoje liga a Casa Rosada ao Congresso Nacional – com a venda dos lotes adjacentes, resultantes de um generoso plano original de desapropriações [1].

No Rio de Janeiro, a Avenida Presidente Vargas, eixo monumental de acesso ao centro financeiro inspirado no modelo de edificações sobre a calçada (galerias) trazido ao Brasil por Alfred Agache na segunda década do século XX, foi aberta na década de 1940 pelo então prefeito Henrique Dodsworth como projeto urbanístico sustentado por um Projeto de Lei que previa seu integral financiamento com a venda dos novos lotes comerciais formados de frente para a Avenida.

É verdade que ambos os projetos podem ser até duramente questionados quanto ao seu impacto social e aos resultados alcançados pelo pretendido auto-financiamento. 


No caso da Avenida de Mayo, a Corte Suprema acabou decidindo a favor dos proprietários, resultando
“um sistema perverso pelo qual os proprietários 'afetados' eram indenizados pelo Estado pela faixa de terreno que cediam para uma via pública que valorizava enormemente as suas propriedades (...) e muitas vezes o Estado devia pagar essa faixa de terreno ao preço que esta adquiriria depois que ele realizasse a abertura da rua. (...) o que haveria de repetir-se no futuro em cada tentativa de avenida diagonal ou alargamento, em um verdadeiro 'negócio da desapropriação' de que costumavam beneficiar-se proprietários, advogados e funcionários diligentes que propunham a medida conscientes do curso posterior das ações” [2]
Já a Avenida Presidente Vargas ficaria durante muitos anos privada dos grandes edifícios previstos no projeto, que só surgiram na altura do cruzamento com a Avenida Rio Branco, segundo Abreu [3] por três motivos principais: a coincidência de sua conclusão com o início do boom imobiliário que atraiu a maioria dos capitais imobiliários para a Zona Sul, a conseqüente transferência de boa parte dos serviços, comércio de luxo e lazer para Copacabana e, finalmente, o reforço da centralidade da própria Avenida Rio Branco, que concentrou o processo de renovação edilícia no centro financeiro da cidade.

Não se conhecem registros do resultado financeiro da utilização, no projeto, das Obrigações Urbanísticas da Cidade do Rio de Janeiro,

“cujo valor nominal era igual ao valor venal pré-fixado para o lote urbanizado ao qual estavam vinculadas. Foi pela primeira vez empregado esse tipo de letra hipotecária, que, uma vez emitida pela prefeitura, pode esta caucionar no Banco do Brasil e levantar o empréstimo na totalidade do empreendimento (evitando), desse modo, a majoração dos impostos ou recorrência à taxa de melhoria... Os lotes seriam (posteriormente) vendidos em hasta pública pelo Banco do Brasil que, assim, se pagaria do valor nominal, creditando-se à prefeitura o saldo porventura alcançado no leilão”. [4](Itálicos do blogueiro).
Naquela época, como ainda hoje, os grandes projetos urbanos não eram comandados por organizações integralmente responsáveis por sua gestão e balanço final, inclusive sob o ponto de vista contábil, restando, para quem pretenda avaliá-los, a penosa alternativa de vasculhar pacientemente os meandros da contabilidade pública geral.

Mas por que não considerar, por outro lado, que os recursos hoje disponíveis – mais que todos um imenso potencial de controle social, como demonstrado nos casos do Museu Guggenheim e da Marina “Panamericana” da Glória, no Rio de Janeiro, auxiliado por algum sistema eficaz de controle técnico e contábil de projetos públicos – nos permitiriam aplicar a mesma metodologia visando reduzir o gasto público e aumentar a eficiência social dos projetos de vias públicas e sistemas de transporte?

Muito já se disse que o procedimento de desapropriar terra urbana para revendê-la depois de valorizada pelo projeto é vedado pela lei por caracterizar “especulação pública”. Essa opinião, no entanto, está longe de ser unânime entre os juristas. Vejamos o que diz, por exemplo, Maria Sylvia Di Pietro:

“Desapropriação por zona (...) O ato expropriatório deve especificar qual área se destina à continuidade da obra e qual se destina à revenda em decorrência de sua valorização. Nesta última hipótese, o bem não é expropriado para integrar o patrimônio público, mas para ser revendido, com lucro depois de concluída a obra que valorizou o imóvel” (...) O efeito, para o poder público, é o mesmo da Contribuição de Melhoria; (....) Como observa Antônio de Pádua Ferraz Nogueira (1981:39), depois de apontar as divergências, o fato é que essa modalidade tem sido admitida na totalidade dos tribunais brasileiros, inclusive no STF que, em acórdão relatado pelo ministro Eliomar Baleeiro (RJT 46/550), concluiu que “é lícito ao poder expropriante – não expropriar para satisfazer os interesses de particulares – mas ao interesse público, sem limitações, inclusive para auferir, da revenda de terrenos, um proveito que comporte e financie a execução da obra pretendida”.[5]
Em suma, “planos de desapropriação e gestão do solo adjacente” a projetos viários e de infraestrutura de transporte público urbano são possíveis e necessários, pois visam dois objetivos públicos inseparáveis: a adequada estruturação urbanística da área de influência imediata do projeto e a “internalização” da valorização fundiária resultante no esquema de financiamento da obra.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Gorelik, Adrián, La Grilla y el Parque – Espacio público y cultura urbana en buenos Aires, 1887-1936, Buenos Aires, Universidad Nacional de Quilmas Editorial, 2004, p. 118; Slang, Ricardo M., La Avenida de Mayo, (Colección Cúpula) Buenos Aires, 1955, pp. 26-28.


[2] Gorelik, Adrián, La Grilla y el Parque – Espacio público y cultura urbana en buenos Aires, 1887-1936, Buenos Aires, Universidad Nacional de Quilmas Editorial, 2004, p. 119.

 
[3] Abreu, Maurício, Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, IplanRio 1997, p. 114.


[4] Reis, José de Oliveira, O Rio de Janeiro e Seus Prefeitos: Evolução Urbanística da Cidade, pp.111-112, citado em Abreu, Maurício, Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, IplanRio 1997, p. 114.[5] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo. São Paulo, Atlas, 2001, p. 169




2007-11-22 


quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Raeder, Sávio: "Grandes eventos esportivos no contexto brasileiro: elementos iniciais para o debate sobre impactos e legados urbanos decorrentes de Jogos"

Atendendo generosamente a um pedido meu, o geógrafo Sávio Raeder, estudioso dos impactos dos grandes eventos urbanos da indústria do entretenimento sobre as cidades, envia ao blog um breve texto sobre o tema, cuja leitura recomendo.

O ANO DE 2007 é marcante na história brasileira com 3 acontecimentos significativos no campo dos esportes: (1) a realização do Jogos Pan-americanos na Cidade do Rio de Janeiro, (2) a vitória da candidatura brasileira como sede da Copa Mundial de Futebol Masculino em 2014 e (3) a candidatura carioca aos Jogos Olímpicos de 2016. Cabe uma análise cuidadosa sobre cada um destes ocorridos que observados em conjunto denotam o grande esforço nacional em promover os maiores espetáculos esportivos do planeta. São 3 espetáculos que se encontram em 3 fases distintas de sua organização e que por isso podem ilustrar as sucessivas etapas de conformação dos grandes eventos esportivos (GEEs).
Neste breve apontamento que tem por fito introduzir alguns elementos sobre o processo de conformação dos GEEs, se abordará as sucessivas fases que compõem estes eventos. Trata-se de um escrito introdutório que pretende servir de base para um debate mais longo que se pretende desenvolver a partir de outros textos de discussão em torno do urbanismo promovido em função dos eventos esportivos, fenômeno que na Cidade do Rio de Janeiro encontra sua maior expressão. Sobretudo importa na proposta deste debate, reconhecer a materialidade da dimensão urbana dos impactos e dos legados destes GEEs que se conformam em grandes projetos urbanos dada a sua complexidade espaço-temporal. O presente texto abre a discussão a partir de um recurso analítico formulado por Brunet (1997 e 2003) que será articulado com o calendário de GEEs brasileiro, que foi pontuado acima. 
A figura abaixo elaborada por Brunet, esboça a conformação do evento olímpico a partir de sucessivas etapas que remetem a uma dimensão temporal que se inicia com a organização dos Jogos. (O autor limita seu recurso analítico aos Jogos Olímpicos, contudo ele é perfeitamente aplicável às versões regionais destes, como é o caso dos Jogos Pan-americanos, como também à Copa do Mundo.) Seu esquema ilustrado é bastante didático no sentido de representar, por meio dos volumes dos círculos, o aumento de recursos materiais e imateriais que irão compor o evento esportivo. Tudo começa com algumas pessoas, e instituições que elas representam, se mobilizando para sediar os Jogos. Esta etapa pode ser dividida em duas considerando que há um período de preparação para a candidatura do GEE e outro que se inicia com o anúncio da vitória da cidade candidata a sediar os Jogos. Já naquele primeiro período os atores envolvidos na organização podem se movimentar com tal intensidade que operações urbanas podem ser realizadas, como a desapropriação de terras para a construção de equipamentos que poderiam vir a ser utilizados em caso de vitória.



Nesta fase preliminar de organização dos Jogos, já se pode reconhecer grande parte das intencionalidades de transformação do espaço urbano pelos agentes envolvidos. Trata-se de uma etapa significativa pois nela são formulados os planos de intervenção urbana que se pretende concretizar para viabilizar a realização dos Jogos. Ainda que haja certa publicidade nesta etapa, demonstrando as intenções dos atores públicos em sediar o megaevento, a discussão sobre a alocação dos recursos públicos na Cidade é limitada.
No esquema ilustrado acima, esta fase aparece pequena mas ela é o próprio coração do que será o legado urbano já que muitas das decisões locacionais serão mantidas ainda que nem todas possam ser de fato executadas. Entre estas decisões com riscos de execução encontram-se aquelas relacionadas com as infra-estruturas de transporte, algumas destas estruturas podem ter sido delineadas de maneira ambiciosa demais para os recursos que os atores virão a dispor na fase seguinte, a de investimentos. As intencionalidades dos atores que protagonizam a luta por sediar um grande evento esportivo, são documentadas no caderno de encargos (candidate city bid dossier) apresentado ao comitê esportivo responsável pela organização do evento.
Pode-se situar a candidatura carioca aos Jogos Olímpicos de 2016 justamente nesta fase embrionária que findará em 2009 quando será anunciada a cidade vitoriosa para sediar o megaevento. Desta forma, está em gestação o caderno de encargos que definirá quais os locais da Cidade que deverão ser contemplados com os vultosos investimentos que viabilizarão o evento. Apesar da pouca atenção dada a esta etapa, ela deve ser vista como a mais importante de todas já que ela pode definir toda uma agenda urbana por um período de quase uma década, definindo quais as áreas prioritárias de desenvolvimento da Cidade. O caderno de encargos é um documento basilar na organização dos Jogos que revela tanto os processos decisórios envolvidos nas pretensas alocações de investimentos, como as intenções de transformação territorial a partir da escolha da cidade como sede dos jogos.
Percebe-se que cada círculo é desdobramento de um outro que apresenta uma dimensão delimitada pela sua fronteira, mas ressalta-se que o círculo menor não se esgota até que o evento seja totalmente realizado, e deixe como permanência o legado. Neste sentido, a organização perdura até o final dos Jogos orientando os investimentos, a captação dos recursos para proporcioná-los e ordenando os impactos produzidos antes e durante os Jogos. É a alocação dos investimentos em bens materiais e imateriais que irá definir os impactos dos Jogos, a sua extensão em tempo e espaço. Tais impactos têm um prazo determinado que é o da realização dos Jogos em si, podendo produzir efeitos em diversas dimensões da vida social com a geração de mais empregos, de maior renda, de maior visibilidade para a cidade sede, de retirada de famílias de suas moradias, de valorização de áreas etc. A produção destes impactos terá uma relação direta com a própria conformação do legado, sendo esta sim a única fase que extrapola a temporalidade dos Jogos, e se consolida como permanência tangível ou mesmo intangível no território. 
Observa-se que o anúncio da Copa de 2014 promoveu justamente uma transição do círculo de organização para o círculo de investimentos, fenômeno que se torna mais evidente com as disputas estaduais em sediar partidas desde evento. Há uma distinção muito clara entre a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, que é a de que nestes últimos há uma concentração espacial, e também uma diversidade maior, dos equipamentos esportivos. Enquanto que nas Olimpíadas o evento se concentra em uma única cidade, na Copa os Jogos ocorrem em diversas cidades de, geralmente, um mesmo país. Trata-se de um fato que não deve ser desprezado nas análises dos GEEs, uma vez que os Jogos Olímpicos e suas versões regionais terão impactos e legados urbanos muito mais significativos do que o referido evento futebolístico. De qualquer forma, são também volumosos tanto os investimentos como a visibilidade que a Copa proporciona para as cidades, sendo a acirrada competição por sediar partidas um claro sinal da importância que o evento assume. 
Já os recém concluídos Jogos Pan-americanos do Rio de Janeiro, estes se encontram já na fase do legado uma vez que todas as fases anteriores já foram finalizadas sendo a última a dos impactos que corresponde ao período de realização do evento propriamente dito. Este legado está diretamente relacionado com as etapas anteriores, não se restringindo a elas e podendo ainda ocorrer a geração de ações que não haviam sido previstas mas que se considerou adequada ao desenvolvimento urbano pelos atores hegemônicos. Considerando a necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre este tema específico, ele será abordado em sua dimensão urbanística no próximo texto de discussão. Buscou-se nestes breves apontamentos situar o leitor no contexto brasileiro de valorização da agenda de GEEs, como também oferecer uma caracterização das sucessivas etapas que compõem tais eventos.

Bibliografia

BRUNET, Ferran. The economic impacts of the Olympic Games. In: BRUNET, Ferran; CARRARD, François; CORRAND, Jean-Albert (orgs.). The Centennial President. Lausanne: International Olympic Committee, 1997. p. 1-10.______. Anàlisi de l’impacte econòmic dels Jocs Olímpics de Barcelona, 1986-2004. In: MORAGAS, Miquel; BOTELLA, Miquel (orgs.) Barcelona: l’herència dels Jocs (1992-2002), Barcelona: Centre d'Estudis Olímpics i de l'Esport - Editorial Planeta, 2003. p. 245-274.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

TPC vs. TDC: Onde está a diferença?

A professora Fernanda Furtado postou em 16-10 um breve e oportuno comentário ao texto “Transmilênios e recuperação da valorização do solo urbano”*, anteriormente publicado neste blog:
Pedro, não ficou claro para mim qual a real diferença entre a TDC [Transferência do Direito de Construir] e a TPC [Transferência de Potencial Construtivo] que você propõe. Nos dois casos, me parece que se está legitimando que um potencial construtivo ainda não realizado possa ser entendido como direito de construir do proprietário. Algo que vai contra a sua nota sobre o ponto.
Explico-me.

A tradição jurídica brasileira não reconhece ao proprietário de um terreno como coisa sua, como bem disponível, o potencial construtivo aplicável conforme a Lei de Uso e Ocupação do Solo. É prerrogativa da municipalidade manter, aumentar ou reduzir o potencial construtivo, bem como alterar os usos permitidos, sempre que um novo plano urbanístico é aprovado, sem incorrer em obrigações (“direitos adquiridos”) para com os proprietários de terrenos urbanos. É bom que seja assim e que continue assim. Não advogo a privatização do potencial construtivo ainda não realizado.

Mas o limite dessa autonomia da limitação do direito de construir é, no Brasil, a extinção da possibilidade de aproveitamento econômico do imóvel. Neste caso, é acionado o instituto da desapropriação, que deve ser paga pelo valor de mercado. E como sabemos, o valor de mercado de um terreno é função da combinação uso-aproveitamento mais rentável que ele pode ter. Portanto, sempre que a Municipalidade desapropria um imóvel pelo valor de mercado, o "potencial construtivo ainda não realizado [é] entendido como direito de construir do proprietário" e pago como se tratasse de uma compra-venda entre particulares. Dito de outra forma, muito antes de a Transferência de Potencial entrar em cena, o potencial construtivo não realizado é patrimonializado... pela desapropriação por utilidade pública paga pelo valor de mercado.

Na verdade, a técnica urbanística da Transferência de Potencial, ou do Direito de Construir, sempre opera no marco daquilo que o direito de propriedade determina como passível de indenização por parte do poder público. E é aqui que surge o problema. E que se faz necessária a distinção.

A TPC onerosa, tal como eu a entendo, opera no espaço da regra já estabelecida pelo instituto da desapropriação. Ao se iniciar um projeto que depende de desapropriações, a patrimonialização do potencial construtivo desses terrenos é inevitável, um dado do problema, e seu custo um custo do projeto como outro qualquer. O que a TPC pode fazer é transferir o custo direto (desembolso do Tesouro) das desapropriações para o mercado imobiliário (compradores de imóveis adicionais construídos, com o potencial transferido, em outros lugares do perímetro de projeto). A TPC equivale, pois, à Outorga Onerosa de um estoque de potencial construtivo já estabelecido na Lei Urbanística, ou no Plano Local , para cobertura das despesas do projeto com as respectivas desapropriações.

Como a TPC "recupera" a sobre-valorização no solo de destino para pagar o valor estabelecido para a indenização do solo de origem, o seu poder será tanto maior quanto menor for o espaço jurídico da obrigação de indenizar. Se as desapropriações por utilidade pública passassem a ser pagas pelo "valor de mercado sem projeto", o poder da TPC aumentaria consideravelmente; se passassem a ser pagas pelo valor da terra rural, a TPC se tornaria uma ferramenta de alta potência - e seria, é claro, acusada pelos proprietários de servir à especulação pública.

O problema com a TDC tal como definida no Estatuto da Cidade é que, ao invés de reduzir ou pelo menos ater-se ao espaço das regras dadas para a desapropriação, ela amplia perigosamente o espaço da obrigação de indenizar criando uma espécie de interesse público em fazê-lo. A TDC permite e incentiva que as Municipalidades indenizem, com "Títulos de Potencial Construtivo" (portanto pelo valor de mercado do terreno), proprietários de imóveis afetados por limitações ao direito de construir que não necessariamente eliminam a possibilidade de seu aproveitamento econômico, portanto não obrigam a Municipalidade a desapropriar (Art. 35, ... exercer em outro local... o direito de construir... quando o referido imóvel for considerado necessário para fins de...; Inciso II – preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural).

Assim, a interessante técnica urbanística da Transferência de Potencial se transforma em “cavalo de Tróia” de uma nova interpretação (patrimonialista) da relação entre a limitação do direito de construir e o pagamento de indenizações. A TDC é o veículo de uma nova modalidade de “incentivo” à preservação urbanístico-ambiental que já não é fiscal, mas parenta (muito) próxima da desapropriação por utilidade pública – porém (!!!) mantendo-se o proprietário não apenas na posse do imóvel como no usufruto do aproveitamento econômico que ele pode proporcionar: rentáveis lojas de souvenirs em centros históricos, agências bancárias em imóveis tombados pelo Patrimônio Histórico, resorts turísticos em áreas naturais protegidas... Nos termos do Estatuto da Cidade, a TDC pode funcionar como o Gênio da Lâmpada que concede ao Aladim proprietário o seu maior desejo: vender o imóvel e continuar sendo o seu dono. A meu ver, cria-se assim não apenas uma nova indústria urbanística da preservação ambiental (a "viúva" paga, e bem) como abre-se a porta para a privatização total do “direito de construir”.

A maneira mais simples e idônea de eliminar essa "liberalidade" é, a meu juízo, o Estatuto da Cidade estabelecer que a Transferência do Direito de Construir (que seria melhor chamar de Transferência do Potencial Construtivo) só possa ser aplicada a situações que impliquem em obrigação pública de indenizar ou em desapropriações por utilidade pública. Já não basta o absurdo de o Estado ser obrigado a desapropriar pelo valor de mercado (isto é, pela valorização esperada)?

Espero que tenha conseguido ao menos esclarecer o meu ponto de vista. Prossigamos o debate, que para isso está este blog. Em breve os leitores terão um link para um texto mais amplo que estou escrevendo sobre o tema. E eles próprios, sempre que quiserem, poderão ter seus textos publicados a partir deste blog.

2007-10-25

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Transmilênios e recuperação da valorização do solo urbano


Dentre as muitas aplicações da recuperação (pública) da valorização do solo urbano, uma das mais relevantes para as cidades brasileiras e latino-americanas é, sem dúvida, a aquisição de solo para a implantação de sistemas de transporte público de superfície.

O transporte urbano é um dos muitos caminhos que podem levar um urbanista ao tema da recuperação da valorização imobiliária. No meu caso, influiu decisivamente a convicção de que, devido à limitada capacidade de endividamento público no país, a construção de verdadeiras redes integradas de transporte urbano em nossas grandes cidades só poderia se dar mediante uma combinação equilibrada de segmentos básicos de Metrô no coração da cidade e corredores de alta densidade, trens urbanos modernizados, BRTs nos corredores radiais de expansão urbana e avenidas de ligação dos subcentros e ônibus “alimentadores” nas pontas da rede. Vale dizer, os BRTs podem ser a chave da integração de todo o sistema.

Mas o que é BRT?, há de se perguntar o leitor. BRT (Bus Rapid Transit) é a sigla que, na comunidade internacional da engenharia de transportes (fortemente dominada pela nomenclatura anglo-saxã) designa o sistema que Curitiba lançou há mais de 40 anos e Bogotá recém popularizou na América Latina com o nome de Transmilênio. Para uma visão abrangente das imensas vantagens do BRT, recomendo ao leitor clicar no link abaixo (“BRT-Artigo”) e ler a versão integral de matéria sobre o tema publicada n’O Globo de 26 de julho último, de autoria do engenheiro Ronaldo Balassiano, professor do Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Transportes da COPPE-UFRJ e incansável divulgador desse sistema.*
 

BRTs demandam avenidas capazes de acomodá-los adequadamente, em termos operacionais e urbanísticos. Foi, portanto, na busca de um método para resolver a crônica estagnação do sistema urbanístico de servidões de recuo para alargamento a longo prazo da grandes avenidas do Rio de Janeiro, em especial nas zonas norte e suburbana da cidade, que cheguei ao mundo fascinante, e até então insuspeitado para mim, da recuperação da valorização da terra.

O método em questão é aquele que prefiro chamar de Transferência (onerosa) de Potencial Construtivo (TPC)**. Em 2002, a equipe da Gerência de Operações Urbanas da Secretaria Municipal de Urbanismo do Rio de Janeiro ensaiou a sua aplicação no “Corredor Barão de Mesquita” (Centro-Pça. da Bandeira-Grajaú-Méier, ver Figura), estruturador histórico de uma sub-região urbana com mais de 360 mil residentes. 

