(Value Capture in Brazil: Issues and Opportunities)
Fernanda Furtado e Pedro Jorgensen
February, 2006
Agradecimentos
Os autores agradecem aos
participantes desse projeto, incluindo David E. Dowall, Maria Emilia Freire,
Martim O. Smolka, Paulo C. Ávila e Edesio Fernandes por seus relevantes
comentários e sugestões. Os férteis diálogos com Antonio Augusto Veríssimo,
Paulo Fernando Cavallieri, Elizabeth Castanheira, José Agostinho Leal e Maria
Clara Vejarano foram importantes para o desenvolvimento desse documento.
Qualquer equívoco ou omissão tanto nas análises como conclusões permanecem
entretanto como de exclusiva responsabilidade dos autores
Índice
Sumário Executivo
O
presente trabalho tem por objetivo discutir as bases teóricas e o estado da
arte das políticas públicas de recuperação de mais-valias fundiárias urbanas no
Brasil, estimar a capacidade contributiva que podem ter essas
políticas tanto para o financiamento de projetos de infra-estrutura básica nas
grandes cidades brasileiras como para a implementação de programas de acesso à
terra urbanizada pela população de baixa-renda, e sugerir caminhos para suas
aplicações mais eficazes.
No
Brasil, como em quase toda a América Latina, a recuperação de mais-valias
fundiárias para a cobertura de custos públicos de urbanização – projetos,
atividades, serviços – constitui uma prática antiga, porém essencialmente
fragmentária. A despeito de importantes avanços recentes, certos aspectos do
tema permanecem até hoje bastante obscuros. À parte os instrumentos tributários
diretamente relacionados com a recuperação de custos de obras públicas, a
apropriação pública regular e consistente das valorizações fundiárias
envolvidas nas operações urbanas e mesmo no imposto sobre a propriedade é uma
prática quase inexistente na administração pública. Exceção feita à Colômbia –
por razões que discutiremos adiante – essas práticas não apenas
não evoluíram no sentido de formar um corpo de teoria e doutrina em gestão urbana
como parecem ter de certa forma involuído
no interregno desenvolvimentista ocorrido entre a era dos grandes projetos de
“modernização” dos centros urbanos da primeira metade do século XX e sua
reedição nos “grandes projetos de revitalização de centros urbanos” da virada
do milênio.
Se
por um lado o interesse público pela recuperação da valorização fundiária tem
óbvia relação com a debilidade crônica dos impostos sobre a propriedade
imobiliária nas cidades latino-americanas, por outro são claras as indicações
de que seus fatores reguladores são os afluxos de investimentos e empréstimos
externos às economias nacionais e as flutuações do sistema de distribuição da
receita tributária nacional. Os anos 1950-1980, de
fartura de empréstimos externos para projetos de desenvolvimento, “apagaram as
pegadas” da promissora história da recuperação de mais-valias fundiárias no
Brasil na primeira metade do século XX, mesma época em que, por outro lado, a interrupção do fluxo de recursos externos
motivada pela crise a respeito do Canal do Panamá criou as circunstâncias
propícias para que a Colômbia viesse a se tornar a indisputável referência
teórica e prática latino-americana em recuperação de mais-valias fundiárias,
especialmente aquelas destinadas ao financiamento de projetos de infra-estrutura básica – foco do
presente estudo. Finalmente, é o ambiente de forte aperto fiscal e
restrições ao endividamento do início do século XXI, associado aos processos de
descentralização administrativa e aumento da autonomia municipal, que convoca o
tema a retomar a sua proeminência, na América Latina como no Brasil.
A estimativa
do potencial financeiro e o pleno entendimento das condições de eficácia da
recuperação de mais-valias fundiárias como fonte de recursos para o financiamento
de infra-estrutura urbana é, pois, um tema de investigação urgente. O presente
trabalho se propõe, entre outras coisas, a clarear o caminho dos que pretendam
realizá-la. Para tanto, serão necessários tanto o aprofundamento da investigação teórica de seus
casos mais relevantes – dos projetos de remodelação dos centros urbanos desde o
início do século XX em capitais como Buenos Aires, Rio de Janeiro e Santiago do
Chile à rica experiência colombiana com a contribuição de valorização e, mais
recentemente, os programas de produção de lotes urbanizados – quanto a formação
de um “inventário” que dê conta da multiplicidade de práticas das
administrações municipais que têm por fundamento a apropriação do valor
acrescido ao solo pelo processo de urbanização, seus respectivos modos de
funcionamento e os valores envolvidos.
Com relação às grandes
metrópoles do país, há que se reconhecer sua capacidade de gerar riqueza,
dentre as quais uma das mais características é a renda fundiária, e concentrar
pobreza e precariedade. Do ponto de vista da sustentabilidade das grandes
cidades, nada mais razoável que exigir
da renda fundiária uma participação muito mais que proporcional para o
financiamento de programas de urbanização social. Mais além de sua efetivação
através de programas de recuperação de custos, isso pode ser feito por meio de
políticas de transferência espacial de rendas do solo – via impostos,
oneramento do direito de construir e outros – nas regiões mais valorizadas; por
meio da cobrança dos impostos sobre a propriedade nas áreas beneficiadas por
programas de urbanização social; e ainda por meio de programas auto-sustentados
de produção de lotes urbanizados baseados nos princípios da gestão pública dos
direitos do solo e da ação consorciada.
Em
nosso país, a recuperação da valorização da terra urbana para fins de
financiamento de programas de habitação e urbanização social (leia-se provisão
de infra-estrutura urbana em assentamentos de baixa-renda) ganha contornos
claros de política pública a partir da aprovação dos Planos Diretores
Municipais que, inspirados nos Artigos 182 e 183 da Constituição de 1988, criam
os Fundos Municipais de Desenvolvimento Urbano, aos quais afluem as
contrapartidas pagas pelos empreendedores imobiliários por direitos adicionais
de uso e aproveitamento do solo, previstos nas legislações. Embora dotados de
recursos ainda muito insuficientes, os Fundos Municipais têm
sido mobilizados com sucesso em programas de urbanização social desde fins da
década de 1980, e por isso, pode-se dizer, dificilmente deixarão de ocupar
lugar de destaque em qualquer política que tenha por ambição atacar de frente o
déficit de habitabilidade concentrado na periferia das grandes metrópoles.
A forma mais geral de
recuperação de mais-valias fundiárias é o imposto sobre a propriedade
imobiliária (IPTU). Explícita ou implicitamente, o IPTU, embora não se defina
nem seja gerido como instrumento de recuperação de mais valias fundiárias, é
efetivamente aquele dentre os instrumentos fiscais que mais intensa e amplamente
se aplica à valorização do solo urbano. No caso da parcela do IPTU
correspondente à valorização fundiária, ou seja, à renda da terra auferida por
proprietários em decorrência do processo urbanizador, parece razoável o
argumento de que se tal parcela da arrecadação municipal é extraída das rendas
extraordinárias do solo, caberia, em
uma política de equilíbrio e redistribuição de renda urbana, destiná-la à
urbanização social através dos Fundos Municipais de Desenvolvimento Urbano. Por
outro lado, cabe questionar por que razão a rica experiência brasileira em
urbanização de assentamentos irregulares e informais não se vale, em geral, da
cobrança do IPTU dos imóveis beneficiados, ainda que com alíquotas
diferenciadas, como fonte de cobertura de custos.
Outras
formas clássicas de recuperação (ou antecipação) pública de mais-valias
fundiárias têm também, como veremos, uma história própria no país, sem clara
relação, porém, com o financiamento de infra-estrutura básica ou sem penetração
nos grandes centros urbanos, onde o problema é mais agudo. É o caso,
respectivamente, da venda direta de lotes
criados por projetos de reurbanização nas zonas centrais nas grandes cidades e
da Contribuição de Melhoria, existente em nossa legislação desde 1934, porém de
aplicação dispersa e até aqui praticamente restrita a cidades de pequeno e
médio porte, e em sua maioria orientadas a projetos de pavimentação de vias
públicas. Devidamente combinadas e adaptadas às condições econômicas de
adquirentes e empreendedores, essas duas modalidades de gestão da valorização
do solo poderão desempenhar papel relevante na consecução de projetos de
urbanização de loteamentos e, principalmente, de aumento da oferta de terra
servida na periferia das grandes cidades.
Permanece à espera de
melhor esclarecimento conceitual a relação entre a valorização do solo urbano e
um conjunto de práticas nascidas da onda de privatização de serviços públicos
da virada do milênio, como a exploração privada, via publicidade, de
equipamentos públicos urbanos, a concessão de áreas públicas a particulares
para prestação de serviços comerciais, a manutenção de praças públicas e
equipamentos urbanos em regime de “adoção” privada e a cobrança de “direitos de
passagem” de redes de serviços de transmissão de imagens e dados. Parece
razoável pensar que tais recursos,
“rendas públicas” resultantes dos mesmos fenômenos sócio-econômicos que
respondem pela valorização do solo privado, poderiam também ser canalizados
para programas de urbanização social via Fundos de Desenvolvimento Urbano.