A Transferência (onerosa) de Potencial Construtivo não implica a criação de potencial construtivo adicional. É mero manejo espacial do estoque vigente dentro de um perímetro de projeto, dos lotes afetados para outras localizações, conforme legislação específica. A TPC generaliza, via mercado imobiliário, o antigo princípio urbanístico da permuta das áreas afetadas por projetos viários pelo direito de aplicação privada do potencial construtivo correspondente no próprio lote. Com características próprias, este princípio tem sido aplicado na cidade de Porto Alegre desde a década de 1970, culminando na recente implantação da III Perimetral.*** 

A TPC não recupera para a municipalidade a valorização histórica do solo, mas promove a permuta, dentro de um horizonte temporal razoável, do acréscimo de renda fundiária que acompanha o aumento do lucro imobiliário nos empreendimentos adquirentes de potencial construtivo excedente – sem o qual não haveria, evidentemente, interesse dos promotores em sua aquisição – pelo solo de origem do potencial, necessário à implantação do projeto público. Mediante transações bilaterais ou leilões do estoque de potencial das áreas afetadas, a TPC “conduz” o mercado a realizar um objetivo público pré-fixado. Por isso, poderia talvez ser mais exatamente definida como instrumento de “otimização social” da valorização do solo. 

No financiamento de sistemas de transporte de superfície que demandam desapropriações, esse mecanismo deve ser visto como não alternativo, mas complementar à tradicional (embora raramente aplicada no Brasil) Contribuição de Melhoria, hoje em uso, por exemplo, na expansão do Metrô de Buenos Aires. Numa próxima postagem sobre o tema, tentarei mostrar, com poucos números e mapas, a urgência de os setores públicos competentes do Rio de Janeiro estudarem a aplicação da Transferência de Potencial Construtivo para a implantação de um BRT (Transmilênio, ou outro nome da preferência dos cariocas) no chamado Corredor “T-5” (Penha-Madureira-Barra da Tijuca).

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NOTAS
http://www.pet.coppe.ufrj.br/professores/ronaldo/index.html  
** Por oposição a Transferência do “Direito de Construir” (TDC), que, como discutirei em outra postagem, é hoje um instrumento que legitima o pagamento de compensações públicas - indevidas - a proprietários de imóveis urbanos afetados por limitações ao direito de construir que absolutamente NÂO lhes retiram a possibilidade de aproveitamento econômico.
*** Aos interessados, recomendo a leitura da Tese de Mestrado da Arq. Isabela Bacellar Guimarães (UFF, 2007), Transferência do Direito de Construir: questões e conflitos na aplicação do instrumento do Estatuto da Cidade, que contém um excelente depoimento da Arq. Néia Nuzon, da Secretaria Municipal de Fazenda de Porto Alegre.




2007-10-09

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Recuperação de Mais-valias Fundiárias Urbanas no Brasil: Questões e Oportunidades


(Value Capture in Brazil: Issues and Opportunities)
Fernanda Furtado e Pedro Jorgensen
February, 2006

Agradecimentos

Os autores agradecem aos participantes desse projeto, incluindo David E. Dowall, Maria Emilia Freire, Martim O. Smolka, Paulo C. Ávila e Edesio Fernandes por seus relevantes comentários e sugestões. Os férteis diálogos com Antonio Augusto Veríssimo, Paulo Fernando Cavallieri, Elizabeth Castanheira, José Agostinho Leal e Maria Clara Vejarano foram importantes para o desenvolvimento desse documento. Qualquer equívoco ou omissão tanto nas análises como conclusões permanecem entretanto como de exclusiva responsabilidade dos autores

Índice



Sumário Executivo

O presente trabalho tem por objetivo discutir as bases teóricas e o estado da arte das políticas públicas de recuperação de mais-valias fundiárias urbanas no Brasil, estimar a capacidade contributiva que podem ter essas políticas tanto para o financiamento de projetos de infra-estrutura básica nas grandes cidades brasileiras como para a implementação de programas de acesso à terra urbanizada pela população de baixa-renda, e sugerir caminhos para suas aplicações mais eficazes.

No Brasil, como em quase toda a América Latina, a recuperação de mais-valias fundiárias para a cobertura de custos públicos de urbanização – projetos, atividades, serviços – constitui uma prática antiga, porém essencialmente fragmentária. A despeito de importantes avanços recentes, certos aspectos do tema permanecem até hoje bastante obscuros. À parte os instrumentos tributários diretamente relacionados com a recuperação de custos de obras públicas, a apropriação pública regular e consistente das valorizações fundiárias envolvidas nas operações urbanas e mesmo no imposto sobre a propriedade é uma prática quase inexistente na administração pública. Exceção feita à Colômbia – por razões que discutiremos adiante – essas práticas não apenas não evoluíram no sentido de formar um corpo de teoria e doutrina em gestão urbana como parecem ter de certa forma involuído no interregno desenvolvimentista ocorrido entre a era dos grandes projetos de “modernização” dos centros urbanos da primeira metade do século XX e sua reedição nos “grandes projetos de revitalização de centros urbanos” da virada do milênio.
           
Se por um lado o interesse público pela recuperação da valorização fundiária tem óbvia relação com a debilidade crônica dos impostos sobre a propriedade imobiliária nas cidades latino-americanas, por outro são claras as indicações de que seus fatores reguladores são os afluxos de investimentos e empréstimos externos às economias nacionais e as flutuações do sistema de distribuição da receita tributária nacional. Os anos 1950-1980, de fartura de empréstimos externos para projetos de desenvolvimento, “apagaram as pegadas” da promissora história da recuperação de mais-valias fundiárias no Brasil na primeira metade do século XX, mesma época em que, por outro lado, a interrupção do fluxo de recursos externos motivada pela crise a respeito do Canal do Panamá criou as circunstâncias propícias para que a Colômbia viesse a se tornar a indisputável referência teórica e prática latino-americana em recuperação de mais-valias fundiárias, especialmente aquelas destinadas ao financiamento de projetos de infra-estrutura básica – foco do presente estudo. Finalmente, é o ambiente de forte aperto fiscal e restrições ao endividamento do início do século XXI, associado aos processos de descentralização administrativa e aumento da autonomia municipal, que convoca o tema a retomar a sua proeminência, na América Latina como no Brasil.

A estimativa do potencial financeiro e o pleno entendimento das condições de eficácia da recuperação de mais-valias fundiárias como fonte de recursos para o financiamento de infra-estrutura urbana é, pois, um tema de investigação urgente. O presente trabalho se propõe, entre outras coisas, a clarear o caminho dos que pretendam realizá-la. Para tanto, serão necessários tanto o aprofundamento da investigação teórica de seus casos mais relevantes – dos projetos de remodelação dos centros urbanos desde o início do século XX em capitais como Buenos Aires, Rio de Janeiro e Santiago do Chile à rica experiência colombiana com a contribuição de valorização e, mais recentemente, os programas de produção de lotes urbanizados – quanto a formação de um “inventário” que dê conta da multiplicidade de práticas das administrações municipais que têm por fundamento a apropriação do valor acrescido ao solo pelo processo de urbanização, seus respectivos modos de funcionamento e os valores envolvidos.

Com relação às grandes metrópoles do país, há que se reconhecer sua capacidade de gerar riqueza, dentre as quais uma das mais características é a renda fundiária, e concentrar pobreza e precariedade. Do ponto de vista da sustentabilidade das grandes cidades, nada mais razoável que exigir da renda fundiária uma participação muito mais que proporcional para o financiamento de programas de urbanização social. Mais além de sua efetivação através de programas de recuperação de custos, isso pode ser feito por meio de políticas de transferência espacial de rendas do solo – via impostos, oneramento do direito de construir e outros – nas regiões mais valorizadas; por meio da cobrança dos impostos sobre a propriedade nas áreas beneficiadas por programas de urbanização social; e ainda por meio de programas auto-sustentados de produção de lotes urbanizados baseados nos princípios da gestão pública dos direitos do solo e da ação consorciada.

Em nosso país, a recuperação da valorização da terra urbana para fins de financiamento de programas de habitação e urbanização social (leia-se provisão de infra-estrutura urbana em assentamentos de baixa-renda) ganha contornos claros de política pública a partir da aprovação dos Planos Diretores Municipais que, inspirados nos Artigos 182 e 183 da Constituição de 1988, criam os Fundos Municipais de Desenvolvimento Urbano, aos quais afluem as contrapartidas pagas pelos empreendedores imobiliários por direitos adicionais de uso e aproveitamento do solo, previstos nas legislações. Embora dotados de recursos ainda muito insuficientes, os Fundos Municipais têm sido mobilizados com sucesso em programas de urbanização social desde fins da década de 1980, e por isso, pode-se dizer, dificilmente deixarão de ocupar lugar de destaque em qualquer política que tenha por ambição atacar de frente o déficit de habitabilidade concentrado na periferia das grandes metrópoles.

A forma mais geral de recuperação de mais-valias fundiárias é o imposto sobre a propriedade imobiliária (IPTU). Explícita ou implicitamente, o IPTU, embora não se defina nem seja gerido como instrumento de recuperação de mais valias fundiárias, é efetivamente aquele dentre os instrumentos fiscais que mais intensa e amplamente se aplica à valorização do solo urbano. No caso da parcela do IPTU correspondente à valorização fundiária, ou seja, à renda da terra auferida por proprietários em decorrência do processo urbanizador, parece razoável o argumento de que se tal parcela da arrecadação municipal é extraída das rendas extraordinárias do solo, caberia, em uma política de equilíbrio e redistribuição de renda urbana, destiná-la à urbanização social através dos Fundos Municipais de Desenvolvimento Urbano. Por outro lado, cabe questionar por que razão a rica experiência brasileira em urbanização de assentamentos irregulares e informais não se vale, em geral, da cobrança do IPTU dos imóveis beneficiados, ainda que com alíquotas diferenciadas, como fonte de cobertura de custos.

Outras formas clássicas de recuperação (ou antecipação) pública de mais-valias fundiárias têm também, como veremos, uma história própria no país, sem clara relação, porém, com o financiamento de infra-estrutura básica ou sem penetração nos grandes centros urbanos, onde o problema é mais agudo. É o caso, respectivamente, da venda direta de lotes criados por projetos de reurbanização nas zonas centrais nas grandes cidades e da Contribuição de Melhoria, existente em nossa legislação desde 1934, porém de aplicação dispersa e até aqui praticamente restrita a cidades de pequeno e médio porte, e em sua maioria orientadas a projetos de pavimentação de vias públicas. Devidamente combinadas e adaptadas às condições econômicas de adquirentes e empreendedores, essas duas modalidades de gestão da valorização do solo poderão desempenhar papel relevante na consecução de projetos de urbanização de loteamentos e, principalmente, de aumento da oferta de terra servida na periferia das grandes cidades.

Permanece à espera de melhor esclarecimento conceitual a relação entre a valorização do solo urbano e um conjunto de práticas nascidas da onda de privatização de serviços públicos da virada do milênio, como a exploração privada, via publicidade, de equipamentos públicos urbanos, a concessão de áreas públicas a particulares para prestação de serviços comerciais, a manutenção de praças públicas e equipamentos urbanos em regime de “adoção” privada e a cobrança de “direitos de passagem” de redes de serviços de transmissão de imagens e dados. Parece razoável pensar que tais recursos, “rendas públicas” resultantes dos mesmos fenômenos sócio-econômicos que respondem pela valorização do solo privado, poderiam também ser canalizados para programas de urbanização social via Fundos de Desenvolvimento Urbano.

Sabemos também que, à sombra do automatismo do licenciamento de construções conforme o zoneamento e os índices construtivos estabelecidos em lei e, na maioria dos casos, por meio de arcaicas estruturas de natureza mais propriamente “cartorial”, algumas cidades brasileiras administram já há muitos anos verdadeiras “carteiras de obrigações e contrapartidas urbanísticas” – doações de solo para expansão viária; implantação de infra-estrutura básica e urbanização em projetos de parcelamento; construção de escolas e equipamentos públicos – que somam uma certa quantidade de recursos oriundos da valorização fundiária. Caracterizar esses recursos, dimensioná-los e atribuir-lhes sua destinação mais eficaz é tarefa necessária para uma política abrangente de gestão da valorização da terra.

Finalmente, é inadiável a ampliação da oferta de terra servida nas áreas de expansão urbana – eixo obrigatório de qualquer política de redução de preços fundiários para a população de baixa-renda. Nesse sentido, vêm ganhando relevo na cultura e na norma urbanística brasileira, como alternativa às modalidades clássicas de subsídio direto à demanda, as modalidades de ação consorciada baseadas na internalização da valorização do solo no desenvolvimento de projetos urbanos de grande escala. Aqui, o capital de investimento em infra-estruturas pode ser recuperado por meio da operação estatal das variáveis geradoras da valorização fundiária, como a desapropriação do solo rural a custos compatíveis, o re-parcelamento das glebas envolvidas e a atribuição de índices de ocupação e edificabilidade a serem objeto de outorga onerosa.

A economia de custos resultante poderia chegar a corresponder, no preço final pago pelo comprador do lote, ao que hoje via de regra se transfere ao dono da gleba, no mercado informal de baixa-renda, por conta da expectativa de urbanização futura promovida pela municipalidade.

Organização deste documento

O Capítulo 1 discute as bases históricas e teóricas da recuperação de mais-valias fundiárias urbanas aplicadas à América Latina e ao Brasil, ao lado de alguns instrumentos complementares aplicáveis ao caso brasileiro.

O Capítulo 2 discute a experiência latino-americana e brasileira com a recuperação da valorização do solo urbano, na forma de um referencial cronológico e um mapeamento das principais experiências.

O Capítulo 3 examina estimativas do déficit de infra-estrutura básica no Brasil, foco mais evidente de eventuais políticas de recuperação de mais-valias fundiárias, e discute as bases para uma ampliação da abrangência do tema, abordando as diversas modalidades de recuperação de mais-valias fundiárias e seus principais formatos de gestão.

O Capítulo 4 discute problemas do mercado de terras no Brasil: o papel da terra e da propriedade imobiliária, a sua tributação, a escassez relativa de terra servida e os problemas da auto-sustentabilidade na provisão de infra-estrutura básica.

O Capítulo 5 avalia o tema da recuperação de mais-valias fundiárias e em especial da recuperação de custos de investimentos públicos em infra-estrutura urbana, à luz das experiências de regularização de assentamentos informais e da produção de lotes urbanizados.

Nas Considerações Finais, são retomadas as principais questões discutidas para indicar componentes necessários de uma política fundiária e para recomendar algumas linhas de ação pública, tendo como orientação básica a mobilização e a aplicação de recursos oriundos da valorização fundiária urbana em projetos de provisão de infra-estrutura urbana.


Capítulo 1
Recuperação de Mais-Valias Fundiárias Urbanas

1.1  Conceituação

A recuperação de mais-valias fundiárias urbanas representa uma ação do poder público sobre excedentes econômicos apropriáveis como renda da terra urbana. A idéia é a de que o mercado usualmente aloca esses excedentes para o proprietário privado - o qual não é necessariamente perverso ou anti-social - e que a ação do poder público tem o objetivo de intervir nesse processo e transferir tais excedentes para a coletividade.

Essa ação tem basicamente o sentido de restaurar uma situação anterior, ou seja, compreende em certa medida uma posterioridade. Assim, apesar de que possam ser considerados em uma perspectiva que envolve passado e futuro (por exemplo, recuperar mais-valias fundiárias que venham a ser potencialmente ou de fato incorporadas a determinadas propriedades), remetem a uma atuação do poder público que busca intervir sobre uma situação que é conformada pelo funcionamento do mercado. Esta atuação pode ser motivada tanto pela concepção de que esta seja uma característica estruturalmente perversa do mercado de terras, como pelo reconhecimento de que se trata de atuar sobre certas situações que obstaculizam o funcionamento desse mercado, com todas as variações que esses dois entendimentos permitem.  Isto significa que, antes de tudo, o tema é passível de apropriação por diferentes correntes do pensamento econômico, podendo ser desenvolvido tanto a partir de teses intervencionistas quanto de teses liberais sobre o mercado.

Dois entendimentos básicos podem ser delineados a partir dessa idéia. O primeiro postula que toda a renda econômica da terra é mais-valia fundiária. Neste entendimento, qualquer parcela do valor da terra de uma determinada propriedade, seja ela relativa às mais-valias acumuladas no passado ou às mais-valias potenciais que advenham no futuro, estaria qualificada como passível de recuperação para a coletividade.  Um entendimento alternativo para o termo “mais-valias fundiárias urbanas” como objeto de recuperação por parte do poder público é o que remete à valorização experimentada pelos terrenos no processo de urbanização, ou seja, ao “incremento de valor da terra”, e mais especialmente à parcela dessa valorização recebida de forma gratuita pelo proprietário da terra, sendo alheia ao seu esforço.

Seja porque na prática não é factível ou adequado em termos políticos ou administrativos capturar toda a renda, ou porque o entendimento usualmente adotado é o menos restrito, o tema adquire a forma mais geral de recuperar para a coletividade parcelas socialmente acordadas das mais-valias fundiárias urbanas decorrentes da atuação do setor público em nome da comunidade.

Dessa interpretação geral deriva a conformação de um rol de instrumentos de recuperação de mais-valias elaborados especialmente para gravar uma parcela maior ou menor, e mais genérica ou mais específica, da mais-valia fundiária “gerada” no processo de urbanização.  Assim, a diferentes componentes, ou conjunto de componentes, do valor de um terreno correspondem diferentes instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias (Furtado, 1999). O rol de instrumentos inclui desde o tradicional imposto predial[1], incidente sobre todos os componentes de valor da terra indistintamente, até os novos instrumentos destinados a recuperar incrementos de valor produzidos a partir da definição, por parte da administração pública, de usos e aproveitamentos da terra urbana, passando por instrumentos voltados para situações mais específicas, como por exemplo o imposto sobre ganhos imobiliários ou a contribuição de melhoria.

Duas são basicamente as formas de atuação do poder público no processo de desenvolvimento urbano capazes de incrementar a renda econômica da terra: em primeiro lugar, a realização de obras de infra-estrutura e serviços urbanos, tradicionalmente reconhecidas como estreitamente associadas à valorização das propriedades urbanas; em segundo lugar, o entendimento mais recente do impacto, sobre os preços dos terrenos, das decisões administrativas e urbanísticas que regulam a utilização dos terrenos urbanos por seus proprietários.
    
Mas as diferenças no desenho dos instrumentos correspondentes nem sempre se deve apenas à parcela das rendas fundiárias em questão, ao contrário, pode ter origens (e conseqüências) mais profundas.

Ao partir da proposição ética de que “cada um deve ser recompensado apenas pelo seu próprio esforço” [2], temos que o incremento de valor da terra que não é produto do esforço individual é imerecido, e deve ser restituído à coletividade. Mas, o que é produto do esforço individual também é passível de mais de uma apropriação. Para Henry George, a renda de uma determinada propriedade depende unicamente do esforço coletivo: “Considere o que é a renda. Ela não cresce espontaneamente da terra; não é devida a nada que os proprietários tenham feito. Ela representa um valor criado por toda a comunidade. Deixemos que os proprietários tenham tudo o que a posse da terra lhes daria na ausência do restante da comunidade.” (1992 [1879], p.366)

Esta não é, no entanto, a única forma como a proposição é entendida no campo das finanças públicas e nos princípios de tributação. Outra corrente pode ser representada por Edwin Seligman ([1925] 1977, citado em Macon e Mañon, p.5): “A teoria da contribuição de valorização ou melhoria (betterment charge or assessment) de acordo com o benefício é muito simples. Ela se baseia no princípio quase axiomático de que se o governo por alguma ação positiva confere a um indivíduo uma vantagem especial mensurável, é justo para a comunidade que o indivíduo deva pagar por isso.”

Essa visão alternativa deve ser tomada com o devido cuidado, sob pena de que o princípio ético se transforme, de “cada um deve ser recompensado apenas pelo seu próprio esforço” em “cada um deve ser responsável pelos seus próprios custos”.

Nesse debate, dois critérios balizam a teoria e a prática da tributação: o do benefício e o da capacidade de pagamento. No primeiro, há uma relação imediata de troca entre o contribuinte e o governo, enquanto no segundo os tributos devem ser impostos de acordo com regras socialmente aceitáveis, e não como decorrência direta dos benefícios absolutos recebidos (Musgrave, 1959).

Entendemos que se a idéia da recuperação de mais-valias fundiárias for tomada a partir do princípio da compensação, perde-se inteiramente a base que norteia o tema, que é o princípio da distribuição. Por distributividade, entendemos aqui o resultado de uma ação de intervenção do setor público que objetive destinar ao conjunto social excedentes considerados coletivos e que são passíveis de apropriação privada.

Outro ponto importante que deve ser salientado é o de que este princípio de distributividade (restaurar a distribuição prévia), na compreensão de nosso tema, deve ser entendido como diferente da noção de redistributividade (alterar a distribuição prévia). Esta última noção também está relacionada ao nosso tema de forma geral, e assume particular relevância na situação latino-americana, mas deve ser entendida aqui como um dos objetivos possíveis de uma política que tome como eixo a recuperação de mais-valias fundiárias urbanas, e não como seu princípio constitutivo.

Essa distinção é necessária porque na ação de distribuição acima definida, que afeta a forma como essas mais-valias fundiárias são apropriadas, não está contida uma ação de redistribuição, ou seja, esta ação não altera per se a forma como as mais-valias fundiárias são historicamente repartidas. Assim, compreender que a recuperação de mais-valias fundiárias é justa porque permite redistribuir vantagens especiais alocadas privadamente, é algo que não pode ser avaliado independentemente de um conjunto de questões que envolvem, entre outras coisas, como essas vantagens especiais são alocadas.
 
Aqui, tornam-se claras as diferenças entre a apropriação do tema como elemento facilitador do livre funcionamento do mercado de terras urbanas, e a apropriação em que nos situamos, da necessidade da recuperação de mais-valias fundiárias urbanas como elemento de intervenção sobre um mercado de terras cujo funcionamento se caracteriza por uma distribuição estruturalmente injusta das mais-valias fundiárias.

Mas, sob outro aspecto, reconhecemos que a recuperação de mais-valias fundiárias, se realizada de forma sistemática, envolve a redução das oportunidades de geração desses excedentes, e, restringe o componente especulativo do processo de desenvolvimento urbano, contribuindo para estabelecer as bases para uma urbanização socialmente mais justa.

Importa ainda observar que o tema não define em si uma linha de atuação objetivada a restringir a “geração” dessas mais-valias fundiárias, ou alternativamente uma linha destinada a estimulá-la. Desse modo, a concretização de uma política de recuperação de mais-valias fundiárias urbanas que tenha por objetivo restringir a “geração” dessas mais-valias pode incorporar projetos específicos que a estimulem, como seria o caso, por exemplo, na renovação de certas áreas degradadas da cidade. Para cada um desses projetos urbanos, existem diferentes instrumentos ou conjuntos de instrumentos alternativos, cuja seleção e gestão, em cada caso, envolve entendimentos e decisões de natureza técnica e política.

1.2 Aspectos Teóricos e Históricos Aplicados à América Latina e ao Brasil

Historicamente, o desenvolvimento da idéia de recuperação de mais-valias está associado, na América Latina, a um instrumento específico conhecido como Contribuição de Valorização/ Contribuição de Melhoria. Este mecanismo especial de tributação à valorização, incorporado à legislação da maioria dos países latino-americanos, tem por objetivo capturar uma parcela dos benefícios especiais (valorização do solo) que resultem de investimentos públicos em infra-estrutura e serviços públicos, para financiar tais investimentos.

Mesmo sob esta definição restrita, a aplicação da recuperação de mais-valias tem sido assolada por limitações e polêmicas. Tanto a influência política dos proprietários como as deficiências técnicas — e freqüentemente também legais — para realizar avaliações adequadas dos valores do solo, têm sido identificadas por estudiosos e funcionários públicos como entorpecedoras de sua aplicação em muitos países. A Colômbia é talvez o único caso que se destaca por sua tradição estabelecida no uso do instrumento, mas mesmo naquele país o histórico de sua aplicação apresenta sérias controvérsias (Jaramillo, 2001).

Entretanto, entre os dois extremos de recuperação da totalidade da renda fundiária e a captação de parcela dos custos das obras públicas, há que se reconhecer um vasto campo de inserção do tema na realidade latino-americana, envolvendo desde instrumentos mais tradicionais como o imposto predial até uma série de iniciativas pontuais e localizadas, passando pelas tentativas de elaboração de novos instrumentos mais inclusivos.

Pode-se dizer, de modo mais geral, que a trajetória do tema e de políticas correspondentes na América Latina é marcada pela debilidade na implementação de instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias. Essa debilidade está balizada, por um lado, pela carência de recursos suficientes para financiar a provisão de infra-estrutura e serviços urbanos e, por outro lado, pela grande valorização fundiária nas cidades, associada ao processo de desenvolvimento urbano.

A importância do tema, porém, não está limitada ao uso desses instrumentos e seu potencial como coadjuvante em objetivos de políticas urbanas específicas, nem meramente à resolução de uma questão ética. Definir mais claramente as relações que se estabelecem entre os incrementos de valor da terra e a atuação pública é, na realidade latino-americana, um passo necessário para abordar de maneira mais integral um dos problemas fundamentais da urbanização latino-americana, o de como financiar a provisão de infra-estrutura e serviços urbanos para a população de baixa-renda.

Tendo em vista as disparidades de riqueza e acesso ao solo urbanizado na América Latina, e seu rebatimento espacial, cristalizado no binômio conformado por centros urbanizados afluentes (para poucos) e periferias pobres carentes de serviços (para a maioria), o desenvolvimento de políticas e instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias para os países latino-americanos não pode ser considerado independentemente de uma política urbana orientada para a redução das desigualdades sócio-espaciais. Além disso, é importante considerar não apenas as diferenças relativas como também as diferenças absolutas na provisão de infra-estrutura pública.

Para lograr a redução da enorme iniqüidade existente, é fundamental empreender ações diretas orientadas a alterar a presente distribuição dos valores do solo. Isto significa que, embora não necessariamente envolvida na idéia da recuperação de mais-valias fundiárias, a redistribuição deve ser incorporada deliberadamente no desenvolvimento de políticas distributivas nos países latino-americanos.

Essa necessidade estrutural contrasta com a estreita relação que se estabelece, na experiência latino-americana, entre o conceito de recuperação de mais-valias fundiárias e o instrumento da Contribuição de Melhoria. Alguns observadores criticam a forma com que esses tributos são implementados na versão latino-americana, desconsiderando um dos principais objetivos do sistema tributário, a redistribuição de renda, considerada “especialmente importante na América Latina, onde as diferenças de renda e riqueza são tão grandes” (Jones e Ward, 1994), enquanto outros defendem o argumento da sua incapacidade estrutural para a redistribuição. Outros, ainda, assinalam que freqüentemente ele perde seu vínculo até mesmo com o princípio distributivo, convertendo-se simplesmente em uma forma prática de custeio de intervenções públicas nem sempre de interesse da coletividade.

Em verdade, em países com grande desigualdade de renda, a consecução de projetos custeados com recursos da mais-valia fundiária não será, em princípio, redistributiva, porque o pressuposto de sua viabilidade é a pré-existência da capacidade de pagamento por parte dos contribuintes afetados. Pode-se apenas admitir que, no âmbito da política urbana como um todo, este projeto tenha um significado estrutural que permitirá melhorar o desempenho de uma economia (geração global de riqueza) em que a distribuição da renda é buscada por um conjunto sistêmico de políticas. Ou seja, o caráter redistributivo de uma modalidade de apropriação pública de mais-valia fundiária jamais se resolverá no âmbito da própria modalidade. Em geral, a “redistributividade” do sistema de recuperação de mais-valias fundiárias só se expressa no âmbito da política urbana e extra-urbana como um todo e a médio-longo prazo.

De outra parte, a rejeição aos instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias tampouco contribui para uma necessária alocação mais eqüitativa de recursos para obras públicas. Para superar as contradições que surgem entre o uso tradicional dos instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias para aumentar as receitas fiscais e a necessidade de incorporar as metas de redistribuição em tais políticas, o conceito da recuperação de mais-valias fundiárias deve ser contemplado de forma mais ampla, envolvendo a associação entre três ações públicas: a ação pública original (regulação, investimento, etc.) que origina incrementos no valor do solo; uma segunda ação para a recuperação (parcial) desse valor; e uma terceira ação relacionada ao destino e uso dos recursos recolhidos.

Assim, o principal desafio para o caso latino-americano está em aprimorar as idéias e as pré-condições para um uso mais adequado de instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias, em lugar de imediatamente rejeitá-los em favor de instrumentos inovadores desconhecidos por parte da população e sujeitos a problemas similares, ou de concentrar os esforços em apenas vencer dificuldades técnicas e operacionais para a aplicação dos instrumentos existentes.

Esta discussão reforça o argumento de que, na América Latina, as políticas de recuperação de mais-valias fundiárias devem ser precedidas de mudanças no processo de distribuição dos valores do solo no mais amplo sentido, especialmente quando se busca a redistribuição como meta prioritária de política urbana. Esta perspectiva ajudaria a considerar de maneira integrada, em cada decisão pública associada à distribuição de valor do solo, as várias outras formas mediante as quais o setor público contribui para essa distribuição, incluindo:

·         o desenho e a arrecadação dos impostos sobre a terra;
·         a alocação das receitas públicas para as obras de infra-estrutura e serviços urbanos;
·         a aplicação (ou não) de instrumentos específicos de recuperação de mais-valias fundiárias;
·         a repartição dos recursos arrecadados; e
·         a definição dos usos e direitos de desenvolvimento do solo urbano.

Essa perspectiva mais abrangente do tema engloba um conjunto bastante ampliado de instrumentos tributários e não tributários passíveis de serem utilizados com o objetivo de uma adequada distribuição de rendas fundiárias. Esses instrumentos podem ter prioritariamente a finalidade arrecadadora, como é o caso do Imposto Predial e Territorial Urbano e da Contribuição de Melhoria, ou a finalidade de controlar certos aspectos do funcionamento do mercado de terras, como é o caso do imposto progressivo sobre os terrenos vazios, ou ainda possuir finalidades mistas urbanísticas e fiscais, como no caso da Outorga Onerosa do Direito de Construir.

À guisa de complementar o tema, apresentamos a seguir algumas linhas a respeito da delimitação dos instrumentos complementares citados no caso do Brasil.     

Impostos especiais sobre vazios urbanos
Vários países da região têm instrumentos tributários legalmente definidos para lidar com a retenção prolongada dos terrenos urbanos, e em alguns são associados mecanismos complementares de incentivo à ocupação dessas áreas, como as urbanizações e edificações compulsórias.

Em linhas gerais, a face anti-social dos vazios urbanos tem basicamente duas dimensões reconhecidas. A primeira delas é a retenção desses terrenos no decorrer do processo em que as áreas em que estão inseridos vão sendo equipadas, com a conseqüente apropriação privada das mais-valias fundiárias. A outra é a perversidade social da manutenção desses terrenos sem utilização em um quadro de escassez de recursos públicos para servir de infra-estrutura urbana a totalidade dos terrenos. Os instrumentos correspondentes visam à recuperação de uma parcela das mais-valias apropriadas privadamente, a sujeição dos direitos do proprietário à função social da propriedade, ou, mais genericamente, uma combinação desses dois propósitos.

Um exemplo no Brasil é a política de incentivo ao aproveitamento de vazios desenvolvida em Porto Alegre nos últimos anos do século XX, na qual os dispositivos constitucionais definidos para intervir sobre a manutenção de terrenos sem utilização ou com subutilização foram aplicados no bojo de um redesenho da tributação imobiliária, do orçamento municipal e de outros elementos de planejamento urbano para uma política fundiária mais abrangente.

A possibilidade de dinamização dessas áreas, seja como ingrediente das políticas de renovação dos centros urbanos, seja como elemento da política habitacional social, vem despertando mais recentemente grande interesse por parte dos governos locais e mesmo nacionais, sobretudo para as grandes cidades da região. Os exemplos concretos de iniciativas neste sentido vão de Buenos Aires ao centro histórico de Havana, passando por Assunção e São Salvador.  Nessa nova abordagem que envolve o potencial dos vazios urbanos em áreas que possuem infra-estrutura, o tema da recuperação de mais-valias fundiárias assume também um significado mais amplo, envolvendo a mobilização, a participação e a gestão pública na criação e distribuição das mais-valias fundiárias que venham a decorrer desses projetos urbanos de aproveitamento dos terrenos vazios da cidade.

No Brasil, o imposto territorial progressivo é acompanhado de outros mecanismos alternativos, como o parcelamento e a edificação compulsória e a desapropriação com pagamento através de títulos da dívida pública.

A outorga onerosa do direito de construir
O instrumento consiste em uma re-interpretação da noção clássica de Solo Criado (índice único de edificabilidades), pela qual o solicitante de uma licença de edificação pagará uma contrapartida proporcional pelo exercício do direito de construir acima do coeficiente de aproveitamento básico fixado na legislação, que pode ser único para toda a cidade ou variável conforme a região, até atingir o coeficiente máximo, também fixado na normativa urbanística municipal.

Embora amplamente aceita como mecanismo de distribuição de ônus e benefícios da urbanização, a OODC ainda é objeto de controvérsias teóricas quanto à predominância do caráter fiscal ou indutor do ordenamento territorial. Embora se admita que a recuperação de mais-valias possa não ser a inicialmente esperada em termos de volume de recursos[3], sua importância é estratégica em termos tanto da afirmação da função social da propriedade urbana quanto da incorporação dos aspectos econômicos à cultura da gestão urbanística.

Outros instrumentos que se utilizam da noção de direitos de uso e edificação, previstos na legislação urbana nacional, são a Outorga Onerosa de Alterações de Uso do Solo, a Transferência de Potenciais Construtivos e a Operação Urbana Consorciada.

Outros instrumentos
Complementando a “carteira” de instrumentos disponíveis no Brasil que estão direta ou indiretamente associados à recuperação de mais-valias fundiárias, aparecem outros institutos já tradicionais como a desapropriação, assim como outros com os quais já se conta com alguma experiência, como as Áreas de Especial Interesse Social, e alguns recentemente incluídos na lei federal de regulamentação da política urbana (Estatuto da Cidade, 2001), como o consórcio imobiliário e o direito de preempção. Vale notar que esses e outros instrumentos sacramentados no Estatuto da Cidade propiciam políticas urbanísticas de redistribuição de renda, mas de nenhuma forma as garante.

Por fim, cabe apontar a ausência, na normativa ou na prática brasileira, de outros mecanismos internacionais cujas bases poderiam ser aproveitadas na composição de um sistema voltado para a proteção das camadas menos favorecidas, como o Tax Increment Financing, o Inclusionary Zoning e o Land Readjustment.


Capítulo 2
A Experiência na América Latina e Possibilidades no Brasil

2.1 Um Referencial Cronológico Básico

Embora fundamentalmente associada à formulação e aplicação de mecanismos contributivos de proprietários de solo na execução de obras públicas, a recuperação de mais-valias fundiárias apresenta, na América Latina, uma interessante variedade histórica de exemplos e formatos, com diversos tipos de aplicação e graus variados de eficácia. 

A instituição de tributos destinados à recuperação de mais-valias fundiárias se desenvolveu no continente a partir da década de vinte do século XX. Até então, a iniciativa de recuperação de mais-valias fundiárias para o financiamento de obras públicas pertencia quase que exclusivamente às concessionárias de serviços públicos. Estudos históricos diversos dão conta das estreitas relações existentes entre a Light, maior concessionária de serviços públicos (energia e transportes) em operação no Brasil, e os proprietários fundiários das áreas servidas por seus planos de expansão. No Rio de Janeiro, então capital da República, nada menos que os dois túneis de acesso à zona oceânica foram abertos pela companhia no período 1890-1910.

Entre as décadas de 20 e 40, legislações referentes à recuperação de valorização do solo foram introduzidas pelo menos na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Venezuela. O marco legal desses instrumentos é dado pelo objetivo arrecadador, aliado à disseminação do ferramental do urbanismo modernista e a uma conotação distributiva associada a princípios de reforma social. Não há, de início, consenso a respeito do critério básico da arrecadação, se o custo da obra ou a valorização do imóvel. Os instrumentos aparecem como de natureza híbrida, característica que centraliza as disputas em torno de seu entendimento e desejabilidade. A debilidade na sua implementação contribui para o esvaziamento do instrumento e sua redução a aplicações pontuais.

Esta é também a época do primeiro grande surto de projetos de transformação de centros urbanos. Inspiradas no modelo parisiense, capitais latino-americanas como Buenos Aires e Rio de Janeiro promovem a abertura de grandes avenidas centrais. No Rio de Janeiro, a revenda de lotes valorizados é usada como método de recuperação de custos de desapropriação e obras.

No terceiro quarto do século XX, o tema perde visibilidade. No Brasil, como em vários outros países da região, esse período de relativa fartura de empréstimos internacionais é marcado por um refluxo do tema da recuperação de mais-valias fundiárias. Em geral, as obras públicas são executadas com capital de empréstimo, e visam à criação de infra-estruturas para o desenvolvimento econômico dos países.

Por outro lado, a provisão de moradia e serviços públicos concentra a atenção dos urbanistas. O tema da recuperação pública das mais-valias fundiárias vem à tona pela exacerbação de sua contra-face, a sua apropriação privada. Formula-se o objetivo de controlar certas manifestações do mercado de terras consideradas indesejáveis. O debate na região, iniciado nos anos sessenta, adquire maior vigor nos anos setenta, sendo incluídos na legislação de diversos países instrumentos para lidar com essas situações, inclusive países não tradicionalmente envolvidos com o tema, como Peru e Equador. No Brasil, é então gestada a criação de sistemas de recuperação de mais-valias no âmbito da legislação urbanística, mais tarde materializada nos Planos Diretores Municipais definidos pela nova Constituição Federal de 1988.

No final desse período, o tema da recuperação de mais-valias fundiárias reaparece em diversos países em sua versão original, com novas tentativas de definição de tributos arrecadadores. Em alguns lugares, esse ressurgimento é marcado pela elaboração de novos instrumentos que incorporam o objetivo do controle do uso do solo, incorporando definitivamente o tema, antes em geral limitado à atuação dos setores de obras públicas e fiscal, ao setor de planejamento urbano. No Brasil, assim culmina um processo de décadas, que começa com a proposição do “Solo Criado” pela Carta de Embu, em 1976, e 25 anos depois é consagrado na aprovação da Lei Federal conhecida como Estatuto da Cidade.

Na década de 1990, as exigências da economia globalizada de serviços promovem mudanças profundas na estratégia de gestão das cidades. Afetadas pelo baixo crescimento econômico, pela contenção forçada do gasto público e pela desigualdade e informalidade crescentes, as grandes cidades adotam modelos de planejamento estratégico orientados para a “integração competitiva” das grandes cidades ao mercado mundial de centralidades, turismo e grandes eventos.

A onda globalizadora da virada do milênio é marcada pelo aparecimento de “grandes projetos de revitalização urbana” com recursos combinados públicos (geralmente terras liberadas pela desativação de funções portuárias, ferroviárias e militares) e privados. Na esfera dos projetos públicos, o aperto fiscal repõe a questão da recuperação de mais-valias do solo como fonte de financiamento. Neste contexto, a tendência é que a recuperação de mais-valias fundiárias passe de instrumento geral de gestão redistributiva do solo a meio pontual de mobilização de recursos não oriundos do endividamento, seja pela via da concessão de serviços, seja pela via da recuperação antecipada – integração das mais-valias imobiliárias ao esquema de financiamento de grandes projetos urbanos.

Em suma, o histórico da recuperação de mais-valias fundiárias urbanas na América Latina mostra que se trata de um tema passível de múltiplas apropriações, cuja referência mais forte e típica na região é a contribuição de melhoria, desenvolvida sob formas específicas em cada país. Este instrumento, de natureza tributária e voltado prioritariamente para o objetivo da arrecadação, condicionou e restringiu o desenvolvimento do tema, de forma mais consistente, na América Latina.

2.2 Mapeamento de Experiências

Recuperação de mais valias em projetos públicos: sucessos parciais, resultados fortuitos e oportunidades desperdiçadas.
Um exemplo paradigmático da aplicação de mais-valias fundiárias ao financiamento de projetos de reestruturação urbana na primeira metade do século XX é o da criação da Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, eixo monumental (100m de largura) de acesso ao centro de negócios, construído no início da década de 1940. A lei que sancionou o projeto contemplava tanto a previsão de custos com desapropriações quanto a previsão de receita com a venda dos novos lotes lindeiros. A operação envolveu a emissão de papéis, denominados Obrigações Urbanísticas, com valor venal igual ao valor pré-fixado dos novos lotes aos quais se vinculavam, dados em caução a um empréstimo obtido pela municipalidade junto ao Banco do Brasil. Apesar de a avenida ter sido parcialmente implantada segundo o modelo previsto, não se tem notícia dos trâmites e do resultado financeiro da operação.

O princípio expresso na abertura da Presidente Vargas foi mais tarde (1963) defendido em caráter geral pela Organização do Plano Regulador da Municipalidade de Buenos Aires, que recomendava a aquisição antecipada pelo Estado das terras necessárias, para evitar que as obras públicas viessem a beneficiar somente os proprietários de imóveis compreendidos em sua área de influência. (Clichevsky, 1990).

Um ano depois, na Venezuela, uma iniciativa contemporânea ao conhecido Informe Lander ilustra a aplicação da idéia. Para a execução de uma importante avenida em Caracas, o Ministério de Obras Públicas fez desapropriar todas as franjas adjacentes, visando à recuperação antecipada da valorização dos terrenos. Nesse caso, os objetivos foram cumpridos, já que os preços das desapropriações não incorporavam toda a valorização potencial dos terrenos, permitindo que parte dela fosse apropriada pelo Estado. Mais que isso, parte desses terrenos foi transferida ao Banco Obrero para a construção de habitações de interesse social, sendo o benefício parcialmente transferido aos destinatários finais.

Mas nem sempre esse método de recuperação de mais-valias fundiárias obedece à intencionalidade explícita do poder público, podendo ocorrer de maneira fortuita. Em Santiago do Chile, por exemplo, um projeto baseado na mesma idéia da revenda de excedentes de desapropriações foi viabilizado para a área da Nueva Providencia em 1974, primeiro ano após o golpe militar. Isso ocorreu apesar da condenação por parte da Junta de Governo a qualquer intromissão estatal no mercado, e da rejeição explícita da consulta realizada pela prefeitura de Santiago ao governo nacional sobre a possibilidade de introduzir um mecanismo de recuperação de valorização (Sabatini e Cáceres, 2001).

Na Nicarágua, o modelo aparece de forma indireta na reforma urbana implementada pelo governo revolucionário Sandinista. A Ley de Expropiación de Áreas Urbanas Baldías, de 1981, fixou indenizações aos proprietários com base em valores cadastrais desatualizados, sendo os terrenos desapropriados entregues gratuitamente a populações de menores recursos ou transformados em praças e parques. No entanto, uma de “ley de plusvalías” que circulou no Ministerio de Vivienda y Asentamientos Humanos não chegou a ser discutida pelas instâncias pertinentes (Morales, 1997 apud Furtado, 1999). 

Mais freqüentes, no entanto, na história da apropriação de solo urbano valorizado por projetos públicos, são os exemplos de oportunidades desperdiçadas. Na Área Metropolitana de Buenos Aires, na década de 1980, as terras públicas inundáveis ao redor do novo Camino del Buen Ayre registraram uma valorização de 2 para 20 dólares por metro quadrado, depois de terem sido vendidas pelo Estado a uma cadeia de supermercados e um centro comercial pertencentes a capitais estrangeiros (Clichevsky, 1990).

Em 1995, 20 anos depois de inaugurada a Linha 1 do Metrô do Rio de Janeiro, a Companhia do Metropolitano promoveu a realização de estudo de avaliação do potencial de valorização dos remanescentes de desapropriação, medida não prevista originalmente como fator de recuperação de custos da sua implantação. O valor potencial dos principais terrenos foi estimado, na época (1995), em 127 milhões de dólares, mas o desenlace da questão ainda não ocorreu, estando na dependência de complicados trâmites jurídicos e legislativos. Também no Rio de Janeiro, o plano de desapropriações para a construção da Linha Amarela, via expressa de 25 quilômetros de extensão (primeira via urbana pedagiada da América Latina), ligando o bairro de alta renda da Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional através de áreas suburbanas da cidade, não previu a utilização adequada nem a revenda das terras lindeiras e remanescentes, parte das quais se tornaram objeto de ocupação irregular.

Vale mencionar que, no Brasil, a aplicação desse modelo, facultado pela chamada desapropriação por zona, urbanística ou extensiva, é ainda hoje objeto de controvérsia jurídica, em face da posição potencialmente especulativa exercida pelo Estado. Para muitos juristas, no entanto, a revenda das terras valorizadas por obras públicas, desde que prevista no ato expropriatório, é um sucedâneo da contribuição de melhoria no financiamento da obra pública.[4]

Finalmente, vale destacar uma modalidade de recuperação de mais-valias fundiárias muito em evidência na Europa e Estados Unidos no último quarto do século XX, e que vem ganhando impulso na América Latina na virada do milênio. São os grandes projetos de requalificação de zonas próximas às áreas centrais com o aporte de terras públicas ou concessionadas, dos quais o exemplo mais vigoroso na região é a área do Puerto Madero em Buenos Aires.