Sabemos também que, à
sombra do automatismo do licenciamento de construções conforme o zoneamento e
os índices construtivos estabelecidos em lei e, na maioria dos casos, por meio
de arcaicas estruturas de natureza mais propriamente “cartorial”, algumas
cidades brasileiras administram já há muitos anos verdadeiras “carteiras de
obrigações e contrapartidas urbanísticas” – doações de solo para expansão
viária; implantação de infra-estrutura básica e urbanização em projetos de
parcelamento; construção de escolas e equipamentos públicos – que somam uma
certa quantidade de recursos oriundos da valorização fundiária. Caracterizar esses recursos, dimensioná-los e
atribuir-lhes sua destinação mais eficaz é tarefa necessária para uma política
abrangente de gestão da valorização da terra.
Finalmente, é inadiável a
ampliação da oferta de terra servida nas áreas de expansão urbana – eixo
obrigatório de qualquer política de redução de preços fundiários para a
população de baixa-renda. Nesse sentido, vêm ganhando relevo na cultura e na
norma urbanística brasileira, como alternativa às modalidades clássicas de
subsídio direto à demanda, as
modalidades de ação consorciada
baseadas na internalização da valorização do solo no desenvolvimento de
projetos urbanos de grande escala. Aqui, o capital de investimento em
infra-estruturas pode ser recuperado por meio da operação estatal das variáveis geradoras da valorização fundiária,
como a desapropriação do solo rural a custos compatíveis, o re-parcelamento das
glebas envolvidas e a atribuição de índices de ocupação e edificabilidade a
serem objeto de outorga onerosa.
A economia de custos
resultante poderia chegar a corresponder, no preço final pago pelo comprador do
lote, ao que hoje via de regra se transfere ao dono da gleba, no mercado
informal de baixa-renda, por conta da expectativa
de urbanização futura promovida pela municipalidade.
Organização deste documento
O Capítulo 1 discute as
bases históricas e teóricas da recuperação de mais-valias fundiárias urbanas aplicadas
à América Latina e ao Brasil, ao lado de alguns instrumentos complementares
aplicáveis ao caso brasileiro.
O Capítulo 2 discute a
experiência latino-americana e brasileira com a recuperação da valorização do
solo urbano, na forma de um referencial cronológico e um mapeamento das
principais experiências.
O Capítulo 3 examina
estimativas do déficit de infra-estrutura básica no Brasil, foco mais evidente
de eventuais políticas de recuperação de mais-valias fundiárias, e discute as
bases para uma ampliação da abrangência do tema, abordando as diversas
modalidades de recuperação de mais-valias fundiárias e seus principais formatos
de gestão.
O Capítulo 4 discute
problemas do mercado de terras no Brasil: o papel da terra e da propriedade
imobiliária, a sua tributação, a escassez relativa de terra servida e os
problemas da auto-sustentabilidade na provisão de infra-estrutura básica.
O Capítulo 5 avalia o tema
da recuperação de mais-valias fundiárias e em especial da recuperação de custos
de investimentos públicos em infra-estrutura urbana, à luz das experiências de
regularização de assentamentos informais e da produção de lotes urbanizados.
Nas Considerações Finais,
são retomadas as principais questões discutidas para indicar componentes
necessários de uma política fundiária e para recomendar algumas linhas de ação
pública, tendo como orientação básica a mobilização e a aplicação de recursos
oriundos da valorização fundiária urbana em projetos de provisão de
infra-estrutura urbana.
Capítulo 1
Recuperação de
Mais-Valias Fundiárias Urbanas
1.1
Conceituação
A recuperação de
mais-valias fundiárias urbanas representa uma ação do poder público sobre
excedentes econômicos apropriáveis como renda da terra urbana. A idéia é a de
que o mercado usualmente aloca esses excedentes para o proprietário privado - o
qual não é necessariamente perverso ou anti-social - e que a ação do poder
público tem o objetivo de intervir nesse processo e transferir tais excedentes
para a coletividade.
Essa ação tem
basicamente o sentido de restaurar uma situação anterior, ou seja, compreende
em certa medida uma posterioridade. Assim, apesar de que possam ser
considerados em uma perspectiva que envolve passado e futuro (por exemplo,
recuperar mais-valias fundiárias que venham a ser potencialmente ou de fato
incorporadas a determinadas propriedades), remetem a uma atuação do poder
público que busca intervir sobre uma situação que é conformada pelo
funcionamento do mercado. Esta atuação pode ser motivada tanto pela concepção
de que esta seja uma característica estruturalmente perversa do mercado de
terras, como pelo reconhecimento de que se trata de atuar sobre certas
situações que obstaculizam o funcionamento desse mercado, com todas as
variações que esses dois entendimentos permitem. Isto significa que, antes de tudo, o tema é
passível de apropriação por diferentes correntes do pensamento econômico,
podendo ser desenvolvido tanto a partir de teses intervencionistas quanto de
teses liberais sobre o mercado.
Dois entendimentos básicos
podem ser delineados a partir dessa idéia. O primeiro postula que toda a renda
econômica da terra é mais-valia fundiária. Neste entendimento, qualquer parcela
do valor da terra de uma determinada propriedade, seja ela relativa às
mais-valias acumuladas no passado ou às mais-valias potenciais que advenham no
futuro, estaria qualificada como passível de recuperação para a
coletividade. Um entendimento
alternativo para o termo “mais-valias fundiárias urbanas” como objeto de
recuperação por parte do poder público é o que remete à valorização
experimentada pelos terrenos no processo de urbanização, ou seja, ao
“incremento de valor da terra”, e mais especialmente à parcela dessa
valorização recebida de forma gratuita pelo proprietário da terra, sendo alheia
ao seu esforço.
Seja porque na prática não
é factível ou adequado em termos políticos ou administrativos capturar toda a
renda, ou porque o entendimento usualmente adotado é o menos restrito, o tema
adquire a forma mais geral de recuperar
para a coletividade parcelas socialmente acordadas das mais-valias fundiárias
urbanas decorrentes da atuação do setor público em nome da comunidade.
Dessa interpretação geral
deriva a conformação de um rol de instrumentos de recuperação de mais-valias
elaborados especialmente para gravar uma parcela maior ou menor, e mais
genérica ou mais específica, da mais-valia fundiária “gerada” no processo de
urbanização. Assim, a diferentes
componentes, ou conjunto de componentes, do valor de um terreno correspondem
diferentes instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias (Furtado,
1999). O rol de instrumentos inclui desde o tradicional imposto predial,
incidente sobre todos os componentes de valor da terra indistintamente, até os
novos instrumentos destinados a recuperar incrementos de valor produzidos a
partir da definição, por parte da administração pública, de usos e
aproveitamentos da terra urbana, passando por instrumentos voltados para
situações mais específicas, como por exemplo o imposto sobre ganhos
imobiliários ou a contribuição de melhoria.
Duas são basicamente as
formas de atuação do poder público no processo de desenvolvimento urbano
capazes de incrementar a renda econômica da terra: em primeiro lugar, a
realização de obras de infra-estrutura e serviços urbanos, tradicionalmente
reconhecidas como estreitamente associadas à valorização das propriedades
urbanas; em segundo lugar, o entendimento mais recente do impacto, sobre os
preços dos terrenos, das decisões administrativas e urbanísticas que regulam a
utilização dos terrenos urbanos por seus proprietários.
Mas as diferenças no
desenho dos instrumentos correspondentes nem sempre se deve apenas à parcela
das rendas fundiárias em questão, ao contrário, pode ter origens (e
conseqüências) mais profundas.
Ao partir da proposição
ética de que “cada um deve ser recompensado apenas pelo seu próprio esforço” ,
temos que o incremento de valor da terra que não é produto do esforço
individual é imerecido, e deve ser restituído à coletividade. Mas, o que é
produto do esforço individual também é passível de mais de uma apropriação.
Para Henry George, a renda de uma determinada propriedade depende unicamente do
esforço coletivo: “Considere o que é a renda. Ela não cresce espontaneamente da
terra; não é devida a nada que os proprietários tenham feito. Ela representa um
valor criado por toda a comunidade. Deixemos que os proprietários tenham tudo o
que a posse da terra lhes daria na ausência do restante da comunidade.” (1992
[1879], p.366)
Esta não é, no entanto, a
única forma como a proposição é entendida no campo das finanças públicas e nos
princípios de tributação. Outra corrente pode ser representada por Edwin
Seligman ([1925] 1977, citado em Macon e Mañon, p.5): “A teoria da contribuição
de valorização ou melhoria (betterment
charge or assessment) de acordo com o benefício é muito simples. Ela se
baseia no princípio quase axiomático de que se o governo por alguma ação
positiva confere a um indivíduo uma vantagem especial mensurável, é justo para
a comunidade que o indivíduo deva pagar por isso.”
Essa visão alternativa deve
ser tomada com o devido cuidado, sob pena de que o princípio ético se
transforme, de “cada um deve ser recompensado apenas pelo seu próprio esforço”
em “cada um deve ser responsável pelos seus próprios custos”.