Mecanismos ad hoc - Operações Interligadas e Operações Urbanas no Brasil
As Operações Interligadas são vistas por muitos latino-americanos como a experiência brasileira mais exitosa, ou ao menos a mais eloqüente, de implementação efetiva da noção de recuperação de mais-valias fundiárias. Em geral elas consistem de autorizações especiais, mediante solicitação dos interessados, para a alteração pontual de parâmetros da normativa urbanística vigente com a contrapartida da realização ou do pagamento pela provisão de habitação de interesse social ou outros itens urbanos de responsabilidade do setor público.

O instrumento foi proposto e implementado em diferentes partes do país, em distintas versões. Os critérios estabelecidos para as alterações pontuais dos parâmetros de uso e densidades variam desde os mais técnicos, como a vinculação à infra-estrutura disponível, caso de projeto para Campinas nos anos noventa, até os mais subjetivos, como a “harmonia urbanística”, caso do Rio de Janeiro. Essa apropriação variada muitas vezes obscurece os reais objetivos da utilização do instrumento.

Em São Paulo, a lei das Operações Interligadas estabelecia desde o final dos anos oitenta uma relação direta entre a concessão de direitos excepcionais de uso e ocupação do solo em terreno ocupado por favela e a construção de novas moradias urbanizadas sob responsabilidade do empreendedor.

Já na Operação Interligada do Shopping West Plaza, que tencionava ocupar três quadras na zona Oeste da cidade, o emprendedor triplicou em uma primeira etapa o aproveitamento permitido pagando, como contrapartida, o equivalente à construção de 475 HIS (Habitações de Interesse Social).  Numa segunda etapa de negociações, envolvendo a construção de passarelas sobre a via pública para ligar os três blocos, o emprendedor pagou o equivalente a mais 335 HIS, perfazendo um total de quase 10 milhões de dólares (Sandroni, 2001).

Em Porto Alegre, uma variante das Operações Interligadas foi desenvolvida sob a rubrica de Operações Concertadas, processo pelo qual se estabelecem condições e compromissos para a aprovação de Projetos Especiais de Impacto Urbano. Um exemplo típico é do Cristal Shopping, com mais de 200.000m2 de área construída em área pertencente ao Jockey Club, clandestinamente ocupada por mais de 700 famílias vivendo em condições de grande precariedade. O Termo de Ajustamento determinou ao empreendedor a obrigação de construir uma série de obras viárias e de infra-estrutura e reassentar 717 famílias em uma nova área provida de escola.

No Rio de Janeiro, as Operações Interligadas são, desde o início, exceções ao direito de construir concedidas pelo município mediante contrapartida em dinheiro diretamente transferida ao Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano. Em um ano de uso, este instrumento abasteceu o FMDU com cerca de 40 milhões de reais, proporcionando um acréscimo de 20% ao orçamento da Secretaria Municipal de Habitação, então envolvida com o lançamento do programa Favela-Bairro.

As OI apresentam, pois, duas vertentes. A primeira diz respeito a projetos privados de grande porte que podem ser vistos como de interesse estratégico pela própria municipalidade e cuja onda de impactos positivos e negativos transcende a capacidade de previsão da legislação de uso e ocupação do solo. Eles exigem do setor público a montagem de dispositivos especiais de análise urbanística e avaliação econômica com a conseqüente imposição ad hoc de contrapartidas. Quando bem geridas por parte do setor público, essas operações tendem a exercer efeitos urbanizadores benéficos e são em geral aceitas pela sociedade. Em algumas cidades começaram a ser aprovadas Operações Urbanas para a realização de grandes projetos em parceria com o poder público, entretanto as primeiras práticas com o novo instrumento mostraram que ele ainda necessitava de um marco normativo mais bem delineado.

A segunda consiste na prática rotineira de concessão de exceções para projetos de caráter não estratégico, porém com elevada capacidade de recolhimento de contrapartidas monetárias ao Fundo de Desenvolvimento Urbano. Esta vertente implica a criação de mais-valias extraordinárias, vale dizer, além daquelas estabelecidas pelos preços de mercado com base na legislação vigente, que o Estado reparte com os empreendedores privados. Uma barganha em que a sociedade abre mão de padrões urbanísticos por ela mesma escolhidos em benefício da melhoria das condições de moradia de grupos de baixa renda. Além de amplamente criticadas por seu caráter amplamente subjetivo e até arbitrário, sempre em áreas altamente valorizadas da cidade, estas operações têm sua capacidade de geração de recursos limitada pelo nível da atividade imobiliária, pela rigidez relativa das legislações vigentes e, finalmente, pelo seu baixo grau de legitimidade e aceitação política.

Nos anos 1990, as Operações Interligadas começaram a paulatinamente dar lugar à Outorga Onerosa do Direito de Construir, instrumento que veio a ser sacramentado no Estatuto da Cidade como mecanismo típico de recuperação de mais-valias no âmbito da gestão urbanística. Nos Planos Diretores de todas as capitais metropolitanas e grandes cidades brasileiras, a Outorga Onerosa passa a ser a principal fonte de abastecimento dos Fundos Municipais de Desenvolvimento Urbano.  Quanto aos projetos de grande porte, seu processo de implementação e gestão foi também normatizado no Estatuto da Cidade, através do instrumento denominado Operações Urbanas Consorciadas.

A Contribuição de Melhoria
A presença mais constante na história da recuperação de mais-valias fundiárias na América Latina é, sem dúvida, a da contribuição de melhoria (CM) e mecanismos similares. Com a notória exceção da Colômbia, porém, a trajetória do tributo no continente tem mais frustrações do que sucessos. Apesar de perfeitamente definida na maioria das legislações nacionais, a CM raras vezes foi implantada na prática. 

No continente, a CM se caracteriza pela conjugação dos conceitos de betterment e special assessment [5], com base no entendimento de que o pagamento dos custos da obra pública pelos proprietários beneficiados é uma forma simplificada de recuperação de mais-valias fundiárias, em geral de difícil mensuração. Ela se expressa na cláusula recorrente segundo a qual a cota-parte individual dos custos da obra deve estar limitada à valorização de cada propriedade afetada.

Além de artificial, tal conjugação contém uma evidente contradição: se a recuperação dos custos se justifica pela dificuldade de mensurar a valorização, esta não poderia ser calculada para servir de limite ao montante da contribuição. Alguns analistas chegam a contestar que a CM seja um instrumento de recuperação de mais-valias fundiárias (Clichevsky, 1998; Morales, 1998; Jaramillo, 1997, apud Furtado, 1999), alertando para a inexistência de uma relação causal direta, e mesmo necessária, entre a realização de uma obra pública e a valorização fundiária.

Dentre os questionamentos mais freqüentes à sua adoção estão: o fato de que as comunidades mais carentes de obras públicas são justamente as que têm menor capacidade de pagamento; a não coincidência entre o custo das obras e a valorização dos imóveis, potencialmente geradora de sub- e sobre-tributação; as desigualdades inter-generacionais e sócio-espaciais geradas pela não cobrança do tributo às propriedades beneficiadas no passado; a ocorrência de desvalorizações provocadas por obras públicas intra-urbanas, e outros fatores (Sandroni, 2001).

Casos mais significativos
A Ley de Regimen Municipal equatoriana, de 1971, é um exemplo de rigor normativo. Além da Contribución Especial de Mejoras, criam-se mecanismos como o Impuesto Adicional al Solar no Edificado e o Impuesto a las utilidades de compraventa de predios urbanos y plusvalías de los mismos. Este último chega a prever a captura, por meio de uma tabela progressiva, de até 42% do incremento de valor das propriedades (Pauta, 1998, apud Furtado, 1999). No entanto, mesmo a recuperação de custos dos investimentos públicos é escassa nos municípios.

No Peru, a Contribución de Mejoras estabelecida na legislação em 1981e regulamentada em 1985 não foi imediatamente aplicada por nenhuma instância governamental até o programa metropolitano de 1990. Essa experiência foi avaliada como exitosa, pois mesmo sem ter arrecadado recursos de grande monta (cerca de 0.25% das receitas correntes dos municípios), a recuperação cobriu de 20 a 50% dos custos de 30 obras de infra-estrutura viária, água potável, esgoto e eletrificação em assentamentos de baixa-renda. Em regiões de renda média e alta, porém, os beneficiários interpuseram recursos contra a aplicação do tributo, o que levou à descontinuação o programa. Em 1993, o tributo foi substituído pela Contribución Especial por Obras Públicas que, entre outras modificações, exigia a aquiescência prévia da população afetada. Desde então, o instrumento não foi mais utilizado no país. (Calderón, 2001)

No Chile, o imposto sobre a mais-valia fundiária, que aparece como bandeira do Partido Radical desde o início do século, é impulsionado, a partir dos anos 20, pela introdução do urbanismo modernista em Santiago[6]. Em 1934, a Comissão do Plano Regulador de Santiago defendia a cobrança de até 50% da mais-valia oriunda de obras públicas. Em 1940, um projeto de lei de imposto à mais-valia territorial, de alcance nacional, é apresentado, mas não prospera. Em 1947, uma proposta de reforma tributária propõe, entre outras coisas, um imposto à sobre-valorização imobiliária em relação a outros investimentos e um tributo progressivo sobre os vazios urbanos. A partir de 1952, porém, o tema entra em estado de latência, assim permanecendo nos governos de Frei e Allende, para reaparecer pontualmente na era Pinochet. (Sabatini e Cáceres, 2001)

Na Venezuela, Luis Lander, membro do partido social-democrata, liderou em 1964 uma comissão presidencial para formular recomendações para uma política de habitação e desenvolvimento urbano e regional, cujo foco era o problema da posse, escassez, uso e custo da terra. As recomendações, que incluíam vários instrumentos para a recuperação de mais-valias territoriais originadas pela atuação do Estado, foram qualificadas como tentativa de estabelecer uma reforma urbana de corte socialista e rejeitadas até mesmo por membros do alto escalão do governo. No entanto, a legislação urbana pertinente na Venezuela era das mais abrangentes do continente, não limitando a contribuição aos custos e envolvendo o pagamento de 75% da mais-valia fundiária decorrente de obras públicas. Ocorre que essa legislação, criada em 1947, envolvia um processo operacional de tal complexidade que não há notícias de sua aplicação. (Camacho e Tarhan, 2001)

A exceção colombiana
A cobrança da Contribución de Valorización constitui uma prática ininterrupta na Colômbia desde sua primeira inserção legal em 1921, regularidade que tem sido explicada como resultado de uma particular incapacidade do Estado central de atender à provisão de serviços públicos, o que por sua vez engendrou uma particular tradição de municipalismo no contexto latino-americano.

Jaramillo (2001) destaca a tendência histórica de ampliação do âmbito de sua aplicação, de local urbano e rural (1921) à capital Bogotá (1936) e mais tarde aos “serviços públicos” em geral (1943), vinculando-se o valor cobrado não mais ao custo da obra e sim à valorização das propriedades. A Lei de 1968 estabeleceu os contornos da legislação atual, generalizando o uso da CV a todos os âmbitos territoriais, porém vinculando novamente o valor do gravame ao custo da obra, mais 10% de imprevistos e 30% de administração, sempre limitado idividualmente à valorização estimada da propriedade.

O ponto mais alto da história desse mecanismo está entre o final da década de 1960 até o início da década de 1970. Em 1980, a arrecadação por valorização somava ainda 27,7% das receitas municipais em Medellín e 31,7% em Cali. A partir de então, verifica-se uma tendência de retração tanto absoluta quanto relativa a outros recursos fiscais e, no caso de Bogotá, em relação ao próprio tamanho da cidade.

Dentre as possíveis causas dessa retração estariam o descontentamento causado pela imprecisão inerente aos métodos de distribuição da cobrança, o elevado custo das medidas para evitá-la e os desequilíbrios financeiros causados pela demora na arrecadação e pelos efeitos da inflação. Além disso, as autoridades municipais teriam a tendência de aplicar o instrumento nos lugares onde a capacidade de pagamento dos munícipes prenuncia menos protestos, o que contribuiria para acentuar a segregação sócio-espacial. De fato, a experiência da Contribuição de Valorização colombiana exclui as áreas pobres da cidade, a não ser quando deliberadamente utilizada em projetos de renovação urbana como forma de desalojar antigos ocupantes, como no caso da Avenida de los Cerros, em Bogotá, no começo da década de 1970. (Jaramillo, 2001).

Na década de 1990, quando a necessidade de execução de um ambicioso plano de obras públicas coincide com o mais baixo nível de arrecadação da história da CV, o governo de Bogotá decide lançar mão de uma contribuição de caráter não pontual: a Valorización por Beneficio General, a ser cobrada de todos os imóveis da cidade, porém com critérios que combinavam a valorização esperada com a capacidade de pagamento do proprietário. No período 1993-98, a arrecadação desse tributo atingiu em Bogotá 89% daquela da época áurea da CV, o qüinqüênio 1964-68. Este sistema, que sofreu contestações jurídicas por assemelhar-se à duplicação do imposto sobre a propriedade, obteve, no entanto, um acentuado grau de aceitação social, possivelmente devido à relação sensível entre contribuição e resultados.

Mais recentemente, o sistema colombiano evoluiu para a criação da Participación en Plusvalías, instrumento complementar à Contribución de Valorización, aplicável a situações em que esta última não opera convenientemente. A PPV, regulamentada em lei nacional em 1997, desvincula o valor cobrado do montante do investimento estatal, aplicando-se tanto em situações em que a valorização não resulta diretamente de investimentos, como é o caso das alterações na legislação urbanística de uso e ocupação do solo, como naquelas em que a valorização ultrapassa em muito a cota-parte da propriedade no custo de uma obra pública. O tributo representa de 30 a 50 por cento da valorização, a critério das autoridades municipais, com isenções previstas para os terrenos destinados a habitação popular. Os pagamentos devem acontecer quando da realização da valorização, via operações de compra e venda, licenças de urbanização e construção e mudanças de uso do solo.

Na atualidade, começa a ser desenvolvida em Bogotá uma modalidade de CV conjunta para um conjunto de obras (Plan de Obras de Bogotá), numerosas e grandes, que serão desenhadas e construídas entre 2006 e 2017, em quatro triênios. As obras incluem: i) vias; ii) intercâmbios viários em desnível (viadutos ou subterrâneos); iii) passarelas de pedestres; iv) calçadas; e v) parques. Além de critérios como o tamanho do lote, a distância à obra e o uso do imóvel (cobranças maiores para imóveis comerciais), é também considerado o estrato sócio-econômico (1 ao 6) em que o imóvel está classificado. Estão isentos os lotes de menor estrato, quando o tamanho do lote é inferior a uma área determinada. Este Plan de Obras tem custo estabelecido em cerca de US$ 950 milhões. Aproxima-se ao que em termos práticos seria uma Contribución por Beneficio General, mas neste caso a cobrança é calculada obra por obra, sendo que eventualmente, quando há justaposição de áreas beneficiadas, a cobrança pode ser feita em conjunto para determinados imóveis.

Mecanismos alternativos e aplicações ad hoc
Dentre os mecanismos derivados da CM com aplicação em diversos países estão os programas de pavimentação comunitária, que repartem os custos das obras públicas pela comunidade beneficiada, com a anuência da comunidade. Esta se dá mediante abaixo-assinado ou termo de compromisso e o pagamento é realizado em parcelas no decorrer da obra, podendo estender-se por um prazo mais longo quando a comunidade é carente de recursos. Geralmente aplicados em bairros pobres, tais programas têm sido reconhecidos como relativamente exitosos em países como Chile, Colômbia, Peru e Brasil. Seu sucesso pode ser parcialmente debitado ao fato de que o mecanismo viabiliza a realização de obras que dificilmente seriam executadas de outra forma. Os beneficiados entendem a cobrança dos custos como uma oportunidade, não um encargo.

Um caso clássico de aplicação da CM ao financiamento de grandes obras é o Fondo permanente para la ampliación de la red de subterráneos de Buenos Aires. Criado em 1987, o fundo prevê aportes de diversos tributos especiais, incluindo uma Contribución de Mejoras especialmente desenhada para áreas consideradas de influência direta dos projetos (Clichevsky, 2001).

Exemplo típico de aplicação ad hoc da CM no interesse da promoção imobiliária é o de El Hatillo, município na região metropolitana de Caracas com graves problemas de acesso viário. Pressionados pelo indeferimento de novos empreendimentos na área, os promotores firmaram convênio com a prefeitura responsabilizando-se pelo financiamento da malha viária correspondente ao acréscimo populacional. O rateio do custo das obras foi imputado, na forma de CM, às novas unidades habitacionais. (Camacho e Tarhan, 2001)

A experiência brasileira
No Brasil, a primeira manifestação do uso da contribuição de melhoria foi, talvez, a Taxa de Pavimentação criada em São Paulo nos anos 1920, regida pelo princípio de que os beneficiários de uma obra pública teriam de pagar pelos seus custos.

Em 1934, a contribuição de melhoria aparece pela primeira vez na Constituição, com base na valorização gerada por obras públicas, desaparecendo em seguida na Constituição de 1937. Retorna de modo permanente na Constituição de 1946, tendo sido reafirmada na Constituição de 1988.

Apesar de sua pouca relevância histórica no Brasil, e de sua ausência marcante nas regiões metropolitanas, a CM é eventualmente aplicada em cidades pequenas e médias, com resultados ainda não devidamente apreciados em seu conjunto. Um dos poucos casos divulgados é o de Guarujá, município turístico do litoral paulista que vem lançando mão da Contribuição de Melhoria para ampliar a rede de ruas pavimentadas. Os procedimentos utilizados incluem a publicação de edital contendo o memorial descritivo do projeto, o orçamento da obra, a parcela do custo a ser financiada pela CM, a delimitação da zona beneficiada e o fator da absorção do benefício para a zona e suas diversas seções. Os carnês são emitidos após a entregas das obras e o valor da CM não pode exceder a valorização do imóvel. Para tal, realizam-se pesquisas imobiliárias antes e depois da execução das obras. (Caldas e Silva, 2000).

Em alguns municípios vem sendo implementado instrumento similar, denominado Plano Comunitário de Melhoria, espécie de contrato firmado entre a prefeitura, os munícipes interessados, a empreiteira responsável pela obra e o banco financiador, nos moldes da pavimentação comunitária citada mais acima, porém extensivo à implantação de redes, sobretudo de águas pluviais e de iluminação pública.

Uma importante experiência recente foi o Programa Paraná Urbano, financiado com recursos do BID, nos anos 1990. O Programa era gerido pela PARANACIDADE, entidade ligada Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado do Paraná, compreendendo uma abrangente lista de obras públicas em todas as sub-regiões do Estado. O fraco aporte inicial de recursos, que colocava em risco a continuidade do programa, levou a duas medidas: a inclusão de uma cláusula prevendo a obrigação da recuperação de custos mediante a aplicação da Contribuição de Melhoria, e a realização de um detalhado exame de desempenho do sistema de arrecadação e correspondentes correções (Goelzer e Saad, 1999).  Embora o volume de recursos tenha aumentado significativamente após as mudanças administrativas e institucionais, os resultados em termos proporcionais não foram relevantes, levando a pensar que somente a primeira medida teve impacto real. A recuperação de custos permaneceu no patamar de cerca de 50% das contribuições emitidas. O caso oferece uma clara evidência de que a mera obrigatoriedade da aplicação do instrumento não traz necessariamente resultados efetivos, havendo variadas maneiras de contorná-la.    

Em suma, trata-se de um instrumento já tradicional do ponto de vista legal, porém ainda pouco conhecido sob o aspecto normativo e em relação aos trâmites e procedimentos a serem desenvolvidos para uma adequada operação. Apesar de fortemente rejeitado, sua validade constitucional foi reafirmada através de sua inclusão explícita no Estatuto da Cidade.



Capítulo 3
Bases para o Uso de Instrumentos de Recuperação de Mais-Valias Fundiárias no Financiamento de Infra-Estrutura Urbana no Brasil

3.1 Quantificação do Déficit Atual de Infraestrutura Básica no Brasil e Algumas Bases ára Abordá-lo [7] 

O déficit acumulado de infra-estrutura básica no Brasil é hoje estimado em cerca de doze milhões de unidades domiciliares, dos quais 60% são moradias precárias e informais de famílias com renda de até três salários mínimos[8]. Somente nas regiões metropolitanas (RMs), este déficit atinge quatro milhões de habitações. A essa carência soma-se o déficit habitacional acumulado. A Caixa Econômica Federal estimou que seriam necessários investimentos anuais da ordem de U$ 4 bilhões, ao longo de 10 anos, para eliminar o déficit habitacional brasileiro (construção, recuperação e melhoria de unidades residenciais existentes, e atendimento da demanda decorrente do crescimento demográfico)[9].

Em termos percentuais, quase um terço (32,09%) dos domicílios urbanos permanentes é carente de um ou mais itens da infra-estrutura básica (energia elétrica, água, esgoto e coleta de lixo). No caso das favelas, a essa proporção é ainda maior, chegando a perto de 42%.[10]

Tomando apenas as 15 maiores RMs do país (vide tabela), temos nessa situação cerca de dois milhões de domicílios permanentes atingidos na faixa de rendimentos de até 3 salários mínimos regionais (s.m.), setecentos e cinqüenta mil domicílios na faixa entre 3 e 5 s.m. e novecentos mil domicílios na faixa acima de 5 s.m.

Em termos absolutos, o total de unidades domiciliares incluídas no critério de carência de infra-estrutura urbana básica guarda uma certa proporção com a magnitude das RMs em população, sendo as metrópoles mais atingidas respectivamente as do Rio de Janeiro (líder tanto no total absoluto como na faixa de rendimentos de até 3s.m., São Paulo, Recife e Fortaleza).

Na faixa de até 3s.m., as 6 RMs do Nordeste lideram a participação percentual de famílias sem acesso a itens da infra-estrutura básica, todas com acima de sessenta por cento das famílias atingidas situadas nesta faixa de rendimentos (Salvador – 68,63%, Grande São Luis – 68,19%, Fortaleza – 65,22%, Natal – 64,43%, Maceió – 64,24% e Recife – 61,86%). A situação se inverte na faixa acima de 5s.m., atingindo mais fortemente as metrópoles mais ricas, como São Paulo(32,70%), Curitiba (31,51%) e PortoAlegre(30,47%).



  

A recuperação de mais-valias fundiárias oriundas da eventual provisão de infra-estrutura urbana nas áreas de assentamento incompleto é uma óbvia candidata ao financiamento dessa provisão. Duas seriam as formas básicas de implementá-la: através da aplicação da Contribuição de Melhoria, instrumento legalmente previsto para a recuperação de custos dos investimentos públicos associados a valorização imóvel, e através da efetiva cobrança do Imposto Territorial e Predial Urbano, o IPTU, aos imóveis beneficiados.

Essas formas básicas são aplicáveis, ao menos em teoria, à totalidade das áreas urbanas no país, para as quais o déficit atinge as seguintes quantidades por faixa de renda:




Embora sejam flagrantemente desconhecidos alguns dados básicos para uma estimativa dos recursos necessários para fazer frente a esse déficit, e mais ainda o  potencial de recuperação de recursos através dos mecanismos citados, estimamos, a título de exercício, a ordem de grandeza desses recursos, a partir dos totais domiciliares atingidos por faixas de renda apresentados acima.

Em primeiro lugar, com relação à recuperação de custos, consideramos um montante de recursos necessário da ordem de US$2,500.00 por domicílio[11], para chegar a um montante de recursos necessário, para os quase 12 milhões de domicílios atingidos, da ordem de US$ 30 bilhões. 

Também consideramos a necessidade de aplicar faixas de recuperação distintas para os domicílios incluídos nas distintas faixas de rendimentos, tentando superar uma das maiores dificuldades reconhecidas na Contribuição de Melhoria, a ausência de um critério claro de capacidade de pagamento dos contribuintes. Utilizando os percentuais médios de recuperação de 20% para a faixa de até 3s.m., 40% na faixa de 3 a 5s.m. e 80% para os domicílios na faixa acima de 5s.m., chegamos aos seguintes valores:



Grosso modo, o potencial recuperável através da aplicação dessas alíquotas progressivas de recuperação seria da ordem de 37%, restando 63% dos recursos a serem financiados através de outra fontes.

A efetiva aplicação do IPTU teria também um papel importante a cumprir. Embora não se possa fazer nenhuma relação imediata entre os domicílios carentes de infra-estrutura básica e os que não pagam IPTU (não inscritos nos cadastros municipais), podemos pensar em um montante de contribuição através do IPTU, seja pela inclusão de domicílios no universo de cobrança[12] ou por uma eventual atualização cadastral dos imóveis já incluídos.

Assumindo a premissa da existência de forte correlação entre os rendimentos domiciliares e o valor das propriedades, e aplicando valores médios de IPTU de respectivamente US$ 30, US$ 50 e US$ 80 anuais de contribuição[13] para cada uma das três faixas consideradas, chegamos a um valor da ordem de US$ 534 milhões de potencial anual de arrecadação.

Essas estimativas, apesar de altamente superficiais, são úteis para dar uma medida do problema em mãos. Fica claro, assim, que essa imensa carência dificilmente poderá ser resolvida através da simples recuperação de mais-valias fundiárias dos imóveis atingidos. Ademais, há que se reconhecer que essa é apenas uma parte do problema, que envolve, certamente, uma alteração profunda nos processos de urbanização que originam esses assentamentos incompletos, e que sem uma política fundiária incisiva, só tendem a ampliar o volume de domicílios carentes de infra-estrutura urbana básica.

Para que a recuperação de mais-valias fundiárias possa assumir um papel decisivo no financiamento de infra-estrutura urbana, portanto, é necessário articular uma série de modalidades de distribuição e redistribuição das rendas fundiárias originadas na dinâmica urbana, envolvendo a mobilização, a recuperação e a gestão dos recursos provindos da valorização da terra no processo de urbanização.


3.2 Elementos de Análise das Modalidades de Recuperação de Mais-Valias Fundiárias na experiência Latino-Americana

Esta seção se debruça sobre as modalidades de distribuição e redistribuição de rendas fundiárias, a partir dos dados da experiência latino-americana. Sem a pretensão de uma classificação exaustiva, busca-se analisar as principais modalidades, ou formatos, de gestão da valorização da terra urbana em termos de sua mecânica administrativa, potencial financeiro e condições de eficácia, segundo os seguintes critérios:

-          o evento em que a mais-valia fundiária se manifesta e é apropriada; 
-   o tipo de caixa, ou trâmite administrativo, ao qual o recurso correspondente está associado;
-         a sua aplicação.

De acordo com estes critérios, propomos abaixo oito formatos básicos de gestão de valorização da terra urbana.

Formato de gestão (1) - IPTU



  • Formato mais geral. Ênfase na execução de obras públicas com recursos do orçamento geral e/ou capital de empréstimo. Embora não concebido nem gerido como instrumento de recuperação de mais-valias fundiárias, o Imposto Predial e Territorial Urbano contém, explícita ou implicitamente, uma parcela  correspondente à valorização do solo. Recolhido ao Orçamento Geral, o IPTU tem sua aplicação balizada pelo princípio constitucional da não-vinculação de recursos. Nada impede, por outro lado, que para fins de desenho de política urbana o município destine o equivalente a uma parcela do IPTU (por exemplo, aquela que corresponda à tributação da propriedade do solo nos bairros de mais alta renda, e/ou aquela que resulte da cobrança do próprio IPTU em comunidades beneficiadas por programas de urbanização e regularização) a programas de urbanização social.

Formato de gestão (2) – Solo Criado





  • Forma de recuperação sistêmica de mais-valias fundiárias geradas nas regiões mais valorizadas, ou naquelas com maior potencial de valorização. Hoje prevista no Estatuto da Cidade e disponível para os Planos Diretores de todas as grandes cidades brasileiras na forma da Outorga Onerosa do Direito de Construir. Complementa gastos em políticas de longo prazo de urbanização social em grandes cidades. Os recursos são recolhidos ao Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano, de aplicação vinculada a projetos de urbanização social. Trata-se da única modalidade explicitamente vinculada a uma transferência sócio-espacial de rendas fundiárias.

Outra forma clássica de recuperação mais-valias fundiárias como contrapartida ao exercício de direitos urbanísticos é a imposição, estabelecida na lei federal de parcelamento do solo, da transferência ao município e concessionárias públicas de arruamentos, lotes destinados a equipamentos públicos, áreas verdes e redes de infra-estrutura básica. No âmbito das Áreas de Especial Interesse Social, também previstas no Estatuto da Cidade, o manejo e/ou a flexibilização deste instituto pode ser extremamente eficaz para o desenho de programas e projetos de regularização de loteamentos e, sobretudo, de oferta de lotes urbanizados.

As legislações urbanísticas locais prevêem muitas outras formas de contrapartida aos direitos de construir, ditadas ora pela tradição local, ora pela existência de planos especiais, como é o caso, por exemplo, de obrigações de construção e doação de escolas e outros equipamentos públicos e transferência de servidões de recuo para alargamento de vias. De caráter específico e não monetário, essas contrapartidas não são relevantes ao financiamento de grandes projetos de infra-estrutura urbana.


Formato de gestão (3) – Contribuição de Melhoria




  • Ênfase na internalização (parcial) dos benefícios do projeto. Usada para complementar recursos do orçamento na execução de obras emergenciais que resultem em valorização fundiária. Os recursos são destinados unicamente ao ressarcimento dos custos das obras. Mais eficaz em projetos intra-urbanos e periféricos em cidades pequenas e médias, com poucos recursos fiscais e menor nível de desigualdade social.

Outros mecanismos similares, como a pavimentação participativa ou contribuições a melhoramentos públicos, são por vezes acionados pelos municípios, de modo a escapar às regras rígidas desse tributo e suas normas federais. 


Formato de gestão (4) – Contribuição por Benefício Geral




  • Ênfase na internalização (parcial) sistemática dos benefícios dos projetos urbanos. Recupera parte dos gastos com a execução de um conjunto pré-determinado de obras públicas intra-urbanas. O caso mais conhecido de utilização deste formato é o de Bogotá, Colômbia. Os custos são distribuídos de forma progressiva, de acordo com a classificação do imóvel segundo estratos de valor.

Nas grandes cidades, parte dos recursos poderia estar destinada ao Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano, ou mesmo ao Orçamento Geral. Seu recolhimento poderia, por razões de eficiência econômica, estar ligado à gestão do próprio IPTU, via atualização da planta de valores com foco nas obras de infra-estrutura e melhorias urbanas.


Formato de gestão (5) – Revenda Pública de Lotes Valorizados




  • Ênfase no projeto, com internalização dos benefícios fundiários. Para melhor eficácia e controle, a gestão do solo deve integrar o desenho gerencial do projeto. Indicado para todo projeto que necessita desapropriações. A localização central de infra-estruturas e equipamentos como metrôs e avenidas comerciais potencia a recuperação de mais-valias fundiárias mediante a revenda dos lotes valorizados pela implantação do sistema, podendo ser combinada com contribuições sobre a valorização e impostos sobre a propriedade, assim como mediante mudança de legislação para densificação do entorno. Em loteamentos periféricos de baixa-renda, o benefício resultante da desapropriação com base em valores de solo rural ou não-urbanizado pode ser usado como amortização de custos do Orçamento ou do Fundo de Desenvolvimento Urbano, ou usado como subsídio às famílias.


Formato de gestão (6) – Operação Urbana



  • Ênfase na captura in loco de economias resultantes de maior e/ou melhor aproveitamento, via Transferência de Potencial Construtivo e Operações Urbanas Consorciadas, ambos previstos no Estatuto da Cidade. Eficaz na execução de projetos e planos urbanísticos locais, mediante a aquisição de imóveis para fins de preservação e tutela ou áreas verdes, o redesenho de vias, a instalação de novos equipamentos públicos, infra-estruturas, etc. Os direitos de construir podem ser comercializados através da emissão de papéis. 

Uma aplicação potencialmente eficaz da Transferência de Potencial Construtivo em regiões onde existe mercado imobiliário é a venda do potencial construtivo dos terrenos desapropriados pela municipalidade para a realização de obras ou instalação de serviços públicos à escala local, ou seja, administrável pelo gestor urbanístico local (escolas, parques, melhoramentos na rede viária, etc). A consagração da Transferência de Potencial Construtivo no Estatuto da Cidade sugere que os planos urbanísticos locais devem prever regras para o instrumento, tais como a definição de áreas de destino de potencial construtivo oriundo de terrenos sujeitos à desapropriação para funções públicas.

No caso da aprovação de Operações Urbanas Consorciadas, o Estatuto da Cidade faculta a previsão da emissão de Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs) pelo município, o qual definirá uma quantidade determinada de CEPACs, a serem alienados em leilões públicos ou utilizados diretamente para o pagamento das obras necessárias à própria operação urbanística. Os CEPACs, regulamentados em 2003 pelo Colegiado da CVM (Comissão de Valores Mobiliários), são títulos negociados livremente no mercado, sendo os recursos depositados em conta vinculada à operação correspondente, na Caixa Econômica Federal. A Operação pode ser dividida em setores, para os quais é elaborada uma tabela de equivalência de metros quadrados adicionais de construção ou relativos a modificações de usos e parâmetros urbanísticos. Exemplos de negociação de CEPACs encontram-se no desenvolvimento das Operações Urbanas Faria Lima e Água Espraiada, ambas na Cidade de São Paulo.


Formato de gestão (7) – Grandes Projetos Urbanos



  • Ênfase na otimização do uso de terras públicas, ou do subsídio em projetos de habitação popular. Participação pública nas rendas e/ou lucros oriundos do projeto. O caso da concessão onerosa, mediante leilão público, de terrenos à beira do Lago Paranoá em Brasília para a exploração privada como áreas de lazer e turismo ilustra a utilização da modalidade.  Formato comum a grandes projetos urbanos, tanto de revitalização de centros urbanos, com a utilização de terrenos disponíveis, como de urbanização social.


Formato de gestão (8) – Consórcio Imobiliário Urbano



  • Ênfase na viabilização de projetos em áreas em que a urbanização seja de interesse público. Presente no Estatuto da Cidade através do instrumento do Consórcio Imobiliário, associado a áreas de parcelamento ou utilização compulsórias, o formato pode estender-se a qualquer situação em que seja recomendada a utilização de terrenos e não exista a capacidade financeira por parte do(s) proprietário(s) para desenvolver o projeto. Pode envolver o re-parcelamento de áreas. Após a remuneração ao(s) proprietário(s) através de unidades imobiliárias de valor correspondente ao valor do imóvel antes do início das obras, as rendas obtidas podem ser utilizadas para o financiamento dos gastos públicos realizados, e em parte reverter a outros fins internos ao projeto (áreas verdes, equipamentos públicos, lotes urbanizados subsidiados) ou mesmo podem ser transferidas ao Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano ou outro destino pré-definido pela municipalidade.

Considerações adicionais
Em uma primeira classificação, os formatos acima podem ser agrupados segundo os tipos ou parcelas de mais-valias fundiárias enfocadas e os modos utilizados para a sua mobilização, gestão ou recuperação. Teríamos então os seguintes grupos:

  • Formatos 1 (IPTU) e 2 (Solo Criado) – Históricos / Sistêmicos
  • Formatos 3 (CM) e 4 (CBG) – Atuais / Pontuais
  • Formatos 5 (GOP) e 6 (OUC) – Projetuais / Futuros
  • Formatos 7 (GPU) e 8 (CIU) – Estratégicos / Antecipados
Os formatos básicos acima muitas vezes aparecem associados na prática, seja porque boa parte dos recursos do orçamento são aplicados em “projetos”, seja porque quase todo projeto auto-financiado por mais-valias fundiárias só o é em parte, recorrendo a diversas formas de financiamento e subsídio cobertos pelo orçamento.

Esses formatos básicos de mobilização e aplicação de mais-valias fundiárias oferecem uma espécie de gradiente quanto ao cumprimento de objetivos específicos em termos de políticas públicas: vários formatos estão associados à internalização das mais-valias fundiárias nos próprios projetos, o que favorece a obtenção de efeitos locais e de curto-médio prazo, mas tendem à manutenção do status quo em termos de distribuição de renda; ao passo que sua aplicação via orçamento favorece a transferência sócio-espacial da renda, que, no entanto, só pode se manifestar no longo prazo e é muito mais difícil de controlar.

Vale observar também que esses modelos só são “comutáveis” até certo ponto. O ingresso das apropriações diretas para projeto no orçamento só é factível (e indispensável) do ponto de vista contábil. Por outro, lado, recursos apropriados no âmbito de um projeto que caiam no orçamento geral tendem a receber outras destinações. Nisso reside a diferença ao mesmo tempo sutil e abismal entre o IPTU e a Contribuição de Melhoria. Recursos que ingressam diretamente no FMDU têm destinações vinculadas a programas sociais, mas nunca a tal ou qual gasto ou projeto. 

As modalidades sistêmicas de captura como o IPTU e a Outorga Onerosa do Direito de Construir dizem respeito a mais-valias históricas. Modalidades como a Contribuição de Melhoria e a Revenda de Lotes atuam sobre as mais-valias fundiárias atuais (recuperação a curto-prazo) e futuras (antecipação). A recuperação de rendas com finalidades imediatas tende a ser mais eficaz, porque de mais fácil contabilização e controle. O problema é que ela não incide sobre a distribuição espacial dos benefícios da urbanização, a menos que combinada com medidas compensatórias e includentes aplicadas “in loco”.

Políticas de recuperação de mais-valias fundiárias com finalidades de regulação urbanística, como a Outorga Onerosa do Direito de Construir, hão de ter pouca relevância do ponto de vista da arrecadação. Essa é a principal fragilidade dos Fundos Municipais de Desenvolvimento Urbano como fonte de recursos para a urbanização social. Somente uma combinação de formas de recuperação de mais-valias fundiárias poderá dar a tais Fundos uma dimensão compatível com seu objetivo.

Cabe ainda a pergunta se seria eficaz a monetarização de todas as modalidades de mais-valias fundiárias recuperadas pelas municipalidades e seu recolhimento ao Orçamento Geral ou a um fundo único. A resposta provável é negativa, uma vez que a eficácia de aplicação é muitas vezes inseparável do processo através do qual ela é capturada. Mais-valias fundiárias recuperadas em situações locais podem não ser relevantes para o orçamento municipal, mas ser eficazmente convertidas em bens públicos locais. 


Capítulo 4

Questões Acerca do Mercado de Terras Urbanas no Brasil


4.1  Características Essenciais

O papel da terra e da propriedade imobiliária
O contexto no qual o tema da recuperação de mais-valias fundiárias está compreendido, na América Latina, tem como elemento preponderante o papel da propriedade na formação e no desenvolvimento sócio-econômico e cultural das sociedades da região. A defesa reiterada do direito de propriedade, cuja origem remete ao caráter patrimonialista histórico das classes hegemônicas, ultrapassa, no entanto, os limites das classes mais abastadas, estendendo-se a todos os setores sociais, e permanece em geral com poucas alterações substantivas.

Uma das formas de abordar a importância do direito de propriedade na região é a partir do reconhecimento de sua consolidação legal e institucional. Embora o amadurecimento do processo de urbanização tenha tendido a impulsionar alterações no papel da propriedade imobiliária urbana, como no caso das novas constituições promulgadas no Brasil (1988) e na Colômbia (1991), essa tendência pode ser contra-arrestada pelos princípios do neoliberalismo, com forte penetração em diversos países da região. Em alguns países, inclusive, isto pode vir a se consolidar em modificações constitucionais ou nos Códigos Civis, com a ampliação das garantias à propriedade privada, como ocorreu no Chile em 1980, na Argentina em 1994 e no Peru em 1995 (Smolka e Furtado, 2001).

Para uma compreensão mais ampla dessa permanência, ou do significado da propriedade para o conjunto da sociedade, é conveniente situá-la em ambientes históricos marcadamente instáveis, seja no campo econômico como no sócio-político. Esse contexto é bastante familiar ao caso latino-americano, e nele a propriedade imóvel funciona como esteio para diferentes grupos sociais.

De fato, a terra, base material da propriedade imóvel, é a melhor, senão a única, alternativa amplamente reconhecida na região como capaz de resistir às fortes turbulências econômicas, e a fatores perturbadores como a inflação. A fragilidade dos mercados de capitais na região é flagrante e sujeita às incertezas da política econômica. Além disso, sendo garantida como princípio da ordem econômico-social, a propriedade imóvel é também considerada como relativamente imune a oscilações de ordem política. Ademais, é a única que pode oferecer a qualquer indivíduo uma segurança que compense a ausência de suficientes garantias de seguridade social. Assim, tanto a forma de “investimento” como de poupança preferidos pelas famílias na região ainda é a propriedade imóvel.

Mas, além das qualidades da terra em relação à sua estabilidade como bem econômico, as possibilidades de valorização desse bem, como conseqüência do processo de urbanização, são também amplamente disseminadas, sendo esperada e desejada por todos.  E por estar perfeitamente absorvido culturalmente, o acesso de cada proprietário à valorização de seu imóvel é compreendido de modo geral como uma extensão do direito de propriedade, em lugar de ser motivo de censura ou entendido como ganho imerecido. Mais que isso, o proprietário urbano em geral se sente no “direito” [14] à valorização de sua propriedade, impondo a responsabilidade desse processo ao poder público. Ou seja, ele usualmente tem a expectativa de que a valorização ocorra e, se ela não ocorre, é comum imputar à má administração pública da cidade o seu prejuízo. Neste contexto, as mais-valias fundiárias são tidas como uma conseqüência “natural” da propriedade, e da mesma forma é entendida a apropriação privada dessas rendas urbanas.

Fica claro, então, pelo entendimento existente sobre o “direito” à valorização imóvel, que o argumento ético que genericamente sustentaria a implementação de instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias, de que cada um deve ser recompensado apenas pelo seu próprio esforço (Brown e Smolka, 1997), longe de estar consolidado na América Latina, parece carecer de maior sentido ou reconhecimento social na região.

Tributação à propriedade
Na vasta e já tradicional literatura sobre sistemas de tributação à propriedade imobiliária nos países em desenvolvimento em geral e na América Latina em particular[15], é amplo o consenso de que os impostos sobre a propriedade – e em especial o imposto predial, referência básica nesses estudos - são muito baixos. A arrecadação com esse tributo, quando comparada com a experiência dos países desenvolvidos, sobretudo aquela do continente norte-americano, é considerada baixa em vários sentidos. Em primeiro lugar, ao nível municipal, pela proporção do imposto predial na arrecadação com tributos locais. Em segundo lugar, à escala nacional, como porcentagem do PIB. E em terceiro lugar, com relação às baixas alíquotas aplicadas. [16] 

Sob uma perspectiva adicional, o imposto predial é considerado baixo em relação ao rápido processo de urbanização da região, na medida em que se podia esperar que o crescimento urbano fosse acompanhado por uma ampliação da arrecadação com esses impostos.

Além de uma reduzida base de arrecadação, decorrente, sobretudo, do baixo valor cadastral das propriedades, os sistemas de arrecadação do imposto predial operam com baixos níveis de eficácia na região, registrando-se altos percentuais de inadimplência e evasão. Por fim, o elevado custo político imputado ao imposto sobre a propriedade urbana acaba por se sobrepor às suas vantagens econômicas, a tal ponto que as autoridades locais responsáveis pela arrecadação muitas vezes não demonstram interesse em aprimorá-la, optando pelo endividamento ou contando com as transferências inter-governamentais.

A inclusão, nos estatutos legais ou nos preceitos constitucionais da maioria dos países latino-americanos, da manutenção de um nível básico de bem-estar para o conjunto da população, que se traduz na obrigação pública da provisão de serviços locais, torna ainda mais difícil implementar a tributação de forma adequada. Pelo lado da população, não há o reconhecimento de uma relação entre os gastos públicos com o ambiente construído urbano e o sistema impositivo imobiliário. Dada a tradicional expectativa da responsabilidade do governo nacional pelos itens da urbanização, é frágil o compromisso público com a ação governamental local. A debilidade coercitiva do poder público amplia as margens de sonegação ou facilita o adiamento do pagamento dos impostos. Tais práticas, por parte dos contribuintes, são facilitadas pelas baixas multas aplicadas, e pela recorrência de políticas de anistia fiscal que ocorrem sobretudo em épocas eleitorais.

A contra-face dessa fragilidade na cobrança de impostos imobiliários é a famosa especulação fundiária, sobretudo na forma da retenção de terrenos vazios à espera da infra-estrutura pública gratuita e correspondente valorização.

Uma importante parcela dos recursos locais nos países latino-americanos provém de transferências dos governos regionais, estaduais e nacionais que, se por um lado têm um sentido distributivo, por outro acabam por tornar as administrações locais altamente dependentes desses recursos. Como resultado mais geral, a arrecadação local na América Latina raramente foi suficiente para cobrir os gastos correntes da administração, e menos ainda o custo das infra-estruturas urbanas, sejam elas básicas ou de suporte ao desenvolvimento. Como mostrou Guarda (1989), a provisão de serviços públicos foi sistematicamente financiada através de outras fontes.