Nesse debate, dois
critérios balizam a teoria e a prática da tributação: o do benefício e o da
capacidade de pagamento. No primeiro, há uma relação imediata de troca entre o
contribuinte e o governo, enquanto no segundo os tributos devem ser impostos de
acordo com regras socialmente aceitáveis, e não como decorrência direta dos
benefícios absolutos recebidos (Musgrave, 1959).
Entendemos que se a idéia
da recuperação de mais-valias fundiárias for tomada a partir do princípio da compensação, perde-se inteiramente a base que norteia o tema, que é o
princípio da distribuição. Por
distributividade, entendemos aqui o resultado de uma ação de intervenção do
setor público que objetive destinar ao conjunto social excedentes considerados
coletivos e que são passíveis de apropriação privada.
Outro ponto importante que
deve ser salientado é o de que este princípio de distributividade (restaurar
a distribuição prévia), na compreensão de nosso tema, deve ser entendido
como diferente da noção de redistributividade (alterar a distribuição prévia).
Esta última noção também está relacionada ao nosso tema de forma geral, e
assume particular relevância na situação latino-americana, mas deve ser
entendida aqui como um dos objetivos possíveis de uma política que tome como
eixo a recuperação de mais-valias fundiárias urbanas, e não como seu princípio
constitutivo.
Essa distinção é necessária
porque na ação de distribuição acima definida, que afeta a forma como essas
mais-valias fundiárias são apropriadas, não está contida uma ação de
redistribuição, ou seja, esta ação não altera per se a forma como as mais-valias fundiárias são historicamente
repartidas. Assim, compreender que a recuperação de mais-valias fundiárias é
justa porque permite redistribuir vantagens especiais alocadas privadamente, é
algo que não pode ser avaliado independentemente de um conjunto de questões que
envolvem, entre outras coisas, como essas vantagens especiais são alocadas.
Aqui, tornam-se claras as
diferenças entre a apropriação do tema como elemento facilitador do livre
funcionamento do mercado de terras urbanas, e a apropriação em que nos
situamos, da necessidade da recuperação de mais-valias fundiárias urbanas como
elemento de intervenção sobre um mercado de terras cujo funcionamento se caracteriza
por uma distribuição estruturalmente injusta das mais-valias fundiárias.
Mas, sob outro aspecto,
reconhecemos que a recuperação de mais-valias fundiárias, se realizada de forma
sistemática, envolve a redução das oportunidades de geração desses excedentes,
e, restringe o componente especulativo do processo de desenvolvimento urbano,
contribuindo para estabelecer as bases para uma urbanização socialmente mais
justa.
Importa ainda observar que
o tema não define em si uma linha de atuação objetivada a restringir a
“geração” dessas mais-valias fundiárias, ou alternativamente uma linha
destinada a estimulá-la. Desse modo, a concretização de uma política de
recuperação de mais-valias fundiárias urbanas que tenha por objetivo restringir
a “geração” dessas mais-valias pode incorporar projetos específicos que a
estimulem, como seria o caso, por exemplo, na renovação de certas áreas
degradadas da cidade. Para cada um desses projetos urbanos, existem diferentes
instrumentos ou conjuntos de instrumentos alternativos, cuja seleção e gestão,
em cada caso, envolve entendimentos e decisões de natureza técnica e política.
1.2 Aspectos Teóricos e Históricos Aplicados à América
Latina e ao Brasil
Historicamente, o desenvolvimento da idéia de recuperação de mais-valias
está associado, na América Latina, a um instrumento específico conhecido como Contribuição de Valorização/ Contribuição de
Melhoria. Este mecanismo especial de tributação à valorização, incorporado
à legislação da maioria dos países latino-americanos, tem por objetivo capturar
uma parcela dos benefícios especiais (valorização do solo) que resultem de
investimentos públicos em infra-estrutura e serviços públicos, para financiar
tais investimentos.
Mesmo sob esta definição
restrita, a aplicação da recuperação de mais-valias tem sido assolada por
limitações e polêmicas. Tanto a influência política dos proprietários como as
deficiências técnicas — e freqüentemente também legais — para realizar
avaliações adequadas dos valores do solo, têm sido identificadas por estudiosos
e funcionários públicos como entorpecedoras de sua aplicação em muitos países.
A Colômbia é talvez o único caso que se destaca por sua tradição estabelecida
no uso do instrumento, mas mesmo naquele país o histórico de sua aplicação apresenta
sérias controvérsias (Jaramillo, 2001).
Entretanto, entre os dois
extremos de recuperação da totalidade da renda fundiária e a captação de
parcela dos custos das obras públicas, há que se reconhecer um vasto campo de
inserção do tema na realidade latino-americana, envolvendo desde instrumentos
mais tradicionais como o imposto predial até uma série de iniciativas pontuais
e localizadas, passando pelas tentativas de elaboração de novos instrumentos
mais inclusivos.
Pode-se dizer, de modo mais
geral, que a trajetória do tema e de políticas correspondentes na América
Latina é marcada pela debilidade na implementação de instrumentos de
recuperação de mais-valias fundiárias. Essa debilidade está balizada, por um
lado, pela carência de recursos suficientes para financiar a provisão de
infra-estrutura e serviços urbanos e, por outro lado, pela grande valorização
fundiária nas cidades, associada ao processo de desenvolvimento urbano.
A importância do tema,
porém, não está limitada ao uso desses instrumentos e seu potencial como
coadjuvante em objetivos de políticas urbanas específicas, nem meramente à
resolução de uma questão ética. Definir mais claramente as relações que se
estabelecem entre os incrementos de valor da terra e a atuação pública é, na
realidade latino-americana, um passo necessário para abordar de maneira mais
integral um dos problemas fundamentais da urbanização latino-americana, o de
como financiar a provisão de infra-estrutura e serviços urbanos para a
população de baixa-renda.
Tendo em vista as
disparidades de riqueza e acesso ao solo urbanizado na América Latina, e seu
rebatimento espacial, cristalizado no binômio conformado por centros
urbanizados afluentes (para poucos) e periferias pobres carentes de serviços
(para a maioria), o desenvolvimento de políticas e instrumentos de recuperação
de mais-valias fundiárias para os países latino-americanos não pode ser
considerado independentemente de uma política urbana orientada para a redução
das desigualdades sócio-espaciais. Além disso, é importante considerar não
apenas as diferenças relativas como também as diferenças absolutas na provisão
de infra-estrutura pública.
Para lograr a redução da enorme iniqüidade existente,
é fundamental empreender ações diretas orientadas a alterar a presente distribuição
dos valores do solo. Isto significa que, embora não necessariamente envolvida
na idéia da recuperação de mais-valias fundiárias, a redistribuição deve ser
incorporada deliberadamente no desenvolvimento de políticas distributivas nos
países latino-americanos.
Essa necessidade estrutural contrasta com a estreita
relação que se estabelece, na experiência latino-americana, entre o conceito de
recuperação de mais-valias fundiárias e o instrumento da Contribuição de
Melhoria. Alguns observadores criticam a forma com que esses tributos são
implementados na versão latino-americana, desconsiderando um dos principais
objetivos do sistema tributário, a redistribuição de renda, considerada
“especialmente importante na América Latina, onde as diferenças de renda e
riqueza são tão grandes” (Jones e Ward, 1994), enquanto outros defendem o
argumento da sua incapacidade estrutural para a redistribuição. Outros, ainda, assinalam que
freqüentemente ele perde seu vínculo até mesmo com o princípio distributivo,
convertendo-se simplesmente em uma forma prática de custeio de intervenções
públicas nem sempre de interesse da coletividade.
Em verdade, em países com
grande desigualdade de renda, a consecução de projetos custeados com recursos
da mais-valia fundiária não será, em princípio, redistributiva, porque o
pressuposto de sua viabilidade é a pré-existência da capacidade de pagamento
por parte dos contribuintes afetados. Pode-se apenas admitir que, no âmbito da
política urbana como um todo, este projeto tenha um significado estrutural que
permitirá melhorar o desempenho de uma economia (geração global de riqueza) em
que a distribuição da renda é buscada por um conjunto sistêmico de políticas.
Ou seja, o caráter redistributivo de uma modalidade de apropriação pública de mais-valia
fundiária jamais se resolverá no âmbito da própria modalidade. Em geral, a
“redistributividade” do sistema de recuperação de mais-valias fundiárias só se
expressa no âmbito da política urbana e extra-urbana como um todo e a
médio-longo prazo.
De outra parte, a
rejeição aos instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias tampouco
contribui para uma necessária alocação mais eqüitativa de recursos para obras
públicas. Para superar as contradições que surgem entre o uso tradicional dos
instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias para aumentar as receitas
fiscais e a necessidade de incorporar as metas de redistribuição em tais
políticas, o conceito da recuperação de mais-valias fundiárias deve ser
contemplado de forma mais ampla, envolvendo a associação entre três ações
públicas: a ação pública original (regulação, investimento, etc.) que origina
incrementos no valor do solo; uma segunda ação para a recuperação (parcial)
desse valor; e uma terceira ação relacionada ao destino e uso dos recursos
recolhidos.