Na década de oitenta, a combinação de um quadro geral de recessão das economias nacionais com os esforços de descentralização experimentados em todo o continente impulsionou, na maioria dos países latino-americano, iniciativas de reforma do sistema de administração e cobrança do imposto predial. Entretanto, a concentração dessas reformas do imposto sobre a propriedade em uma combinação de atividades legais e administrativas, não levou em geral a resultados importantes ou sustentáveis. [17]

Em paralelo a essas iniciativas, toma corpo uma linha de estudos voltados para a viabilização da Contribuição de Melhoria como fonte de recursos para o financiamento de infra-estrutura urbana local nos países latino-americanos, tendo como base a existência do instrumento ou de procedimentos similares na legislação da maioria dos países, e seu desenho relativamente uniforme. Sendo o argumento ético de pouca penetração na região, a existência e implementação desses tributos específicos é sustentado pelo argumento da sua racionalidade econômica.

Na avaliação de Macon e Mañon (1977), “o fato de que o pagamento da contribuição esteja vinculado a um benefício real e visível aproxima esse sistema a uma forma de financiamento da economia de mercado, normalmente não obstruída pelas mesmas desvantagens, como a resistência política, dos impostos.” (p.111). Doebele (1977) também recomendou a sua utilização: “Essas contribuições têm como objetivo tornar auto-financiável a provisão de serviços urbanos nas cidades dos países em desenvolvimento, reduzindo a carga do sistema geral municipal de tributação. Diminuindo esses constrangimentos financeiros, a contribuição de melhoria tem o potencial, nessas cidades, de facilitar a provisão de infra-estrutura urbana em quantidade e ritmo comensuráveis com seu rápido crescimento.” (p.2)

Apesar dessas recomendações e dos esforços empreendidos, não se verifica, nos anos seguintes, a implementação do instrumento de modo mais geral, sendo as experiências registradas em geral episódicas e localizadas (Smolka e Furtado, 2001). Na realidade latino-americana, continua a preponderar a avaliação de que as administrações locais têm uma reduzida arrecadação própria e, com isso, uma débil autonomia financeira e conseqüentemente política. Assim, é comum os orçamentos municipais apresentarem um déficit sistemático, sendo os serviços municipais financiados parcialmente através do endividamento e contando com a provisão de boa parte dos serviços básicos por parte dos governos centrais (Clichevsky et al., 1990).

A ausência da esperada racionalidade econômica é então entendida como uma anomalia da situação latino-americana, formalizada com a seguinte questão: “Por que é tão difícil financiar infra-estrutura pública que incrementa o valor da terra servida em muito mais que o custo da infra-estrutura em si?” (Shoup, 1994, p.236).

Escassez relativa de terra servida
A crônica insuficiência de recursos públicos para responder de forma adequada ao rápido crescimento urbano deve ser, no entanto, relativizada. Ao considerar o conjunto urbano das cidades observa-se que essa dificuldade, ainda que generalizada, não impede totalmente a provisão de infra-estrutura, e que a provisão parcial que ocorre ao longo do tempo não é direcionada de forma randômica na cidade. 

Não é preciso um estudo aprofundado para perceber que, nas grandes cidades latino-americanas, certas áreas possuem uma infra-estrutura pública urbana considerável, em muitos casos comparáveis a qualquer capital de país desenvolvido. Basta olhar um cartão postal de uma dessas cidades latino-americanas, que certamente estará retratando o que ela tem “de melhor”. Nessas áreas, não parece ter havido dificuldades impeditivas para financiar a infra-estrutura pública.

Essa evidência permite qualificar o argumento de que “a dificuldade de financiar a infra-estrutura pública urbana impede sua provisão” (Shoup, 1994). Essa dificuldade se manifesta, na verdade, através da “síndrome do cobertor curto”, em que as mesmas áreas das cidades são reiteradamente beneficiadas, enquanto outras permanecem relegadas a sua própria sorte. Ademais, nada garante que se o crédito para investimentos em infra-estrutura fosse farto, ele seria canalizado para a provisão nas áreas desfavorecidas.

Não sendo aleatória, a provisão atinge na maioria das vezes as mesmas áreas cumulativamente, ou visa à expansão dessas áreas das cidades. Como demonstram variados estudos em cidades latino-americanas desde os anos oitenta[18], as áreas beneficiadas são prioritariamente as que satisfazem majoritariamente as premissas da existência de mercados formais organizados, propriedades legalmente definidas, a concentração espacial de poder econômico e político, a população de mais alta renda e os mais altos valores da terra urbana.  Por contraste, as áreas que não possuem infra-estrutura básica concentram os mercados informais de terras, os loteamentos irregulares e os assentamentos informais, a população de baixa-renda, as áreas não cadastradas, as áreas de propriedade ambígua, etc.

A questão da valorização oriunda de investimentos em infra-estrutura, na realidade latino-americana, passa necessariamente pelo reconhecimento de que as desigualdades sócio-espaciais existentes nessas cidades dão às áreas urbanas um caráter dicotômico. Núcleo e periferia, ricos e pobres, formal e informal, legal e ilegal, zona nobre e zona proletária, arranha-céus e casebres, são diferentes imagens usadas para caracterizar essa dicotomia.

As áreas com carência de infra-estrutura são exatamente aquelas onde predominam as populações de menor rendimento e os assentamentos informais, sujeitas a uma série de condicionantes para a aplicação de instrumentos tributários; por isso, qualquer proposta de como provê-las de infra-estrutura urbana deve minimamente reconhecer as dificuldades existentes, nas diversas formas concretas em que a ocupação dessas áreas se expressa, tanto espacialmente como socialmente. 

4.2 Problemas da Auto-Sustentabilidade na Provisão de Infra-Estrutura Básica

Esta seção tem como principal objetivo alinhar argumentos que questionam a idéia da utilização da Contribuição de Melhoria de forma geral e igual para comunidades ricas formais e assentamentos pobres informais.

Uma das razões apontadas por especialistas para a rejeição da aplicação da Contribuição de Melhoria é a sua cobrança quando o projeto é executado, enquanto a valorização em geral só é realizada pelo proprietário no momento da venda da propriedade. Assim, a valorização potencial criada pela execução do projeto não ofereceria ao proprietário a liquidez necessária para o pagamento da contribuição. Este problema pode ser estendido a todas as situações em que o valor do imóvel não esteja em consonância com o rendimento anual do seu proprietário. Em síntese, estaríamos diante da questão conhecida como a da “pobre viúva”, em que o rendimento do proprietário não é compatível com a sua riqueza em bens imóveis.

O problema da liquidez atinge sobretudo os proprietários de menores rendimentos e aqueles que não têm uma renda previsível e confiável, na medida em que, nesses casos, nem mesmo o mecanismo clássico de financiamento dessas obras, através da emissão de títulos pelo poder público e o parcelamento da dívida a mais longo prazo, se apresentaria como uma solução viável.

A solução imediata para o problema técnico da ausência de liquidez dos proprietários beneficiados seria o diferimento do pagamento das contribuições, acrescido dos juros correntes acumulados, para o momento da venda dessas propriedades, como advogado por Shoup (1994). Entretanto, Smolka (1997) adverte para a inadequação da solução apresentada para o caso dos assentamentos informais. De fato, ao considerar que o que falta para que as populações que vivem nessas áreas carentes tenham acesso aos investimentos em infra-estrutura de que tanto necessitam é um financiamento adequado, propõe-se uma forma de financiamento ao qual essas populações, sem as credenciais necessárias, não terão acesso. [19]

Outro problema reconhecido como entorpecedor do uso do instrumento é a transferência da obrigatoriedade de sua utilização, em caso de valorização, para a própria obra pública ao qual está vinculado, cuja pertinência ou conveniência não é em geral consultada aos beneficiados. As tentativas de fomentar a sua implementação através da inserção de mecanismos de adesão ou consulta prévia aos beneficiados oferecem evidências desse entendimento. Seus resultados, entretanto, não são exatamente os esperados, uma vez que em geral são as comunidades mais bem-dotadas de infra-estrutura e serviços as que sistematicamente rejeitam o uso da contribuição de melhoria, enquanto as comunidades carentes anseiam por receber os benefícios da urbanização.[20]

Há que se reconhecer que ainda que os supostos beneficiários estejam em posição de aceitar ou rejeitar determinada obra, permanece indefinida a forma de seleção das comunidades a serem priorizadas, e os projetos urbanos seguem concentrados nas áreas mais bem dotadas.  Ocorre que há nesse argumento uma inversão. Na verdade, esse tributo tem em sua essência o financiamento de uma obra de interesse da coletividade, e não somente das comunidades atendidas, sendo estas as que devem pagar pelos custos da obra em razão do benefício especial recebido. 

Se pudéssemos vislumbrar em qualquer dos países da América Latina uma contribuição de melhoria de tal modo que toda a população de baixa-renda fosse incluída nos projetos financiados através da utilização deste instrumento, com a garantia de mecanismos de proteção para que só pagassem na medida de sua liquidez e quando efetivamente tivessem recebido “benefícios especiais”, ou seja, benefícios com os quais a população de maior renda não tenha sido contemplada (na maioria das vezes, gratuitamente), com certeza muitas dos problemas encontrados no uso do instrumento não aconteceriam, porém permaneceria a questão de como financiar a infra-estrutura nessas áreas. 

O argumento da equidade “inter-generacional”, que nas cidades norte-americanas impulsiona a cobrança de exações aos novos empreendimentos periféricos de alta-renda (Altshuler e Gómez Ibáñez, 1993), assume nas cidades da América Latina a conotação inversa: na urbanização latino-americana, os mais ricos não tiveram que pagar por essa provisão, de maneira que se torna questionável impor essa carga aos mais pobres.

Historicamente, predominou a opção pela (lenta) distribuição de infra-estrutura pública, de forma subsidiada pelo Estado, e com a posterior cobrança de taxas pela prestação dos serviços correspondentes pelas concessionárias de serviços públicos. Tendo sido essa a forma tradicional de atuação do Estado na provisão de infra-estrutura para o conjunto da cidade, essa provisão subsidiada, em geral gratuita, sempre beneficiou a população de maior renda instalada nas áreas centrais.

Outro elemento a ser considerado, na opção pela utilização de um instrumento que objetiva a recuperação de custos, seja para as novas áreas formais como para as áreas informais existentes, é o de que de modo geral é maior o custo relativo, quando não o absoluto, de prover de infra-estrutura básica as áreas já ocupadas. Assim, as populações que ocupam esses assentamentos podem terminar pagando mais do que as demais pelo mesmo benefício. Ora, é preciso lembrar que aqueles que se dirigem a essas áreas, seja em processos de invasão ou pela forma mais generalizada na América Latina que é a da aquisição no mercado informal de um lote produzido sem atender às normas urbanísticas, o fazem porque não podem ascender ao mercado formal, seja pela ausência de acesso ao crédito como pela insuficiência de rendimentos.

À parte o já descrito papel da propriedade em geral como um mecanismo tradicional de apropriação de mais-valias, e que é extensivo, no caso dos mais pobres, a qualquer moradia com uma certa segurança da posse e, até, em última instância, a simplesmente um teto, a habitação pode ter um papel importante na complementação de uma renda familiar mínima, seja mediante o aluguel de uma parte a terceiros, ou através de construção adicional para acomodar famílias ampliadas, mecanismos que podem ocorrer de maneira mais permanente ou podem ser acionados em momentos de necessidade, como já bem ilustrado em diversos estudos sobre o tema. Poderia ser argumentado que esse seria um motivo adicional para que essas famílias comprometessem parte de seus rendimentos para pagar pela infra-estrutura urbana, mas ocorre que se a provisão está vinculada à regularização dessas moradias, como é o caso muitas vezes, esses mecanismos informais de complementação de renda podem se tornar mais difíceis de viabilizar.[21]

Desta forma, embora não paguem necessariamente menos do que poderia custar um lote formal com infra-estrutura básica[22], o fato é que a infra-estrutura básica não entra como componente direto do preço de aquisição desses lotes. Nessa realidade, há que se considerar que a solução do uso da contribuição de melhoria como instrumento para permitir a instalação de infra-estrutura pública nessas áreas, ainda que diferida para o momento da venda, restringe a captura do benefício pelas famílias correspondentes. Essas famílias, sem essa capitalização no caso em que vendam suas moradias, poderão não ter os meios necessários para adquirir um lote no mercado formal em outro lugar. Como conseqüência, o instrumento pode tornar-se um mecanismo de reprodução da informalidade, além de impor restrições à mobilidade residencial (Smolka, 1997).

Por outro lado, é preciso salientar que o argumento fácil da isenção dessas populações, como forma de tornar a contribuição de melhoria redistributiva, não só não resolve o problema em mãos, como colabora para a sua permanência e até intensificação.



Capítulo 5
Regularização de Assentamentos Informais, Produção de Terra Urbanizada e Recuperação de Custos


5.1 A Experiência Brasileira Recente

Já é considerável a experiência brasileira de urbanização de assentamentos informais, produto de uma profunda inflexão na política habitacional brasileira operada no início da década de 1980, quando o Estado reconhece a favela como solução habitacional legítima ao alcance dos pobres. Poucos avanços, no entanto, se têm registrado na luta contra a persistente reprodução da moradia precária e informal[23] e contra o permanente aumento de populações sem acesso à terra urbanizada, e as dificuldades são recorrentes nos programas de titularidade e na questão da recuperação de custos.

A evolução recente dos assentamentos informais
De 1940 a 1970, a formação de favelas nas grandes cidades resulta de intensos fluxos migratórios campo-cidade. Entre 1960 e 1980, porém, o auge da política de remoções para conjuntos habitacionais das periferias urbanas determina um decréscimo absoluto da população residente em favelas. A partir década de 1980, reduz-se sensivelmente a migração externa e aumenta proporcionalmente a migração interna causada pela pobreza urbana, o desemprego crônico e a precariedade das relações de trabalho. No Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, a população residente em favelas passa a crescer a taxas superiores à população municipal.

A urbanização de assentamentos informais passou a predominar nas políticas públicas como resultado das lutas sociais que culminaram na Constituição de 1988. A política de remoções forçadas é substituída pelo reconhecimento do direito do favelado a permanecer em sua posse e conservar o capital investido na auto-construção de suas casas. Independentemente de suas conseqüências de longo prazo sobre os preços da terra urbana (perpetuação do ciclo da pobreza), a política de urbanização de assentamentos precários e informais resulta de uma vitória das populações excluídas sobre a política de remoções (Faria, 2004). Diante da constatação de que a casa auto-construída sai pela metade do preço da casa oferecida pelo governo, o Estado passa a adotar a estratégia, supostamente mais barata, de deixar ocupar para depois regularizar, sem atender no entanto às causas da irregularidade. No processo, o Estado se retira totalmente da provisão da habitação popular.

Uma das conseqüências mais visíveis dessa mudança é a consolidação das favelas nas últimas décadas do século XX, muitas com casas de alvenaria providas de água corrente, instalação sanitária domiciliar e energia elétrica. As favelas existentes se expandem, se adensam e até se verticalizam. Com a segurança da posse, consolida-se o mercado informal nas favelas mais antigas e aquece-se o mercado imobiliário nas mais distantes do centro. A transformação do estoque de moradias precárias em permanentes torna-se fator de atração para segmentos de renda média que desejam adquirir casa própria mas não têm acesso ao mercado formal. O acesso às favelas passa a se dar exclusivamente por meio da compra ou aluguel. Elevam-se substancialmente os preços cobrados no mercado informal das favelas (Abramo, 2003).

Por outro lado, dá-se o surgimento das pequenas favelas periféricas resultantes de invasões organizadas: assentamentos de extrema pobreza, com renda per capita de meio salário mínimo (Faria, 2004). Acelera-se também a auto-construção em loteamentos populares[24] e dissemina-se a ocupação de logradouros públicos. Numa palavra, estratificam-se a própria pobreza e o mercado informal. Surge a diferenciação entre favelado e morador da periferia. O surgimento do loteador clandestino leva ao virtual desaparecimento, na década de 1990, da aquisição informal da terra a custo zero.

Observações sobre os programas de urbanização e regularização
Um recente estudo de avaliação da experiência brasileira de urbanização de favelas e regularização fundiária realizado pelo IBAM (Larangeira, 2004) em dez cidades apurou a seguinte matriz de fontes de financiamento:

  • 38,9% recursos próprios, incluídos os Fundos Municipais de Habitação
  • 6,3% repasses do OGU, incluídos recursos do programa Habitar Brasil-BID
  • 5,4% empréstimos do FGTS e FAT
  • 46,8% empréstimos externos, aí incluídos os empréstimos do BID para o Rio de Janeiro
  • 1,2% repasses de agências bilaterais e multilaterais

Levando-se em conta que os recursos destinados pelo governo federal somam no máximo 6,3% do total de recursos mobilizados, e considerando por outro lado que os 46,8% de recursos externos incluem o empréstimo do BID ao município do Rio de Janeiro, esses dados parecem indicar que o déficit habitacional e de infra-estrutura no Brasil é hoje um assunto quase exclusivamente da alçada municipal. Do total de recursos, 54,1% são empréstimos externos e nada menos que 85,7% estão a cargo dos orçamentos municipais – exercício fiscal, fundos e débitos externos.

Se isto significa, por um lado, que o país está longe de assumir plena responsabilidade por suas condições de desenvolvimento econômico e social, por outro mostra também que os municípios devem redobrar seus esforços para tornar mais eficazes e equânimes tanto os seus sistemas de arrecadação quanto as suas estratégias de gastos em urbanização social.

Longe de questionar os resultados práticos positivos alcançados pelas políticas eminentemente corretivas aplicadas nos últimos anos – urbanização de favelas e regularização de loteamentos, cabe, no entanto, reconhecer que a prioridade que lhes tem sido conferida no âmbito das políticas públicas não contribui para impedir, e nem mesmo frear, a reprodução do círculo vicioso da moradia precária e da pobreza. Quanto maior a expectativa de urbanização e regularização de assentamentos informais, maior a pressão exercida pela população pobre sobre o estoque de terras públicas e privadas sujeitas a invasão e, sobretudo, maior o preço cobrado pelos loteadores pela terra sem infra-estrutura nos loteamentos periféricos (Iracheta e Smolka, 2000).

Dentre as principais conclusões do citado estudo sobre a experiência recente de regularização de loteamentos e urbanização de favelas, destacamos:

  • a pouca consideração dada, no desenho dos programas pesquisados, ao tema da recuperação de custos, problema agravado pela divisão entre a gestão dos programas e de seus respectivos recursos;
  • a não recuperação de custos de instalação de redes de abastecimento de água e esgotamento sanitário executadas pelos municípios, que as transferem gratuitamente às concessionárias;
  • a pouca expressividade dos resultados alcançados e a pouca valorização atribuída pelas famílias à regularização fundiária;
  • a prática comum de flexibilização da legislação urbanística por meio da delimitação de Áreas de Especial Interesse Social.

Apesar da enorme complexidade do problema, evidenciada por décadas de estudos sistemáticos e experiências práticas pioneiras, é imperioso admitir que a população de menor renda continua sendo empurrada para as ocupações informais e ilegais antes de tudo por seus baixos rendimentos, insuficientes para aceder ao mercado formal de moradia e terra infra-estruturada. Na virada no século, a precarização das relações de trabalho vem se somar aos graves problemas gerados pelo aumento da pobreza urbana e pela produção cronicamente insuficiente de habitações de interesse social e, principalmente, de terra servida.
O problema crítico da oferta insuficiente de terra servida tem sido pouco ou nada enfocado tanto pelo mercado formal brasileiro – refugiado na “zona de conforto” que lhe proporciona o amplo atendimento da demanda dos pobres pelo mercado ilegal – quanto pelos governos, que por alegadas razões de custo, mas também de pragmatismo administrativo, vêm dando nítida prioridade a programas de regularização de loteamentos irregulares e, principalmente, de urbanização de favelas.

A produção de lotes urbanizados no Brasil [25]: um tema ainda pendente
O mercado de terras das cidades brasileiras não oferece alternativas para o segmento da população de baixa-renda. O PROFILURB - Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados – criado em 1975 pelo extinto Banco Nacional da Habitação, destinava-se ao atendimento das famílias mais pobres. O programa consistia das seguintes fases:

(1) Urbanização da área, preparo dos lotes, construção das unidades sanitárias e ligações domiciliares; entrega dos lotes aos moradores;
(2) ocupação do lote pelas famílias; construção de moradia provisória no fundo do lote;
(3) construção da moradia definitiva, com financiamento complementar para aquisição de material de construção via FICAM [26]
(4) mudança da família para a nova moradia; demolição da habitação provisória.

Apesar de sua aparente simplicidade, dificuldades de naturezas diversas limitaram os resultados do programa. Mesmo com o aumento significativo do número de contratos a partir de uma reformulação realizada em 1978, os resultados do programa podem ser considerados pouco expressivos em termos tanto do déficit habitacional como do impacto sobre o preço da terra urbana.



Em 1980, o Banco Mundial assinou com o BNH o primeiro contrato para apoiar a produção habitacional para as famílias de baixa-renda. Entre outros itens, o contrato previa financiar 41.800 lotes urbanizados, 19.500 unidades habitacionais do tipo ‘embrião’ e concluídas, além de 23.200 cartas de crédito para compra de materiais de construção. Na época, estimou-se que 91% das famílias beneficiárias do programa teriam renda abaixo de três salários mínimos regionais. Mas os resultados obtidos foram inexpressivos: apenas metade de produção de lotes urbanizados e cerca de 10% dos financiamentos de material de construção previstos através do FICAM.





A partir da década de 80, a urbanização de favelas e a regularização de loteamentos irregulares passam a ocupar o centro da política habitacional brasileira. Em 1985, é extinto o Banco Nacional da Habitação. Os programas de financiamento habitacional com recursos do FGTS hoje disponíveis na esfera federal não têm privilegiado a produção de lotes urbanizados. O programa Carta de Crédito Associativo é o único que prevê a sua produção, com crédito unitário limitado a R$ 8.000,00. Não há informações sobre a concessão de financiamento para esta modalidade. Dados da Caixa Econômica Federal revelam que somente cerca de 1% dos financiamentos do Programa Carta de Crédito Individual foram direcionados para a aquisição de lotes urbanizados em 2002. Isso significa que pouco menos de dois mil lotes foram adquiridos em todo o Brasil, naquele ano, com recursos do FGTS.



Recuperação de custos em programas de urbanização social
Tradicionalmente, o tema da recuperação de custos diz respeito, fundamentalmente, à relação entre o Estado, que arca com os custos dos programas de infra-estrutura básica, e a população beneficiária.  A privatização dos serviços públicos trouxe a esta relação um terceiro elemento ainda pouco ou nada considerado no que respeita à cobertura de custos dos programas.