Assim, o principal desafio
para o caso latino-americano está em aprimorar as idéias e as pré-condições
para um uso mais adequado de instrumentos de recuperação de mais-valias
fundiárias, em lugar de imediatamente rejeitá-los em favor de instrumentos
inovadores desconhecidos por parte da população e sujeitos a problemas
similares, ou de concentrar os esforços em apenas vencer dificuldades técnicas
e operacionais para a aplicação dos instrumentos existentes.
Esta discussão reforça o
argumento de que, na América Latina, as políticas de recuperação de mais-valias
fundiárias devem ser precedidas de mudanças no processo de distribuição dos
valores do solo no mais amplo sentido, especialmente quando se busca a
redistribuição como meta prioritária de política urbana. Esta perspectiva
ajudaria a considerar de maneira integrada, em cada decisão pública associada à
distribuição de valor do solo, as várias outras formas mediante as quais o
setor público contribui para essa distribuição, incluindo:
·
o desenho e a arrecadação
dos impostos sobre a terra;
·
a alocação das receitas
públicas para as obras de infra-estrutura e serviços urbanos;
·
a aplicação (ou não) de
instrumentos específicos de recuperação de mais-valias fundiárias;
·
a repartição dos recursos arrecadados;
e
·
a definição dos usos e
direitos de desenvolvimento do solo urbano.
Essa perspectiva mais
abrangente do tema engloba um conjunto bastante ampliado de instrumentos
tributários e não tributários passíveis de serem utilizados com o objetivo de
uma adequada distribuição de rendas fundiárias. Esses instrumentos podem ter
prioritariamente a finalidade arrecadadora, como é o caso do Imposto Predial e
Territorial Urbano e da Contribuição de Melhoria, ou a finalidade de controlar
certos aspectos do funcionamento do mercado de terras, como é o caso do imposto
progressivo sobre os terrenos vazios, ou ainda possuir finalidades mistas
urbanísticas e fiscais, como no caso da Outorga Onerosa do Direito de
Construir.
À guisa de complementar o
tema, apresentamos a seguir algumas linhas a respeito da delimitação dos
instrumentos complementares citados no caso do Brasil.
Impostos especiais sobre vazios urbanos
Vários países da região têm
instrumentos tributários legalmente definidos para lidar com a retenção
prolongada dos terrenos urbanos, e em alguns são associados mecanismos
complementares de incentivo à ocupação dessas áreas, como as urbanizações e
edificações compulsórias.
Em linhas gerais, a face
anti-social dos vazios urbanos tem basicamente duas dimensões reconhecidas. A
primeira delas é a retenção desses terrenos no decorrer do processo em que as
áreas em que estão inseridos vão sendo equipadas, com a conseqüente apropriação
privada das mais-valias fundiárias. A outra é a perversidade social da
manutenção desses terrenos sem utilização em um quadro de escassez de recursos
públicos para servir de infra-estrutura urbana a totalidade dos terrenos. Os
instrumentos correspondentes visam à recuperação de uma parcela das mais-valias
apropriadas privadamente, a sujeição dos direitos do proprietário à função
social da propriedade, ou, mais genericamente, uma combinação desses dois
propósitos.
Um exemplo no Brasil é a
política de incentivo ao aproveitamento de vazios desenvolvida em Porto Alegre
nos últimos anos do século XX, na qual os dispositivos constitucionais
definidos para intervir sobre a manutenção de terrenos sem utilização ou com
subutilização foram aplicados no bojo de um redesenho da tributação
imobiliária, do orçamento municipal e de outros elementos de planejamento
urbano para uma política fundiária mais abrangente.
A possibilidade de
dinamização dessas áreas, seja como ingrediente das políticas de renovação dos
centros urbanos, seja como elemento da política habitacional social, vem
despertando mais recentemente grande interesse por parte dos governos locais e
mesmo nacionais, sobretudo para as grandes cidades da região. Os exemplos
concretos de iniciativas neste sentido vão de Buenos Aires ao centro histórico
de Havana, passando por Assunção e São Salvador. Nessa nova abordagem que envolve o potencial
dos vazios urbanos em áreas que possuem infra-estrutura, o tema da recuperação
de mais-valias fundiárias assume também um significado mais amplo, envolvendo a
mobilização, a participação e a gestão pública na criação e distribuição das
mais-valias fundiárias que venham a decorrer desses projetos urbanos de
aproveitamento dos terrenos vazios da cidade.
No Brasil, o imposto
territorial progressivo é acompanhado de outros mecanismos alternativos, como o
parcelamento e a edificação compulsória e a desapropriação com pagamento
através de títulos da dívida pública.
A outorga onerosa do direito de construir
O instrumento consiste em
uma re-interpretação da noção clássica de Solo Criado (índice único de
edificabilidades), pela qual o solicitante de uma licença de edificação pagará
uma contrapartida proporcional pelo exercício do direito de construir acima do
coeficiente de aproveitamento básico fixado na legislação, que pode ser único
para toda a cidade ou variável conforme a região, até atingir o coeficiente
máximo, também fixado na normativa urbanística municipal.
Embora amplamente aceita
como mecanismo de distribuição de ônus e benefícios da urbanização, a OODC
ainda é objeto de controvérsias teóricas quanto à predominância do caráter
fiscal ou indutor do ordenamento territorial. Embora se admita que a
recuperação de mais-valias possa não ser a inicialmente esperada em termos de
volume de recursos,
sua importância é estratégica em termos tanto da afirmação da função social da
propriedade urbana quanto da incorporação dos aspectos econômicos à cultura da
gestão urbanística.
Outros instrumentos que se
utilizam da noção de direitos de uso e edificação, previstos na legislação
urbana nacional, são a Outorga Onerosa de Alterações de Uso do Solo, a
Transferência de Potenciais Construtivos e a Operação Urbana Consorciada.
Outros instrumentos
Complementando
a “carteira” de instrumentos disponíveis no Brasil que estão direta ou
indiretamente associados à recuperação de mais-valias fundiárias, aparecem
outros institutos já tradicionais como a desapropriação, assim como outros com
os quais já se conta com alguma experiência, como as Áreas de Especial
Interesse Social, e alguns recentemente incluídos na lei federal de
regulamentação da política urbana (Estatuto da Cidade, 2001), como o consórcio
imobiliário e o direito de preempção. Vale notar que esses e outros instrumentos sacramentados no Estatuto da Cidade propiciam políticas urbanísticas de redistribuição de renda, mas de
nenhuma forma as garante.
Por
fim, cabe apontar a ausência, na normativa ou na prática brasileira, de outros
mecanismos internacionais cujas bases poderiam ser aproveitadas na composição
de um sistema voltado para a proteção das camadas menos favorecidas, como o Tax Increment Financing, o Inclusionary Zoning e o Land Readjustment.
Capítulo 2
A Experiência na América
Latina e Possibilidades no Brasil
2.1 Um Referencial
Cronológico Básico
Embora fundamentalmente
associada à formulação e aplicação de mecanismos contributivos de
proprietários de solo na execução de obras públicas, a recuperação de
mais-valias fundiárias apresenta, na América Latina, uma interessante variedade
histórica de exemplos e formatos, com diversos tipos de aplicação e graus
variados de eficácia.
A instituição de tributos
destinados à recuperação de mais-valias fundiárias se desenvolveu no continente
a partir da década de vinte do século XX. Até então, a iniciativa de
recuperação de mais-valias fundiárias para o financiamento de obras públicas
pertencia quase que exclusivamente às concessionárias de serviços públicos.
Estudos históricos diversos dão conta das estreitas relações existentes entre a
Light, maior concessionária de serviços públicos (energia e transportes) em
operação no Brasil, e os proprietários fundiários das áreas servidas por seus
planos de expansão. No Rio de Janeiro, então capital da República, nada menos
que os dois túneis de acesso à zona oceânica foram abertos pela companhia no
período 1890-1910.
Entre as décadas de 20 e
40, legislações referentes à recuperação de valorização do solo foram
introduzidas pelo menos na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e
Venezuela. O marco legal desses instrumentos é dado pelo objetivo arrecadador,
aliado à disseminação do ferramental do urbanismo modernista e a uma conotação
distributiva associada a princípios de reforma social. Não há, de início,
consenso a respeito do critério básico da arrecadação, se o custo da obra ou a
valorização do imóvel. Os instrumentos aparecem como de natureza híbrida,
característica que centraliza as disputas em torno de seu entendimento e
desejabilidade. A debilidade na sua implementação contribui para o esvaziamento
do instrumento e sua redução a aplicações pontuais.
Esta é também a época do
primeiro grande surto de projetos de transformação de centros urbanos.
Inspiradas no modelo parisiense, capitais latino-americanas como Buenos Aires e
Rio de Janeiro promovem a abertura de grandes avenidas centrais. No Rio de
Janeiro, a revenda de lotes valorizados é usada como método de recuperação de
custos de desapropriação e obras.
No terceiro quarto do século XX, o tema perde visibilidade. No Brasil,
como em vários outros países da região, esse período de relativa fartura de
empréstimos internacionais é marcado por um refluxo do tema da recuperação de
mais-valias fundiárias. Em geral, as obras públicas são executadas com capital
de empréstimo, e visam à criação de infra-estruturas para o desenvolvimento
econômico dos países.