No Brasil, somente em alguns casos, em especial na região Sul, o retorno dos investimentos em programas de urbanização é previsto, independentemente da fonte de recursos (Cherkezian, 2004). Em geral, os investimentos em infra-estrutura básica não são recuperados, quer pela via das contribuições de melhoria, quer pela via dos impostos sobre a propriedade. Predomina, na maioria dos círculos técnicos, a idéia de que “em programas sociais como o de urbanização de favelas, não se deve ter preocupação com o retorno dos investimentos”. A maioria dos empreendimentos é projetada sem previsão de retorno, ainda que parcial, dos recursos, oriundos principalmente do Orçamento Geral da União. Ao contrário dos programas da Caixa Econômica Federal, os programas do Habitar-Brasil/BID, pelo menos até o momento, não prevêem retorno dos investimentos.

Um estudo comparativo das legislações de incentivo à produção privada de lotes urbanizados em três cidades brasileiras (Joinville, SC, Rio de Janeiro, RJ e Porto Alegre, RS) e uma colombiana (Bogotá)[27] (Veríssimo, 2004) revela que a recuperação de custos está em geral prevista, nesse tipo de projeto, na forma de lotes urbanizados ou de contrapartida pré-acordada. Entretanto, a implementação dos programas correspondentes ainda encontra-se aquém do necessário para a disseminação dessa idéia.




Finalmente, a recuperação de custos não se faz nem mesmo pela via usual da cobrança do IPTU nos assentamentos beneficiados por programas de urbanização. Relatos de especialistas em regularização de loteamentos indicam que esta política resultaria contraditória com a aspiração dos adquirentes dos terrenos ao reconhecimento pleno de sua cidadania. No caso das favelas, as alegadas razões de eficiência para a não cobrança contribuem para alimentar a opção dos proprietários ocupantes pela permanência no mercado informal, acarretando prováveis perdas muito superiores a longo prazo. É de se supor também que as alegadas razões de eficiência contenham um forte componente político-eleitoral.

As concessionárias e a recuperação dos custos das infra-estruturas
Na maioria das cidades, a responsabilidade do investimento em infra-estrutura é parcial ou integralmente assumida pelos órgãos gestores dos programas, que repassam às concessionárias as redes instaladas (Larangeira, 2004). Com base nas informações prestadas à sua pesquisa, Cherkezian (2004) deduz a crença de que “a recuperação dos investimentos em redes de infra-estrutura deve se dar, automaticamente, por meio das tarifas a serem cobradas pelas concessionárias”.

Parece haver aqui uma confusão entre recuperação do investimento público em infra-estrutura básica e receita da prestação de serviços básicos. Em geral, as concessionárias recebem por doação o capital fixo representado pelas redes instaladas e se apropriam integralmente dos resultados financeiros da operação dos serviços (Larangeira,2004).

Esta concepção parece indicar a permanência de uma cultura administrativa anterior à reestruturação produtiva dos anos 1990, quando se supunha que a doação de infra-estruturas a empresas estatais equivalia a uma doação ao próprio Estado. Esse pressuposto está implícito na Lei 6766, de 1979, que impõe ao parcelador do solo a obrigação de prover os loteamentos de espaços públicos e infra-estrutura básica a ser transferida ao patrimônio público.  No entanto, as concessionárias atuais ou deixaram de ser estatais via privatização ou são obrigadas pelo ambiente econômico a adotar métodos gerenciais voltados para o desempenho comercialmente eficiente. Em ambos os casos, o repasse sem ônus da infra-estrutura constitui, em princípio, uma transferência líquida de recursos públicos ao capital privado.

Em resumo, nos projetos governamentais a infra-estrutura é provida gratuitamente tanto à população diretamente beneficiária, que no caso dos loteamentos da periferia provavelmente já pagou pelo seu custo ao loteador irregular, quanto às concessionárias dos serviços, que cobram tarifas pelo uso de instalações que nada lhe custaram.

Em geral, as concessionárias não se mostram flexíveis nem interessadas em estender seus serviços às comunidades faveladas e, via de regra, não se empenham em manter controles financeiros específicos sobre os serviços conectados aos domicílios localizados em favelas (Larangeira, 2004).

Algumas notáveis exceções permitem, no entanto, supor que é perfeitamente possível a plena integração das concessionárias ao esforço de redução e/ou recuperação de custos em urbanização de assentamentos informais. Em Goiânia e Porto Alegre as concessionárias desenvolvem os projetos, executam e financiam as obras e serviços (Cherkezian, 2004). Algumas, como a Companhia Estadual de Saneamento – COPASA – de Minas Gerais e a Light, concessionária de energia elétrica da União, hoje privatizada, no Rio de Janeiro, mantêm programas especificamente desenhados para o atendimento de comunidades informais.

Além de manter um Departamento de Coordenação de Favelas, a Light desenvolve há mais de duas décadas o Programa de Eletrificação de Favelas, que reduziu substancialmente as perdas por ligações clandestinas e ampliou a 90% a taxa de domicílios conectados na década de 1980, na perspectiva da universalização dos serviços (Larangeira, 2004).

Regularização fundiária
O estudo do IBAM avalia que os resultados alcançados em termos de regularização fundiária nas dez cidades pesquisadas são modestos, destacando-se Belo Horizonte e Teresina. No Rio de Janeiro, apenas 10 por cento dos assentamentos incluídos na primeira etapa do programa Favela-Bairro lograram completar os processos de emissão de títulos de propriedade.

O estudo destaca o pouco interesse na titulação por parte das populações beneficiadas com programas urbanização. Mantém-se, em geral, a preferência pela informalidade. Muitas famílias beneficiadas pela titulação optam pela venda dos imóveis. Chama a atenção, por outro lado, o caso de Goiânia, que através de uma rígida fiscalização impede que as famílias beneficiadas transfiram a propriedade dos imóveis beneficiados. Na maioria das respostas ao questionário de Cherkezian (2004), a Regularização Fundiária, que notadamente constitui a ação mais difícil de ser executada nesse tipo de programa, está sempre prevista como etapa final do empreendimento. Como o tempo médio de duração dos mesmos é de 60 meses, a etapa de regularização não tem sido em geral atingida. 

Grande parte dos assentamentos ocupa terrenos públicos municipais (em Porto Alegre, 70%, em Goiânia 56%, em Vitória 55%). Por um lado, administrações adotaram esta condição como critério de elegibilidade para acesso aos programas; por outro, trata-se de estratégia dos invasores devido ao menor risco de remoção e maior probabilidade de obtenção de serviços e a regularização da posse. Predomina a concessão do direito real de uso. Alternativas são o aforamento (Belém, Teresina e Salvador) e, conforme a situação, a concessão de títulos individuais ou coletivos.

5.2 Questões e Oportunidades

Mais valias para o financiamento de infra-estrutura em assentamentos informais: duas questões de fundo...
A evidência empírica de que a valorização da terra gerada por fatores como infra-estrutura básica e titulação tende a ser maior do que o custo dessa mesma infra-estrutura, apontada no estudo Urban Land Markets and Urban Land Development: An Examination of Three Brazilian Cities: Brasilia, Curitiba and Recife (Serra et al, 2004), contribui para ampliar o renovado interesse pelo tema da recuperação de mais-valias fundiárias para o financiamento de infra-estruturas urbanas em países pressionados por altos níveis de endividamento externo e interno.



Essa hipótese suscita, de imediato, duas questões de fundo envolvendo os segmentos público e privado da economia, cuja resposta é crítica para o desenvolvimento de políticas bem-sucedidas de financiamento de infra-estruturas com recursos da mais-valia fundiária.

Do ponto de vista das finanças públicas – para não dizer do governo democrático – a pergunta que se coloca é: até que ponto é válida a racionalidade da “produtividade urbana”, segundo a qual os escassos recursos do governo urbano devem ser prioritariamente investidos nas áreas centrais, onde o retorno direto e indireto é mais alto? Por que não inverter, ou pelo menos alterar substancialmente, nesse caso, a matriz espacial da aplicação dos recursos fiscais?
A segunda questão diz respeito ao setor privado: se servir a terra aumenta tanto o seu valor, por que é tão difícil encontrar agentes privados no mercado formal que tenham interesse em investir no mercado de terra para baixa-renda? Porque esse mercado não é considerado lucrativo apesar dos substanciais aumentos de preços fundiários proporcionados? Seriam suficientes as alegações de que as dificuldades jurídicas, a falta de regras claras, o alto custo das licenças de aprovação e a falta de informação impõem custos proibitivos aos empreendedores legais? Ou será que a insegurança inerente às precárias condições de vida e trabalho do público-alvo impõem a este sub-mercado riscos específicos que o tornam desinteressante aos olhos dos promotores formais?

Em relação à participação do segmento privado, cabe também perguntar: na medida em que os serviços essenciais como água, eletricidade, telefone e transporte público são na verdade fornecidos com base em taxas aplicadas aos usuários, o que é preciso fazer para que os fornecedores de serviços públicos – hoje privatizados em larga em escala no Brasil, se associem ao capital privado em projetos de infra-estruturação do solo para as populações mais pobres?

... e uma hipótese alternativa
As questões suscitadas pela generalização da idéia de que a valorização causada pela provisão de infra-estrutura básica escassa seria sempre maior que o custo daquela provisão podem ser em parte resolvidas pela hipótese alternativa em que se qualifica a que custos se está referindo.  De fato, é consenso que o custo da provisão de infra-estrutura básica é muito maior quando esta provisão é feita a posteriori, ou seja, em processos de regularização urbanística de assentamentos informais. Estima-se que os custos nesse caso são muito superiores, da ordem de até três vezes o que seriam os custos originais. Qualificado desta forma, nada garante que a valorização seja suficiente para cobrir esses custos de intervenções curativas, muito embora a mesma valorização fosse mais que suficiente para o auto-financiamento da infra-estrutura, se realizada no momento da implantação do assentamento ou loteamento.

A forma mais simples de verificar a validade da “hipótese da auto-sustentabilidade dos programas de urbanização de assentamentos precários e informais” seria a pesquisa empírica de preços antes e depois da execução dos projetos. Infelizmente, mesmo em programas de grande porte financiados com recursos externos, como o Favela-Bairro, não se encontra tal item de avaliação.

Ao contrário do que dita a teoria, na prática a hipótese da valorização maior que o custo da infra-estrutura não é tida pelos técnicos consultados, especialistas com anos de experiência em projetos similares, como provável nos assentamentos irregulares periféricos de baixa-renda, e é vista como apenas possível em programas de urbanização de favelas consolidadas[28].

A média de custo apurado da urbanização de favelas no Rio de Janeiro é da ordem de 4,0 a 5,5 mil dólares por unidade, considerando todos os componentes de infra-estrutura e equipamentos urbanos, exceto titulação [29]. Observe-se que essa ordem de custo equivale, grosso modo, ao padrão adotado pela Caixa Econômica Federal para custo da unidade habitacional básica em programas destinados à população de baixa- renda (Habitar-Brasil), o que lança dúvidas sobre o argumento do menor custo em defesa da prioridade para a urbanização de favelas, em relação à produção de novos lotes. No caso da regularização de loteamentos periféricos, o custo médio apurado é da ordem de 2,2 mil dólares por lote, incluída a titulação.

A valorização apurada em favelas beneficiadas com programas de infra-estrutura básica e urbanização chega a atingir a casa dos 90% (Abramo, 2003). Ou seja, o valor mínimo de venda de um imóvel em favelas consolidadas beneficiadas pelo programa Favela-Bairro para satisfazer a hipótese da valorização igual ao investimento seria da ordem de 10 mil dólares, estimativa que parece confirmar a opinião predominante nos meios técnicos, acima mencionada.

Entretanto, há que se reconhecer que apesar de sensivelmente mais caros, os investimentos em urbanização de favelas consolidadas parecem produzir efeitos sinérgicos com as economias de localização pré-existentes. O processo de verticalização das favelas é a prova cabal de uma certa “maturidade” do mercado de imóveis irregulares nesses assentamentos[30].

A tendência de valorização dos imóveis nas favelas consolidadas é explicada por fatores como: (a) acesso imediato a benefícios da urbanização como proximidade dos locais de oferta de trabalho, comércio e transporte público abundantes, às vezes até mesmo metrô; (b) relações de vizinhança e redes de solidariedade consolidadas; (c) aumento substancial da procura de moradia por parte de segmentos da classe média-baixa que, por redução de renda, encarecimento mais que proporcional dos imóveis formais ou emprego precário e/ou informal, são obrigados a recorrer ao mercado informal de moradia [31].

Nos loteamentos periféricos atuais, mesmo regulares, parece ocorrer o fenômeno inverso. Conforme Furtado e Oliveira (2002),

“...há indícios de que a ocupação desses loteamentos, em vez de valorizar os lotes que ficam vazios, na verdade desvaloriza-os em relação aos valores praticados na ocasião do lançamento, pois enquanto o que se vende é a idéia de um bairro esteticamente agradável e organizado, o que se observa, com o decorrer da ocupação, é um assentamento de lenta consolidação, com a maioria das construções ainda inacabadas, sendo às vezes difícil distinguir visualmente, com o passar dos anos, um loteamento legal de um ilegal. (..) A compra de lotes e sua manutenção sem uso, com a expectativa de uma valorização futura, uma prática antes arraigada, parece começar a perder sua força nessas áreas, embora, segundo o loteador, ainda exista: ‘quem compra lote para revender é ‘biruta’, não vai conseguir, a não ser em casos excepcionais. Mas há quem faça, temos esse caso todos os dias, o sujeito compra para tentar valorizar mas não consegue, perde dinheiro’. [Otávio Araújo, sócio-proprietário da ECIA, maior empresa urbanizadora da Zona Oeste do Rio de Janeiro]”(p.50)

Esse efeito sugere que a ocorrência de uma valorização substancial de imóveis populares por efeito da execução de infra-estrutura e urbanização pressupõe a existência de um mercado razoavelmente desenvolvido, vale dizer, de uma “massa crítica” de riqueza imobiliária, ainda que regulada por meios informais. A dispersão e o grau de pobreza intrínsecos aos loteamentos informais periféricos podem representar ausência de economias de aglomeração (urbanização somada a localização) necessárias e suficientes para que o investimento público resulte em uma dinâmica imobiliária geradora de valorização fundiária efetiva e consistente.

Tal hipótese traz consigo duas conseqüências importantes para a política de recuperação de custos em regularização de loteamentos periféricos: (1) a valorização seria proporcional à escala e ao grau de concentração geográfica e centralidade urbana com que fossem planejados os programas de oferta de terra servida e regularização de loteamentos na periferia; (2) a recuperação de custos baseada, de alguma forma, no adiantamento da valorização dos imóveis (por exemplo, via uma contribuição de melhoria integral) poderia impedir a formação de um estoque de capital imobiliário familiar mínimo capaz de gerar mercado e, portanto, a própria valorização.

Operación Urbanística Nuevo Usme: [32] um novo modelo de produção de lotes urbanizados, baseado na gestão pública da terra.
Como alternativa às políticas clássicas de subsídio direto à demanda e acesso ao crédito imobiliário, de um lado, e a tolerância à informalidade, seguida de eventuais programas corretivos, a Operação Nuevo Usme, em Bogotá, Colômbia, apresenta-se como uma terceira alternativa, cuja elaboração e montagem pode servir de exemplo a outras iniciativas para a América Latina.

O projeto da Operação propõe a aplicação integrada de instrumentos de gestão do solo previstos na legislação colombiana, dentre os quais se destacam o controle dos preços da terra e a redistribuição da valorização do solo, para permitir às camadas mais pobres o acesso à terra urbanizada.

As premissas básicas do modelo Nuevo Usme são:
           
  • Os subsídios diretos à demanda não são a melhor alternativa porque elevam os preços do solo e facilitam a transferência de recursos para os proprietários da terra.
  • O manejo da valorização proporcionada pelo investimento público e pela atribuição de direitos urbanísticos específicos são alternativas viáveis à desapropriação ou aquisição de terras para fins coletivos e sociais.
  • O aumento da escala de planejamento e gestão facilita a distribuição equitativa de custos e benefícios.
  • A oferta de terra urbanizada evita futuras regularizações a preços mais elevados.

As áreas de intervenção são objeto de Planos Parciais, instrumento normativo obrigatório e complementar aos planos de ordenamento territorial para fins de atuação urbanística especial e macro-projetos. Os Planos Parciais substituem a urbanização lote a lote e facilitam também a execução dos projetos de urbanização por etapas.

A legislação colombiana em vigor determina que o valor comercial da terra para fins de aquisição pelo poder público não poderá incluir a valorização gerada pelo Plano Parcial. O princípio da distribuição equitativa dos custos e benefícios da urbanização é aplicado mediante o re-parcelamento do solo privado e o rateio e a redistribuição proporcional dos custos de infra-estrutura e direitos de urbanização entre os proprietários envolvidos, com clara inspiração no modelo espanhol.

A recuperação de custos do investimento público em infra-estrutura e urbanização é obtida na forma de terra urbanizada, a preços compatíveis com a produção de habitação popular. Além disso, o município pode recuperar de 30 a 50% do incremento de valor do solo resultante da mudança de classificação da terra de rural para urbana e pela autorização para usos e aproveitamentos mais rentáveis. Direitos de construção podem também ser atribuídos diretamente aos beneficiários dos programas de habitação popular para baixa-renda (Veríssimo, 2004)



As principais orientações da Operação são:
·         Controle dos preços da terra: são produzidas avaliações de referência pelo Departamento de Cadastro Imobiliário, tendo em conta a normativa urbanística vigente ANTES do anúncio do projeto.
·         Aproveitamentos urbanísticos prévios: se reconhece o mesmo preço a toda a terra incluída na área de re-parcelamento, seja ela destinada à proteção ambiental, espaço público, equipamentos ou a loteamentos para futura construção.
·         Recuperação parcial da valorização da terra decorrente do desenvolvimento do projeto: os custos da infra-estrutura projetada e o solo necessário para sua implantação são pagos através da outorga onerosa de direitos construtivos em áreas previamente definidas no projeto.
·         Controle da urbanização ilegal: são identificados todos os proprietários envolvidos no perímetro do projeto; o desenvolvimento do projeto é acompanhado de monitoramento permanente dos terrenos; o recurso da desapropriação administrativa é acionado quando necessário.

Em termos específicos, a Operação envolve 936 hectares de área bruta, sendo o projeto dividido em quatro Planos Parciais de cerca de 200 ha. O valor médio dos terrenos existentes, segundo a avaliação de referência realizada, é da ordem de $ 4.400 pesos colombianos por metro quadrado, cerca de U$ 1.70 (2003).

A urbanização segundo a normativa vigente permitiria a utilização líquida de cerca de 601 ha, ou 64% da área bruta disponível. O projeto desenvolvido para a área contempla 17% da terra para a malha viária arterial e intermediária, 10% para equipamentos públicos, 12% para áreas verdes e de recreação e 17% para áreas de proteção ambiental, destinando 44% de área útil para fracionamento. Destes, são reservados 74.5 ha para habitação de interesse social (VIS) e 176.5 ha para moradia de interesse prioritário (VIP) na forma de lotes urbanizados.

Os cálculos do projeto levam o valor final dos terrenos já urbanizados a cerca de $ 11.841 pesos colombianos por metro quadrado, ou US$ 4.55. 
A título comparativo, calcula-se que se a Operação não se realiza, a tendência é o parcelamento ilegal deste solo de expansão urbana, com a ocupação de cerca de 70% do total da área bruta, algo como 655 ha. As famílias pagariam por essa terra cerca de US$ 20 por metro quadrado (para lotes de aproximadamente 72 m2) e o poder público teria que investir em melhoramentos para esses assentamentos informais cerca de três vezes o montante de investimentos públicos previstos na Operação.

Considerações Finais e Recomendações

Algumas Políticas e Estratégias para o Financiamento de Infra-Estrutura Urbana Básica no Brasil
Premidas pelas responsabilidades advindas da autonomia municipal, bem como pela pressão continuada do déficit de moradia e infra-estrutura básica, e por outro lado pelo acesso limitado às fontes tradicionais de financiamento, as cidades brasileiras se vêem forçadas a trazer de volta ao primeiro plano das políticas públicas a busca de alternativas endógenas, social e economicamente sustentáveis, de cobertura de custos de investimentos em infra-estrutura urbana básica e melhoramentos urbanos.

Uma delas é a recuperação da valorização extraordinária do solo privado – histórica, atual e futura – proporcionada pelos efeitos em geral benéficos da urbanização, apenas parcial e imperfeitamente captados pelo imposto sobre a propriedade imobiliária - o IPTU - que é a sua forma clássica e, presumivelmente, a mais relevante em qualquer cenário previsível.

A explicitação da recuperação da valorização fundiária como dever das administrações municipais no Estatuto da Cidade – expressão da função social da propriedade urbana conforme estabelecida na Constituição de 1988 – não apenas devolve o tema da gestão da valorização da terra ao centro das atenções da política urbana como consagra a sua legitimidade social.

A geração de Planos Diretores Municipais posteriores à Constituição de 1988 generalizou a formação de Fundos Municipais de Desenvolvimento Urbano exclusivamente destinados a programas de urbanização social com recursos oriundos da recuperação de mais-valias fundiárias urbanas, em especial por meio da Outorga Onerosa do Direito de Construir. Esse fato confirma a predominância de uma perspectiva redistributiva no âmbito das políticas nacional e local de gestão da valorização do solo.

É necessário, no entanto, ampliar os horizontes dessa conquista. Sabemos que as grandes metrópoles capturam muito mais rendas fundiárias do que as que recolhem aos Fundos de Desenvolvimento Urbano. Sabemos também que o caráter generalizado e mais ou menos difuso da formação de mais-valias fundiárias a partir dos investimentos públicos e privados – vale dizer, da sociedade – implica uma multiplicidade de modelos pelos quais pode se materializar a sua recuperação – monetária, fundiária, equipamentos e serviços – e posterior aplicação.

Muitos desses modelos constituem práticas antigas e já consolidadas que, por não serem reconhecidas como recuperação de valor, não receberam até hoje tratamento gerencial e contábil adequado. Um inventário analítico de tais práticas seria de grande utilidade para uma avaliação não apenas do potencial financeiro da recuperação de mais-valias fundiárias urbanas, mas também de suas condições de eficácia em diferentes situações, para não dizer de seu controle econômico e social.