Por outro lado, a provisão
de moradia e serviços públicos concentra a atenção dos urbanistas. O tema da
recuperação pública das mais-valias fundiárias vem à tona pela exacerbação de
sua contra-face, a sua apropriação privada. Formula-se o objetivo de controlar certas
manifestações do mercado de terras consideradas indesejáveis. O debate na
região, iniciado nos anos sessenta, adquire maior vigor nos anos setenta, sendo
incluídos na legislação de diversos países instrumentos para lidar com essas
situações, inclusive países não tradicionalmente envolvidos com o tema, como
Peru e Equador. No Brasil, é então gestada a criação de sistemas de recuperação
de mais-valias no âmbito da legislação urbanística, mais tarde materializada
nos Planos Diretores Municipais definidos pela nova Constituição Federal de
1988.
No final desse período, o
tema da recuperação de mais-valias fundiárias reaparece em diversos países em
sua versão original, com novas tentativas de definição de tributos
arrecadadores. Em alguns lugares, esse ressurgimento é marcado pela elaboração
de novos instrumentos que incorporam o objetivo do controle do uso do solo,
incorporando definitivamente o tema, antes em geral limitado à atuação dos
setores de obras públicas e fiscal, ao setor de planejamento urbano. No Brasil,
assim culmina um processo de décadas, que começa com a proposição do “Solo
Criado” pela Carta de Embu, em 1976, e 25 anos depois é consagrado na aprovação
da Lei Federal conhecida como Estatuto da Cidade.
Na década de 1990, as exigências da economia globalizada de serviços
promovem mudanças profundas na estratégia de gestão das cidades. Afetadas pelo
baixo crescimento econômico, pela contenção forçada do gasto público e pela
desigualdade e informalidade crescentes, as grandes cidades adotam modelos de
planejamento estratégico orientados para a “integração competitiva” das grandes
cidades ao mercado mundial de centralidades, turismo e grandes eventos.
A onda globalizadora da virada do milênio é marcada pelo aparecimento de
“grandes projetos de revitalização urbana” com recursos combinados públicos
(geralmente terras liberadas pela desativação de funções portuárias,
ferroviárias e militares) e privados. Na esfera dos projetos públicos, o aperto
fiscal repõe a questão da recuperação de mais-valias do solo como fonte de
financiamento. Neste contexto, a tendência
é que a recuperação de mais-valias fundiárias passe de instrumento geral de
gestão redistributiva do solo a meio pontual de mobilização de recursos não oriundos do endividamento, seja pela
via da concessão de serviços, seja pela via da recuperação antecipada –
integração das mais-valias imobiliárias ao esquema de financiamento de grandes projetos urbanos.
Em suma, o histórico da
recuperação de mais-valias fundiárias urbanas na América Latina mostra que se
trata de um tema passível de múltiplas apropriações, cuja referência mais forte
e típica na região é a contribuição de melhoria, desenvolvida sob formas
específicas em cada país. Este instrumento, de natureza tributária e voltado
prioritariamente para o objetivo da arrecadação, condicionou e restringiu o
desenvolvimento do tema, de forma mais consistente, na América Latina.
2.2 Mapeamento de Experiências
Recuperação de mais valias em projetos públicos: sucessos parciais,
resultados fortuitos e oportunidades desperdiçadas.
Um exemplo paradigmático da
aplicação de mais-valias fundiárias ao financiamento de projetos de
reestruturação urbana na primeira metade do século XX é o da criação da Avenida
Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, eixo monumental (100m de largura) de
acesso ao centro de negócios, construído no início da década de 1940. A lei que
sancionou o projeto contemplava tanto a previsão de custos com desapropriações
quanto a previsão de receita com a venda dos novos lotes lindeiros. A operação
envolveu a emissão de papéis, denominados Obrigações Urbanísticas, com valor
venal igual ao valor pré-fixado dos novos lotes aos quais se vinculavam, dados
em caução a um empréstimo obtido pela municipalidade junto ao Banco do Brasil.
Apesar de a avenida ter sido parcialmente implantada segundo o modelo previsto,
não se tem notícia dos trâmites e do resultado financeiro da operação.
O princípio expresso na
abertura da Presidente Vargas foi mais tarde (1963) defendido em caráter geral
pela Organização do Plano Regulador da Municipalidade de Buenos Aires, que
recomendava a aquisição antecipada pelo Estado das terras necessárias, para
evitar que as obras públicas viessem
a beneficiar somente os proprietários de imóveis compreendidos em sua área de
influência. (Clichevsky, 1990).
Um ano depois, na
Venezuela, uma iniciativa contemporânea ao
conhecido Informe Lander ilustra a
aplicação da idéia. Para a execução de uma importante avenida em Caracas, o
Ministério de Obras Públicas fez desapropriar todas as franjas adjacentes,
visando à recuperação antecipada da valorização dos terrenos. Nesse caso, os
objetivos foram cumpridos, já que os preços das desapropriações não
incorporavam toda a valorização potencial dos terrenos, permitindo que parte
dela fosse apropriada pelo Estado. Mais que isso, parte desses terrenos foi
transferida ao Banco Obrero para a
construção de habitações de interesse social, sendo o benefício parcialmente
transferido aos destinatários finais.
Mas nem sempre esse método
de recuperação de mais-valias fundiárias obedece à intencionalidade explícita
do poder público, podendo ocorrer de maneira fortuita. Em Santiago do Chile,
por exemplo, um projeto baseado na mesma idéia da revenda de excedentes de
desapropriações foi viabilizado para a área da Nueva Providencia em 1974, primeiro ano após o golpe militar. Isso
ocorreu apesar da condenação por parte da Junta de Governo a qualquer
intromissão estatal no mercado, e da rejeição explícita da consulta realizada
pela prefeitura de Santiago ao governo nacional sobre a possibilidade de
introduzir um mecanismo de recuperação de valorização (Sabatini e Cáceres,
2001).
Na Nicarágua, o modelo
aparece de forma indireta na reforma urbana implementada pelo governo
revolucionário Sandinista. A Ley de Expropiación
de Áreas Urbanas Baldías, de 1981, fixou indenizações aos proprietários com
base em valores cadastrais desatualizados, sendo os terrenos desapropriados
entregues gratuitamente a populações de menores recursos ou transformados em
praças e parques. No entanto, uma de “ley de plusvalías” que circulou no Ministerio de Vivienda y Asentamientos
Humanos não chegou a ser discutida pelas instâncias pertinentes (Morales,
1997 apud Furtado, 1999).
Mais freqüentes, no
entanto, na história da apropriação de solo urbano valorizado por projetos
públicos, são os exemplos de oportunidades desperdiçadas. Na Área Metropolitana
de Buenos Aires, na década de 1980, as terras públicas inundáveis ao redor do
novo Camino del Buen Ayre registraram uma valorização de 2 para 20 dólares por
metro quadrado, depois de terem sido vendidas pelo Estado a uma cadeia de
supermercados e um centro comercial pertencentes a capitais estrangeiros
(Clichevsky, 1990).
Em 1995, 20 anos depois de
inaugurada a Linha 1 do Metrô do Rio de Janeiro, a Companhia do Metropolitano
promoveu a realização de estudo de avaliação do potencial de valorização dos
remanescentes de desapropriação, medida não prevista originalmente como fator
de recuperação de custos da sua implantação. O valor potencial dos principais
terrenos foi estimado, na época (1995), em 127 milhões de dólares, mas o
desenlace da questão ainda não ocorreu, estando na dependência de complicados
trâmites jurídicos e legislativos. Também no Rio de Janeiro, o plano de
desapropriações para a construção da Linha Amarela, via expressa de 25
quilômetros de extensão (primeira via urbana pedagiada da América Latina),
ligando o bairro de alta renda da Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional
através de áreas suburbanas da cidade, não previu a utilização adequada nem a
revenda das terras lindeiras e remanescentes, parte das quais se tornaram
objeto de ocupação irregular.
Vale mencionar que, no Brasil, a aplicação desse
modelo, facultado pela chamada desapropriação por zona, urbanística
ou extensiva, é ainda hoje objeto de controvérsia jurídica, em face da
posição potencialmente especulativa exercida pelo Estado. Para muitos juristas,
no entanto, a revenda das terras valorizadas por obras públicas, desde que
prevista no ato expropriatório, é um sucedâneo da contribuição de melhoria no
financiamento da obra pública.
Finalmente, vale destacar
uma modalidade de recuperação de mais-valias fundiárias muito em evidência na
Europa e Estados Unidos no último quarto do século XX, e que vem ganhando impulso
na América Latina na virada do milênio. São os
grandes projetos de requalificação de zonas próximas às áreas centrais com o
aporte de terras públicas ou concessionadas, dos quais o exemplo mais vigoroso
na região é a área do Puerto Madero
em Buenos Aires.