Nas grandes cidades, onde é mais crítico o problema da distribuição de rendas e benefícios da urbanização, parece justificar-se plenamente a cobrança da Contribuição de Melhoria (CM), como já tem sido feito direta ou indiretamente nas cidades médias e pequenas, desde que o instrumento seja utilizado de maneira generalizada. Tendo em vista, porém, a eficácia e a eficiência desejadas para o instrumento, é recomendável que ele esteja afeto aos próprios sistemas de IPTU existentes. Apesar de relativamente modernos e sofisticados, os sistemas de gestão do IPTU da maioria das grandes metrópoles brasileiras encontram-se em permanente estado de defasagem cadastral, o que conduz os esforços prioritários de atualização aos bairros onde se espera maior arrecadação. Nessas condições, o princípio da CM poderia ser aplicado em algo como “Zonas Prioritárias de Recadastramento e Avaliação para fins de IPTU” delimitadas como áreas de influência de novas obras públicas. Dentre as vantagens de tal sistema poderíamos enumerar: (1) evitar o impacto negativo da criação de um novo tributo; (2) criar um impacto positivo pela disposição de aperfeiçoar o sistema com a justa distribuição dos ônus e benefícios da urbanização; (3) garantir que a cobrança por obra pública corresponda, em qualquer caso, à efetiva valorização do terreno; (4) permitir que os casos de desvalorização fundiária fossem detectados e apropriados pelo sistema; e (5) inserir um componente especial de avaliação que permita captar eventuais sobrevalorizações decorrentes de obras públicas ou outras ações governamentais.

Finalmente, um tema até aqui pouco estudado no âmbito da valorização da terra urbana é o das rendas públicas diretas obtidas com a cessão de solo público para postos de abastecimento, publicidade estática e em transportes coletivos, redes de serviços não essenciais, exploração do mobiliário urbano etc. Tais receitas, que podem ser creditadas à conta da “valorização extraordinária do solo urbano resultante dos efeitos da urbanização”, poderiam constituir uma fonte suplementar, e também espacialmente redistributiva, de reforço dos Fundos Municipais de Desenvolvimento Urbano para o financiamento de programas de urbanização social.

Recuperação de mais-valias fundiárias urbanas e financiamento de programas para população de baixa-renda
Devido à sua pouca tradição na administração pública brasileira, e conseqüentemente à sua pouca representatividade em termos de volume de recursos, assim como em relação ao tamanho do déficit acumulado de infra-estrutura básica, a recuperação de mais-valias fundiárias tem de ser encarada como fonte complementar de recursos para programas de urbanização e regularização de assentamentos precários e informais.

Por outro lado, a integração das políticas de recuperação de mais-valias fundiárias aos programas de infra-estrutura e urbanização social pode ter um importante papel a desempenhar, tanto do ponto de vista da redistribuição das rendas urbanas quanto do ponto de vista da auto-sustentação dos programas de urbanização, titulação e regularização fundiária e urbanística.

As metrópoles brasileiras já acumulam uma sólida tradição de programas de urbanização de assentamentos precários e informais, para os quais convergem recursos dos Fundos de Desenvolvimento Urbano. Os pontos frágeis dessa relação são justamente a fraca quantidade de recursos aportados pelos Fundos e, por outro lado, a opção política quase generalizada pela não recuperação de custos através da inserção dos assentamentos urbanizados ou regularizados no cadastro do IPTU.

A gravidade dessa fraqueza se expressa com toda clareza no fato de que o programa social mais caro (urbanização de favelas) é aquele que ao mesmo tempo promove a maior valorização imobiliária (caso de algumas favelas consolidadas em regiões centrais) e tem a perspectiva mais distante de recuperação de custos. Embora não sejam interdependentes do ponto de vista jurídico, regularização fundiária e cobrança de IPTU guardam uma relação de interdependência política, razão pela qual o IPTU não é em geral cobrado nas favelas beneficiadas com arruamento, drenagem, infra-estrutura básica e equipamentos urbanos.

O investimento em regularização fundiária nas favelas consolidadas é, provavelmente, aquele com maior potencial de retorno financeiro em curto prazo para a cidade e o país, no âmbito das políticas habitacionais, porque permite a passagem de um imenso estoque de capital imobiliário ao mercado formal, com a correspondente arrecadação de impostos municipais (ainda que com alíquota social) e estaduais, e inserção no PIB.

Urbanização progressiva e contribuição de melhoria: alternativas para redução de custos em programas de moradia social
A concretização da margem de recuperação de custos de investimentos públicos em infra-estrutura urbana nos processos de regularização requer um primeiro corte no universo dos assentamentos informais, qual seja entre favelas e loteamentos, aqui tomados, grosso modo, como originados respectivamente de ocupações não planejadas do ponto de vista espacial e de parcelamentos fisicamente regulares de glebas maiores.

Há também, por certo, muitos casos mistos, grandes parcelas em parte loteadas e em parte ocupadas “espontaneamente”, casos em que se tem de pensar em um sistema também misto de abordagem. Trata-se dos diferentes custos da regularização urbanística, comparando-se o custo da provisão de serviços em um loteamento de formato regular, com vias e limites dos lotes definidos, com o custo de urbanização de uma área de favela, estando estas freqüentemente situadas em áreas pouco adequadas à urbanização, em zonas de risco, com a presença de vielas e escadarias, sem limites definidos de propriedade, etc.

Recuperação de custos em processos de regularização e em novos parcelamentos são também duas coisas diferentes. Enquanto no segundo caso se pode desenhar uma política mais ampla e generalizada, no primeiro caso há que lidar com cada caso em particular, embora algumas regras gerais possam ser estabelecidas.

A utilização da contribuição de melhoria, ou seja, a recuperação dos custos de investimentos públicos datados e localizados, poderia ser também a base de um sistema de implantação de loteamentos de urbanização progressiva. É necessário, porém, que esse sistema seja transparente e genérico, para que o comprador saiba que estará pagando quando da provisão do serviço, mas não deve pagar antecipadamente ao loteador. Esta solução é compatível até mesmo com a idéia (e a ética) de que todos devem pagar, sendo que nos loteamentos superiores se estará pagando diretamente ao loteador, por serviços realizados por ele antecipadamente.  

No caso da implantação de infra-estrutura urbana em parcelamentos informais existentes, a utilização da contribuição de melhoria pode esbarrar na questão inter-generacional (na versão ricos versus pobres, em que os ricos obtiveram a infra-estrutura gratuitamente), sobretudo quando se está falando de redes básicas de água e esgotamento sanitário, sistema viário troncal, etc.

No caso de infra-estrutura local passível de individualização de consumo, como para a provisão de serviços de água, esgotamento sanitário e energia elétrica, os custos podem ser diluídos na cobrança mensal, como aparentemente já costuma ser feito, desde que sejam adequadamente considerados os casos especiais.

No caso de infra-estrutura local não passível de individualização de consumo, como pavimentação ou iluminação pública nas ruas internas, há margem para a cobrança de contribuição de melhoria ou, melhor ainda, de outros instrumentos similares (neste último caso, de modo a manter a CM com uma única forma de utilização, a descrita mais acima), como a pavimentação participativa ou uma cotização para melhoramento público, já que pelo menos nos loteamentos privados formais do último quarto de século esses itens foram usualmente pagos pelos compradores de lotes servidos. Uma questão importante é saber se os compradores de lotes informais sem infra-estrutura não pagaram, ao menos em parte, pela expectativa de provisão de infra-estrutura por parte do setor público, na forma de um sobre-preço imposto pelos loteadores, o que vem sendo evidenciado em várias situações na América Latina (Iracheta e Smolka, 2001). 

Aqui, há que se pensar também na hipótese de que as famílias não tenham fluxo de caixa suficiente para arcar com tais custos. Neste caso, pelo menos em teoria, talvez o instrumento cabível não fosse a contribuição de melhoria diferida, mas o imposto sobre o “lucro” imobiliário – land gain tax - (com base na diferença entre o preço de venda e o preço de compra), uma vez que somente existiria “fato gerador” no caso de apreciação do imóvel. Este instrumento existe na legislação brasileira e está regulamentado, muito embora funcione com uma série de isenções que o desqualificam para os fins aqui propostos, de modo que necessitaria um novo enfoque. O problema desta alternativa é criar mecanismos de controle para não incentivar, com esse mecanismo, a perenização da informalidade ou a prática usual latino-americana da sub-declaração.

Em todos os casos, há que se ter presente que embora a valorização produzida pela provisão de serviços escassos em novos loteamentos seja via de regra superior aos custos de implantação dos serviços, apontando para a auto-sustentabilidade de seu financiamento, o mesmo não ocorrerá necessariamente no caso da regularização posterior e curativa de assentamentos informais, uma vez que o custo dessas intervenções costuma ser muito mais alto que o da urbanização prévia.

Já no caso da regularização fundiária (provisão de títulos / segurança da posse), a valorização percebida parece ser muito menor ou pelo menos mais dependente de situações especiais (inversamente proporcional ao perigo de remoção). Nesses casos, aparentemente o sistema mais recomendado seria o da recuperação de eventual valorização através da cobrança efetiva do imposto predial, a qual deveria ser tornada obrigatória em nível federal, para evitar soluções municipais em direção diversa.

A produção de lotes urbanizados baseada na gestão pública da terra
O acesso das camadas mais pobres ao solo urbanizado pode ser potencializado por meio do desenvolvimento de projetos baseados na gestão estatal das variáveis geradoras da valorização fundiária - como a desapropriação do solo rural a custos compatíveis, o re-parcelamento das glebas com a devida redistribuição da valorização do solo e a atribuição de índices de ocupação e edificabilidade a serem objeto de outorga onerosa – em ações de natureza consorciada envolvendo proprietários fundiários, construtoras e operadoras de serviços públicos.

A aplicação integrada desses instrumentos pode se dar na forma de Consórcios Imobiliários bem como de Operações Urbanas Consorciadas, ambos previstos no Estatuto da Cidade, em Áreas (ou Zonas) de Especial Interesse Social (ZEIS/AEIS), já amplamente utilizadas no Brasil em iniciativas de regularização, e neste caso destinadas, a exemplo dos Planos Parciais colombianos, a servir de suporte legal e de planejamento a operações de transformação urbana. 

A aplicação deste modelo em zonas limítrofes à expansão urbana pode se beneficiar particularmente da desapropriação com base em preços de terra rural. Nesse caso, o diferencial de valor fundiário antes e depois do projeto representa um dos principais aportes ao seu financiamento. Duas questões envolvidas requerem, no entanto, esforços e análises complementares: (1) a inexistência, na legislação brasileira, de dispositivos que garantam explicitamente o expurgo da valorização “de expectativa” em desapropriações para fins sociais; e (2) a contribuição desse tipo de projeto ao espraiamento da mancha urbanizada, implicando custos adicionais de implantação e operação de redes de serviços públicos.

Algumas Recomendações

Quanto aos Programas: Integrar a política fundiária à política habitacional.  Dar prioridade, na política habitacional, à oferta de lotes urbanizados em escala compatível com o objetivo da baixa de preços. A meta é que o lote urbanizado seja ofertado no mercado formal pelo preço do lote não urbanizado no mercado informal.

Aplicar o conceito de urbanização progressiva e utilizar toda a gama de possibilidades abertas pelos Consórcios Imobiliários e instrumentos afins. Criar e aplicar mecanismos de desapropriação a custo de terra rural e /ou políticas de controle de preços. Buscar níveis de concentração física e centralidade que favoreçam a formação de economias externas, mercado e valorização fundiária.

Incentivar a captura de parte das mais-valias fundiárias pelos proprietários dos lotes urbanizados e regularizados em programas de baixa renda como meio de capitalização familiar e inserção a médio-longo prazo dessas propriedades no mercado imobiliário formal. Amortizar custos de programas de urbanização social com mecanismos como a recuperação parcial e com a inserção cadastral e aplicação do IPTU. 

Manter, nas grandes cidades, carteiras variadas de programas de melhorias e regularização registrária de assentamentos informais: urbanização e consolidação de favelas, urbanização e regularização de loteamentos, regularização fundiária e titulação, recuperação e regularização de cortiços.

Promover uma investigação conclusiva sobre os obstáculos jurídicos, administrativos, econômicos e sociais à regularização fundiária e imobiliária em assentamentos informais envolvidos em programas de urbanização. Com base em seus resultados, estimar os efeitos potencialmente benéficos dos dispositivos facilitadores da legislação que substituirá a Lei 6766 e sua aplicabilidade à inserção do estoque de moradias beneficiadas no mercado formal. Seria a inserção da regularização fundiária uma pré-condição viável e benéfica à eventual resistência detectada no desenvolvimento de programas de urbanização?

Estudar a criação de dispositivos de participação das concessionárias nos custos da instalação das redes de serviços básicos.

Quanto às Fontes de Receita dos Fundos de Desenvolvimento Urbano: Ampliar os recursos dos FMDUs com diversos tipos de recursos provenientes da valorização fundiária das regiões centrais, tais como:
a.      Parcelas do IPTU referentes à valorização da terra
b.      Rendas públicas provenientes da cessão onerosa de solo público (postos de abastecimento, artefatos de publicidade estática, mobiliário urbano e transportes coletivos, direitos de passagem de redes de serviços não essenciais, etc.).

Iniciar a aplicação sistemática da Contribuição de Melhoria prevista na Constituição, no Estatuto da Cidade e no Plano Diretor, como tributo sobre a valorização, visando à construção de um sistema eficaz e socialmente justo de participação nas obras de infra-estrutura e melhorias urbanas em que o benefício seja patente e o esforço da recuperação claramente superavitário. O sistema de aplicação sistemática da CM deverá, por razões de eficiência, estar tecnicamente associado ao sistema de gestão do IPTU.

Quanto aos Recursos Humanos e Materiais: Os instrumentos de gestão urbanística consolidados no Estatuto da Cidade acrescentam, em caráter definitivo, a gestão da valorização da terra como dimensão inerente à gestão urbanística, que não pode ser mais concebida como mera atividade fiscalizadora da conformidade de projetos em relação à norma. Especial atenção deve ser dada, portanto, nesse sentido, à capacitação técnica e material das organizações públicas, em especial nas áreas fiscal, de controle e de urbanismo.

Quanto aos Estudos: Realizar inventário de âmbito nacional das modalidades de recuperação de mais-valias fundiárias aplicadas nas grandes e médias cidades brasileiras. Incluir a incidência e a parcela do componente fundiário na alíquota do IPTU e seu respectivo valor.

Realizar pesquisa específica sobre a real utilização da Contribuição de Melhoria e mecanismos similares nas cidades brasileiras. Desenvolver pesquisa de âmbito nacional sobre modalidades de arrecadação de rendas públicas com cessão de áreas públicas para fins comerciais e os respectivos valores aportados aos orçamentos municipais. Desenvolver pesquisa sobre a valorização produzida pela alteração de usos rurais para urbanos, com foco em cidades médias e pequenas.

Desenvolver pesquisa de âmbito nacional sobre valorização e dinâmica imobiliária nos assentamentos beneficiados por programas de urbanização, regularização urbanística e titulação. Tornar essa modalidade de avaliação obrigatória nos programas financiados com recursos das agências de fomento nacionais e internacionais.

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[1] Nos referimos aqui mais especificamente à parcela do imposto territorial normalmente contida no imposto predial.
[2] Advertindo que na urbanização capitalista essa proposição não pode ser dissociada de uma “ética do capital”.
[3] Em Curitiba, onde sua aplicação é vista como tradicional e consistente, entre março de 1991 e novembro de 2002, o valor arrecadado com a aquisição de potencial construtivo foi da ordem de apenas R$ 21 milhões.

[4] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo. Atlas. São Paulo, 2001 p. 168-9.
[5] O conceito remete a uma avaliação especial das propriedades por ocasião da realização de uma obra pública, que se distingue da avaliação genérica utilizada para a cobrança dos impostos imobiliários. É interessante observar que essa distinção é absorvida em certas delimitações mais atuais do alcance desses tributos. O caso da famosa Proposição 13 californiana, que determina o congelamento da avaliação para efeito do imposto predial, tem como base esta distinção.
[6] Outras manifestações da influência do urbanismo modernista na visibilidade do tema ocorrem em outras cidades importantes da América Latina. O “Plano Agache”, por exemplo, apresentado para o Rio de Janeiro em 1930, contempla especificamente o ponto em um anteprojeto de lei federal. 
[7] Seção baseada nos dados publicados em 2005, obtidos a partir dos dados finais do Censo de 2000, pela Fundação João Pinheiro.
[8] Fundação João Pinheiro, 2005.
[9] Serpa, Claudia, 2004, p.24.
[10] Os dados do Censo para habitações subnormais (favelas) são reconhecidamente sub-dimensionados. Segundo os levantamentos censitários obtidos, de um total levantado de 1.644.267 domicílios nesta categoria, 670.429 apresentariam carência em infra-estrutura básica.
[11] Ver algumas considerações e levantamentos desse valor no capítulo 5.
[12] Ao contrário do que se pode imaginar, a grande maioria dos programas de regularização fundiária e urbanística não aciona o pagamento do IPTU pelas pelos imóveis beneficiados. Ver, a respeito, o capítulo 5.
[13] Considerando-se, aqui, uma “regra de polegar” dos valores de IPTU usualmente cobrados em relação aos valores das propriedades urbanas.
[14] As aspas são para caracterizar esse “direito” como algo que é considerado justo, embora não necessariamente em conformidade com a lei.
[15] Destacam-se trabalhos específicos promovidos por agências multilaterais como os de Guarda (1989), Dillinger (1991), Oldman (1992), Kelly (1994), em vários casos sintetizando ou avaliando estudos conduzidos nos anos setenta e oitenta. 
[16] As informações são pontuais. A arrecadação alcança, na melhor das hipóteses, 40% dos impostos locais, contra pelo menos 75% nos Estados Unidos e Canadá. Quanto a sua representatividade em relação ao PIB, estima-se em no máximo 0,4% em países como o Brasil e o México, enquanto representa ao menos 2,5% do PIB nos países norte-americanos. As alíquotas aplicadas raras vezes alcançam 1%, e são em geral referidas a um valor venal muito aquém do valor de mercado das propriedades. Comparar, por exemplo, dados de Youngman e Malme, 1994, com os de Smolka e Furtado, 1996.
[17] As reformas tinham como base o entendimento de que “os recursos com o imposto predial urbano não acompanharam o crescimento da base fiscal, em grande medida devido ao modo como o tributo é administrado na maioria dos países em desenvolvimento” (Bahl, Holland e Linn, 1983 citado em Oldman, 1992, p.78). Este entendimento mostrou-se no entanto insuficiente. Tanto Clichevsky et al (1990) como Oldman (1992) referem-se ao trabalho de Bird et al (1987) sobre a experiência da reforma colombiana, que demonstra a reincidência de obstáculos de natureza política cada vez que uma reavaliação das propriedades era necessária.
[18] Por exemplo, o de Geisse e Sabatini para Santiago, San Salvador e Bogotá (1982) e o de Vetter e Massena para o Rio de Janeiro (1981).
[19] Smolka aponta para a mesma falácia existente no conhecido trabalho de De Soto (1987) , El Otro Sendero.
[20] Vide por exemplo o caso da aplicação da Contribuição de Melhoria em Lima, no Peru, descrito mais acima.
[21] Por exemplo, no caso do projeto de regularização das favelas no Rio de Janeiro, o Favela-Bairro, as famílias assinam um termo de responsabilidade de não realizar nenhum acréscimo construtivo na moradia, como condição para entrar no programa de regularização.
[22] Estudos como o de Smolka e Iracheta(2000) apresentam razões e evidências de que muitas vezes acabam pagando mais.
[23] Para citar um exemplo paradigmático, o Programa Favela-Bairro, hoje uma referência internacional, investiu R$ 616 milhões entre 1994 e 2003 na urbanização de 166 assentamentos informais do Rio de Janeiro, beneficiando diretamente 162 mil famílias e indiretamente outras 40 mil (Cherkezian, 2004). Ainda assim, a população residente em favelas e loteamentos irregulares e clandestinos segue crescendo, segundo o último censo demográfico do IBGE (2001).

[24] Os recursos do FGTS que chegam à população na faixa de até três salários mínimos são os destinados ao financiamento de materiais de construção, por sua vez aplicados quase sempre em unidades habitacionais situadas em loteamentos irregulares (Veríssimo, 2004)

[25] Informações baseadas em CHERKEZIAN, Henry, “Lotes urbanizados no Brasil: Considerações e propostas preliminares”, in Serra, M.V. e da Motta, Diana Meirelles, Estudos Estratégicos de Apoio às Políticas Urbanas para os Grupos de Baixa Renda no Brasil. Banco Mundial/Cities Alliance, 2004.

[26] Programa de Financiamento para a Construção, Conclusão, Ampliação e Melhoria da Unidade Habitacional.
[27] Ver adiante seção referente à Operación Urbanística Nuevo Usme, em Bogotá.
[28] Dados referenciais e opiniões emitidas por técnicos da administração pública municipal e estadual do Rio de Janeiro, realizadas em Janeiro de 2006.
[29] Projetos de urbanização de assentamentos informais na esfera do governo do Estado do Rio de Janeiro trabalham com custos de infra-estrutura da ordem de U$ 2,500 por unidade em favelas e U$ 1,800 em loteamentos irregulares. O estudo do IBAM em 10 cidades apurou um custo médio de infra-estrutura por família de R$ 7.454,00 e um custo total por família de R$ 5.957,22, com um mínimo de R$ 3.000,00 e um máximo de R$ 13.645,00 (outubro de 2002). Abiko (2004) relata que os custos apurados por ANCONA & LAREU 2002 em um conjunto de 32 favelas urbanizadas pelo Programa Guarapiranga (São Paulo) são de R$ 10.624,00 (dez 2000) por família, sendo R$ 9.701,00 (91,3%) referentes à infra-estrutura. Cherkezian (2004) obteve, com dados de 100 programas de urbanização de assentamentos informais em todo o país, valores médios de investimento por família extremamente variados segundo as regiões, devido à disparidade de soluções adotadas. Na região sudeste de São Paulo, onde estão os citados Programas Guarapiranga e Favela-Bairro, a média por família foi de R$ 9.150,00 (julho de 2003). 
[30] Na Favela da Rocinha, Zona Sul do Rio de Janeiro, já existem imóveis de sete, nove e até onze pavimentos, conforme amplamente divulgado em matérias jornalísticas recentes. Em setembro de 2002, Dimmi Amora relata que segundo a Administração Regional, as aproximadamente 25 mil moradias cadastradas no início de 2001 já teriam sido acrescidas em pelo menos mais 1000 novas moradias, ou seja, um crescimento de 4% em pouco mais de um ano. (O Globo, 08-09-2002)
[31] Apesar das eventuais “descontinuidades” no gradiente de valorização imobiliária da cidade (um imóvel legalizado na periferia nas proximidades da favela pode valer substancialmente menos que um imóvel não legalizado no interior da mesma), o mercado imobiliário informal é regido pelas mesmas leis econômicas do mercado formal, do qual é parte integrante.
[32] Informações baseadas em BOGOTÁ, Alcaldia Mayor et al. Operación Urbanística Nuevo Usme, 2003. 




2006-02-15