Mecanismos ad
hoc - Operações Interligadas e Operações Urbanas no Brasil
As Operações Interligadas
são vistas por muitos latino-americanos como a experiência brasileira mais
exitosa, ou ao menos a mais eloqüente, de implementação efetiva da noção de recuperação
de mais-valias fundiárias. Em geral elas consistem de autorizações especiais,
mediante solicitação dos interessados, para a alteração pontual de parâmetros
da normativa urbanística vigente com a contrapartida da realização ou do
pagamento pela provisão de habitação de interesse social ou outros itens
urbanos de responsabilidade do setor público.
O instrumento foi proposto
e implementado em diferentes partes do país, em distintas versões. Os critérios
estabelecidos para as alterações pontuais dos parâmetros de uso e densidades
variam desde os mais técnicos, como a vinculação à infra-estrutura disponível,
caso de projeto para Campinas nos anos noventa, até os mais subjetivos, como a
“harmonia urbanística”, caso do Rio de Janeiro. Essa apropriação variada muitas
vezes obscurece os reais objetivos da utilização do instrumento.
Em São Paulo, a lei das
Operações Interligadas estabelecia desde o final dos anos oitenta uma relação direta entre a concessão de direitos
excepcionais de uso e ocupação do solo em terreno ocupado por favela e a
construção de novas moradias urbanizadas sob responsabilidade do empreendedor.
Já na Operação Interligada
do Shopping West Plaza, que tencionava ocupar três quadras na zona Oeste da
cidade, o emprendedor triplicou em uma primeira etapa o aproveitamento
permitido pagando, como contrapartida, o equivalente à construção de 475
HIS (Habitações de Interesse Social).
Numa segunda etapa de negociações, envolvendo a construção de passarelas
sobre a via pública para ligar os três blocos, o emprendedor pagou o
equivalente a mais 335 HIS, perfazendo um total de quase 10 milhões de dólares
(Sandroni, 2001).
Em Porto Alegre, uma
variante das Operações Interligadas foi desenvolvida sob a rubrica de Operações
Concertadas, processo pelo qual se estabelecem condições e compromissos para a
aprovação de Projetos Especiais de Impacto Urbano. Um exemplo típico é do
Cristal Shopping, com mais de 200.000m2 de área construída em área pertencente
ao Jockey Club, clandestinamente ocupada por mais de 700 famílias vivendo em
condições de grande precariedade. O Termo de Ajustamento determinou ao
empreendedor a obrigação de construir uma série de obras viárias e de
infra-estrutura e reassentar 717 famílias em uma nova área provida de escola.
No Rio de Janeiro, as
Operações Interligadas são, desde o início, exceções ao direito de construir
concedidas pelo município mediante contrapartida em dinheiro diretamente
transferida ao Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano. Em um ano de uso,
este instrumento abasteceu o FMDU com cerca de 40 milhões de reais,
proporcionando um acréscimo de 20% ao orçamento da Secretaria Municipal de
Habitação, então envolvida com o lançamento do programa Favela-Bairro.
As OI apresentam, pois,
duas vertentes. A primeira diz respeito a projetos privados de grande porte que
podem ser vistos como de interesse estratégico pela própria municipalidade e
cuja onda de impactos positivos e negativos transcende a capacidade de previsão
da legislação de uso e ocupação do solo. Eles exigem do setor público a
montagem de dispositivos especiais de análise urbanística e avaliação econômica
com a conseqüente imposição ad hoc de contrapartidas. Quando bem geridas
por parte do setor público, essas operações tendem a exercer efeitos
urbanizadores benéficos e são em geral aceitas pela sociedade. Em algumas
cidades começaram a ser aprovadas Operações Urbanas para a realização de
grandes projetos em parceria com o poder público, entretanto as primeiras
práticas com o novo instrumento mostraram que ele ainda necessitava de um marco
normativo mais bem delineado.
A segunda consiste na
prática rotineira de concessão de exceções para projetos de caráter não estratégico, porém com elevada
capacidade de recolhimento de contrapartidas monetárias ao Fundo de
Desenvolvimento Urbano. Esta vertente implica a criação de mais-valias
extraordinárias, vale dizer, além daquelas estabelecidas pelos preços de
mercado com base na legislação vigente, que o Estado reparte com os
empreendedores privados. Uma barganha em que a sociedade abre mão de padrões
urbanísticos por ela mesma escolhidos em benefício da melhoria das condições de
moradia de grupos de baixa renda. Além de amplamente criticadas por seu caráter
amplamente subjetivo e até arbitrário, sempre em áreas altamente valorizadas da
cidade, estas operações têm sua capacidade de geração de recursos limitada pelo
nível da atividade imobiliária, pela rigidez relativa das legislações vigentes
e, finalmente, pelo seu baixo grau de legitimidade e aceitação política.
Nos anos 1990, as Operações
Interligadas começaram a paulatinamente dar lugar à Outorga Onerosa do Direito
de Construir, instrumento que veio a ser sacramentado no Estatuto da Cidade
como mecanismo típico de recuperação de mais-valias no âmbito da gestão urbanística.
Nos Planos Diretores de todas as capitais metropolitanas e grandes cidades
brasileiras, a Outorga Onerosa passa a ser a principal fonte de abastecimento
dos Fundos Municipais de Desenvolvimento Urbano. Quanto aos projetos de grande porte, seu processo
de implementação e gestão foi também normatizado no Estatuto da Cidade, através
do instrumento denominado Operações Urbanas Consorciadas.
A Contribuição de Melhoria
A presença mais constante
na história da recuperação de mais-valias fundiárias na América Latina é, sem
dúvida, a da contribuição de melhoria (CM) e mecanismos similares. Com
a notória exceção da Colômbia, porém, a trajetória do tributo no continente tem
mais frustrações do que sucessos. Apesar de perfeitamente definida na maioria
das legislações nacionais, a CM raras vezes foi implantada na prática.
No continente,
a CM se caracteriza pela conjugação dos conceitos de betterment e special
assessment ,
com base no entendimento de que o pagamento dos custos da obra pública pelos
proprietários beneficiados é uma forma simplificada de recuperação de
mais-valias fundiárias, em geral de difícil mensuração. Ela se expressa na
cláusula recorrente segundo a qual a cota-parte individual dos custos da obra
deve estar limitada à valorização de cada propriedade afetada.
Além de artificial, tal
conjugação contém uma evidente contradição: se a recuperação dos custos se
justifica pela dificuldade de mensurar a valorização, esta não poderia ser
calculada para servir de limite ao montante da contribuição. Alguns
analistas chegam a contestar que a CM seja um instrumento de recuperação de
mais-valias fundiárias (Clichevsky, 1998; Morales, 1998; Jaramillo, 1997, apud
Furtado, 1999), alertando para a inexistência de uma relação causal direta, e
mesmo necessária, entre a realização de uma obra pública e a valorização
fundiária.
Dentre os questionamentos
mais freqüentes à sua adoção estão: o fato de que as comunidades mais carentes
de obras públicas são justamente as que têm menor capacidade de pagamento; a não
coincidência entre o custo das obras e a valorização dos imóveis,
potencialmente geradora de sub- e sobre-tributação; as desigualdades
inter-generacionais e sócio-espaciais geradas pela não cobrança do tributo às
propriedades beneficiadas no passado; a ocorrência de desvalorizações provocadas por obras públicas intra-urbanas, e
outros fatores (Sandroni, 2001).
Casos mais
significativos
A Ley de Regimen Municipal equatoriana, de
1971, é um exemplo de rigor normativo. Além da Contribución Especial de Mejoras, criam-se mecanismos como o Impuesto Adicional al Solar no Edificado
e o Impuesto a las utilidades de
compraventa de predios urbanos y plusvalías de los mismos. Este último chega a prever a captura, por meio de uma tabela
progressiva, de até 42% do incremento de valor das propriedades (Pauta, 1998,
apud Furtado, 1999). No entanto, mesmo a recuperação de custos dos
investimentos públicos é escassa nos municípios.
No Peru, a Contribución de Mejoras estabelecida na
legislação em 1981e regulamentada em 1985 não foi imediatamente aplicada por
nenhuma instância governamental até o programa metropolitano de 1990. Essa experiência foi avaliada como exitosa, pois mesmo sem ter
arrecadado recursos de grande monta (cerca de 0.25% das receitas correntes dos
municípios), a recuperação cobriu de 20 a 50% dos custos de 30 obras de
infra-estrutura viária, água potável, esgoto e eletrificação em assentamentos
de baixa-renda. Em regiões de renda média e alta, porém, os
beneficiários interpuseram recursos contra a aplicação do tributo, o que levou
à descontinuação o programa. Em 1993, o tributo foi substituído pela Contribución Especial por Obras Públicas
que, entre outras modificações, exigia a aquiescência prévia da população
afetada. Desde então, o instrumento não foi mais
utilizado no país. (Calderón, 2001)
No Chile, o
imposto sobre a mais-valia fundiária, que aparece como bandeira do Partido
Radical desde o início do século, é impulsionado, a partir dos anos 20, pela
introdução do urbanismo modernista em Santiago. Em
1934, a Comissão do Plano Regulador de Santiago defendia a cobrança de até 50%
da mais-valia oriunda de obras públicas. Em 1940, um projeto de lei de imposto
à mais-valia territorial, de alcance nacional, é apresentado, mas não prospera.
Em 1947, uma proposta de reforma tributária propõe, entre outras coisas, um
imposto à sobre-valorização imobiliária em relação a outros investimentos e um
tributo progressivo sobre os vazios urbanos. A partir
de 1952, porém, o tema entra em estado de latência, assim permanecendo nos
governos de Frei e Allende, para reaparecer pontualmente na era Pinochet.
(Sabatini e Cáceres, 2001)
Na Venezuela,
Luis Lander, membro do partido social-democrata, liderou em 1964 uma comissão
presidencial para formular recomendações para uma política de habitação e
desenvolvimento urbano e regional, cujo foco era o problema da posse, escassez,
uso e custo da terra. As recomendações, que incluíam vários instrumentos para a
recuperação de mais-valias territoriais originadas pela atuação do Estado,
foram qualificadas como tentativa de estabelecer uma reforma urbana de corte
socialista e rejeitadas até mesmo por membros do alto escalão do governo. No entanto, a legislação urbana pertinente na Venezuela era das mais
abrangentes do continente, não limitando a contribuição aos custos e envolvendo
o pagamento de 75% da mais-valia fundiária decorrente de obras públicas. Ocorre
que essa legislação, criada em 1947, envolvia um processo operacional de tal
complexidade que não há notícias de sua aplicação. (Camacho e Tarhan, 2001)
A exceção
colombiana
A cobrança da Contribución de Valorización constitui uma prática ininterrupta na Colômbia
desde sua primeira inserção legal em 1921, regularidade que tem sido explicada
como resultado de uma particular incapacidade do Estado central de atender à
provisão de serviços públicos, o que por sua vez engendrou uma particular
tradição de municipalismo no contexto latino-americano.
Jaramillo (2001) destaca a
tendência histórica de ampliação do âmbito de sua aplicação, de local urbano e
rural (1921) à capital Bogotá (1936) e mais tarde aos “serviços públicos” em
geral (1943), vinculando-se o valor cobrado não mais ao custo da obra e sim à
valorização das propriedades. A Lei de 1968 estabeleceu os contornos da
legislação atual, generalizando o uso da CV
a todos os âmbitos territoriais, porém vinculando novamente o valor do gravame
ao custo da obra, mais 10% de imprevistos e 30% de administração, sempre
limitado idividualmente à valorização estimada da propriedade.
O ponto mais alto da
história desse mecanismo está entre o final da década de 1960 até o início da
década de 1970. Em 1980, a arrecadação por valorização somava ainda 27,7% das
receitas municipais em Medellín e 31,7% em Cali. A partir de então, verifica-se
uma tendência de retração tanto absoluta quanto relativa a outros recursos
fiscais e, no caso de Bogotá, em relação ao próprio tamanho da cidade.
Dentre as possíveis causas
dessa retração estariam o descontentamento causado pela imprecisão inerente aos
métodos de distribuição da cobrança, o elevado custo das medidas para evitá-la
e os desequilíbrios financeiros causados pela demora na arrecadação e pelos
efeitos da inflação. Além disso, as autoridades municipais teriam a tendência
de aplicar o instrumento nos lugares onde a capacidade de pagamento dos
munícipes prenuncia menos protestos, o que contribuiria para acentuar a
segregação sócio-espacial. De fato, a experiência da Contribuição de
Valorização colombiana exclui as áreas pobres da cidade, a não ser quando deliberadamente
utilizada em projetos de renovação urbana como forma de desalojar antigos
ocupantes, como no caso da Avenida de los
Cerros, em Bogotá, no começo da década de 1970. (Jaramillo, 2001).
Na década de 1990, quando a
necessidade de execução de um ambicioso plano de obras públicas coincide com o
mais baixo nível de arrecadação da história da CV, o governo de Bogotá decide lançar mão de uma contribuição de
caráter não pontual: a Valorización por
Beneficio General, a ser cobrada de todos os imóveis da cidade, porém com
critérios que combinavam a valorização esperada com a capacidade de pagamento
do proprietário. No período 1993-98, a arrecadação desse tributo atingiu em
Bogotá 89% daquela da época áurea da CV,
o qüinqüênio 1964-68. Este sistema, que sofreu contestações jurídicas por
assemelhar-se à duplicação do imposto sobre a propriedade, obteve, no entanto,
um acentuado grau de aceitação social, possivelmente devido à relação sensível
entre contribuição e resultados.
Mais recentemente, o
sistema colombiano evoluiu para a criação da Participación en Plusvalías, instrumento complementar à Contribución
de Valorización, aplicável a situações em que esta última não opera
convenientemente. A PPV,
regulamentada em lei nacional em 1997, desvincula
o valor cobrado do montante do investimento estatal, aplicando-se tanto em
situações em que a valorização não resulta diretamente de investimentos, como é
o caso das alterações na legislação urbanística de uso e ocupação do solo, como
naquelas em que a valorização ultrapassa em muito a cota-parte da propriedade
no custo de uma obra pública. O tributo representa de 30 a 50 por cento da
valorização, a critério das autoridades municipais, com isenções previstas para
os terrenos destinados a habitação popular. Os pagamentos devem acontecer
quando da realização da valorização, via operações de compra e venda, licenças
de urbanização e construção e mudanças de uso do solo.
Na atualidade, começa a ser
desenvolvida em Bogotá uma modalidade de CV conjunta para um conjunto de obras
(Plan de Obras de Bogotá), numerosas
e grandes, que serão desenhadas e construídas entre 2006 e 2017, em quatro
triênios. As obras incluem: i) vias; ii) intercâmbios viários em desnível
(viadutos ou subterrâneos); iii) passarelas de pedestres; iv) calçadas; e v)
parques. Além de critérios como o tamanho do lote, a distância à obra e o uso
do imóvel (cobranças maiores para imóveis comerciais), é também considerado o
estrato sócio-econômico (1 ao 6) em que o imóvel está classificado. Estão
isentos os lotes de menor estrato, quando o tamanho do lote é inferior a uma
área determinada. Este Plan de Obras
tem custo estabelecido em cerca de US$ 950 milhões. Aproxima-se ao que em
termos práticos seria uma Contribución por Beneficio General, mas neste caso a
cobrança é calculada obra por obra, sendo que eventualmente, quando há
justaposição de áreas beneficiadas, a cobrança pode ser feita em conjunto para
determinados imóveis.
Mecanismos alternativos e aplicações ad hoc
Dentre os mecanismos
derivados da CM com aplicação em diversos países estão os programas de
pavimentação comunitária, que repartem os custos das obras públicas pela
comunidade beneficiada, com a anuência da comunidade. Esta se dá mediante
abaixo-assinado ou termo de compromisso e o pagamento é realizado em parcelas
no decorrer da obra, podendo estender-se por um prazo mais longo quando a
comunidade é carente de recursos. Geralmente aplicados em bairros
pobres, tais programas têm sido reconhecidos como relativamente exitosos em
países como Chile, Colômbia, Peru e Brasil. Seu sucesso pode ser parcialmente
debitado ao fato de que o mecanismo viabiliza a realização de obras que
dificilmente seriam executadas de outra forma. Os beneficiados entendem a
cobrança dos custos como uma oportunidade, não um encargo.
Um caso
clássico de aplicação da CM ao financiamento de grandes obras é o Fondo permanente para la ampliación de la
red de subterráneos de Buenos Aires. Criado em 1987, o fundo
prevê aportes de diversos tributos especiais, incluindo uma Contribución de Mejoras especialmente
desenhada para áreas consideradas de influência direta dos projetos
(Clichevsky, 2001).
Exemplo típico de aplicação
ad hoc da CM no interesse da promoção
imobiliária é o de El Hatillo,
município na região metropolitana de Caracas com graves problemas de acesso
viário. Pressionados pelo indeferimento de novos
empreendimentos na área, os promotores firmaram convênio com a prefeitura
responsabilizando-se pelo financiamento da malha viária correspondente ao
acréscimo populacional. O rateio do custo das obras
foi imputado, na forma de CM, às novas unidades habitacionais. (Camacho e
Tarhan, 2001)
A experiência
brasileira
No Brasil, a primeira
manifestação do uso da contribuição de melhoria foi, talvez, a Taxa de
Pavimentação criada em São Paulo nos anos 1920, regida pelo princípio de que os
beneficiários de uma obra pública teriam de pagar pelos seus custos.
Em 1934, a
contribuição de melhoria aparece pela primeira vez na Constituição, com base na
valorização gerada por obras públicas, desaparecendo em seguida na Constituição
de 1937. Retorna de modo permanente na Constituição de
1946, tendo sido reafirmada na Constituição de 1988.
Apesar de sua pouca
relevância histórica no Brasil, e de sua ausência marcante nas regiões
metropolitanas, a CM é eventualmente aplicada em cidades pequenas e médias, com
resultados ainda não devidamente apreciados em seu conjunto. Um dos poucos
casos divulgados é o de Guarujá, município turístico do litoral paulista que
vem lançando mão da Contribuição de Melhoria para ampliar a rede de ruas
pavimentadas. Os procedimentos utilizados incluem a publicação de edital
contendo o memorial descritivo do projeto, o orçamento da obra, a parcela do
custo a ser financiada pela CM, a delimitação da zona beneficiada e o fator da
absorção do benefício para a zona e suas diversas seções. Os
carnês são emitidos após a entregas das obras e o valor da CM não pode exceder
a valorização do imóvel. Para tal, realizam-se
pesquisas imobiliárias antes e depois da execução das obras. (Caldas e Silva,
2000).
Em alguns municípios vem
sendo implementado instrumento similar, denominado Plano Comunitário de
Melhoria, espécie de contrato firmado entre a prefeitura, os munícipes
interessados, a empreiteira responsável pela obra e o banco financiador, nos
moldes da pavimentação comunitária citada mais acima, porém extensivo à
implantação de redes, sobretudo de águas pluviais e de iluminação pública.
Uma importante
experiência recente foi o Programa Paraná Urbano, financiado com recursos do
BID, nos anos 1990. O Programa era gerido pela PARANACIDADE, entidade ligada
Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado do Paraná, compreendendo uma
abrangente lista de obras públicas em todas as sub-regiões do Estado. O fraco
aporte inicial de recursos, que colocava em risco a continuidade do programa,
levou a duas medidas: a inclusão de uma cláusula prevendo a obrigação da
recuperação de custos mediante a aplicação da Contribuição de Melhoria, e a
realização de um detalhado exame de desempenho do sistema de arrecadação e
correspondentes correções (Goelzer e Saad, 1999). Embora o volume de recursos tenha aumentado
significativamente após as mudanças administrativas e institucionais, os
resultados em termos proporcionais não foram relevantes, levando a pensar que
somente a primeira medida teve impacto real. A
recuperação de custos permaneceu no patamar de cerca de 50% das contribuições
emitidas. O caso oferece uma clara evidência de que a mera obrigatoriedade da
aplicação do instrumento não traz necessariamente resultados efetivos, havendo
variadas maneiras de contorná-la.
Em
suma, trata-se de um instrumento já tradicional do ponto de vista legal, porém
ainda pouco conhecido sob o aspecto normativo e em relação aos trâmites e
procedimentos a serem desenvolvidos para uma adequada operação. Apesar de
fortemente rejeitado, sua validade constitucional foi reafirmada através de sua
inclusão explícita no Estatuto da Cidade.
Bases para o Uso de Instrumentos de Recuperação de
Mais-Valias Fundiárias no Financiamento de Infra-Estrutura Urbana no Brasil
3.1 Quantificação do Déficit Atual de Infraestrutura Básica no Brasil e Algumas Bases ára Abordá-lo [7]
O déficit acumulado de
infra-estrutura básica no Brasil é hoje estimado em cerca de doze milhões de
unidades domiciliares, dos quais 60% são moradias precárias e informais de
famílias com renda de até três salários mínimos[8]. Somente
nas regiões metropolitanas (RMs), este déficit atinge quatro milhões de
habitações. A essa carência soma-se o déficit habitacional acumulado. A Caixa
Econômica Federal estimou que seriam necessários investimentos anuais da ordem
de U$ 4 bilhões, ao longo de 10 anos, para eliminar o déficit habitacional
brasileiro (construção, recuperação e melhoria de unidades residenciais
existentes, e atendimento da demanda decorrente do crescimento demográfico)[9].
Em termos percentuais,
quase um terço (32,09%) dos domicílios urbanos permanentes é carente de um ou
mais itens da infra-estrutura básica (energia elétrica, água, esgoto e coleta
de lixo). No caso das favelas, a essa proporção é ainda maior, chegando a perto
de 42%.
Tomando apenas as 15
maiores RMs do país (vide tabela), temos nessa situação cerca de dois milhões
de domicílios permanentes atingidos na faixa de rendimentos de até 3 salários
mínimos regionais (s.m.), setecentos e cinqüenta mil domicílios na faixa entre
3 e 5 s.m. e novecentos mil domicílios na faixa acima de 5 s.m.
Em termos absolutos, o
total de unidades domiciliares incluídas no critério de carência de infra-estrutura
urbana básica guarda uma certa proporção com a magnitude das RMs em população,
sendo as metrópoles mais atingidas respectivamente as do Rio de Janeiro (líder
tanto no total absoluto como na faixa de rendimentos de até 3s.m., São Paulo,
Recife e Fortaleza).
Na faixa de até 3s.m., as 6
RMs do Nordeste lideram a participação percentual de famílias sem acesso a
itens da infra-estrutura básica, todas com acima de sessenta por cento das
famílias atingidas situadas nesta faixa de rendimentos (Salvador – 68,63%,
Grande São Luis – 68,19%, Fortaleza – 65,22%, Natal – 64,43%, Maceió – 64,24% e
Recife – 61,86%). A situação se inverte na faixa acima de 5s.m., atingindo mais
fortemente as metrópoles mais ricas, como São Paulo(32,70%), Curitiba (31,51%)
e PortoAlegre(30,47%).
A recuperação
de mais-valias fundiárias oriundas da eventual provisão de infra-estrutura
urbana nas áreas de assentamento incompleto é uma óbvia candidata ao
financiamento dessa provisão. Duas seriam as formas básicas de implementá-la:
através da aplicação da Contribuição de Melhoria, instrumento legalmente
previsto para a recuperação de custos dos investimentos públicos associados a
valorização imóvel, e através da efetiva cobrança do Imposto Territorial e
Predial Urbano, o IPTU, aos imóveis beneficiados.
Essas formas
básicas são aplicáveis, ao menos em teoria, à totalidade das áreas urbanas no
país, para as quais o déficit atinge as seguintes quantidades por faixa de
renda:
Embora sejam
flagrantemente desconhecidos alguns dados básicos para uma estimativa dos
recursos necessários para fazer frente a esse déficit, e mais ainda o potencial de recuperação de recursos através
dos mecanismos citados, estimamos, a título de exercício, a ordem de grandeza
desses recursos, a partir dos totais domiciliares atingidos por faixas de renda
apresentados acima.
Em primeiro
lugar, com relação à recuperação de custos, consideramos um montante de
recursos necessário da ordem de US$2,500.00 por domicílio, para
chegar a um montante de recursos necessário, para os quase 12 milhões de
domicílios atingidos, da ordem de US$ 30 bilhões.
Também
consideramos a necessidade de aplicar faixas de recuperação distintas para os
domicílios incluídos nas distintas faixas de rendimentos, tentando superar uma
das maiores dificuldades reconhecidas na Contribuição de Melhoria, a ausência
de um critério claro de capacidade de pagamento dos contribuintes. Utilizando
os percentuais médios de recuperação de 20% para a faixa de até 3s.m., 40% na
faixa de 3 a 5s.m. e 80% para os domicílios na faixa acima de 5s.m., chegamos
aos seguintes valores:
Grosso modo, o potencial
recuperável através da aplicação dessas alíquotas progressivas de recuperação
seria da ordem de 37%, restando 63% dos recursos a serem financiados através de
outra fontes.
A efetiva
aplicação do IPTU teria também um papel importante a cumprir. Embora não se
possa fazer nenhuma relação imediata entre os domicílios carentes de
infra-estrutura básica e os que não pagam IPTU (não inscritos nos cadastros
municipais), podemos pensar em um montante de contribuição através do IPTU,
seja pela inclusão de domicílios no universo de cobrança ou por
uma eventual atualização cadastral dos imóveis já incluídos.
Assumindo a
premissa da existência de forte correlação entre os rendimentos domiciliares e
o valor das propriedades, e aplicando valores médios de IPTU de respectivamente
US$ 30, US$ 50 e US$ 80 anuais de contribuição para
cada uma das três faixas consideradas, chegamos a um valor da ordem de US$ 534
milhões de potencial anual de arrecadação.
Essas
estimativas, apesar de altamente superficiais, são úteis para dar uma medida do
problema em mãos. Fica claro, assim, que essa imensa carência dificilmente
poderá ser resolvida através da simples recuperação de mais-valias fundiárias
dos imóveis atingidos. Ademais, há que se reconhecer que essa é apenas uma
parte do problema, que envolve, certamente, uma alteração profunda nos
processos de urbanização que originam esses assentamentos incompletos, e que
sem uma política fundiária incisiva, só tendem a ampliar o volume de domicílios
carentes de infra-estrutura urbana básica.
Para que a
recuperação de mais-valias fundiárias possa assumir um papel decisivo no
financiamento de infra-estrutura urbana, portanto, é necessário articular uma
série de modalidades de distribuição e redistribuição das rendas fundiárias
originadas na dinâmica urbana, envolvendo a mobilização, a recuperação e a
gestão dos recursos provindos da valorização da terra no processo de urbanização.
3.2 Elementos de Análise das
Modalidades de Recuperação de Mais-Valias Fundiárias na experiência
Latino-Americana
Esta seção se debruça sobre
as modalidades de distribuição e redistribuição de rendas fundiárias, a partir
dos dados da experiência latino-americana. Sem a pretensão de uma classificação
exaustiva, busca-se analisar as principais modalidades, ou formatos, de gestão
da valorização da terra urbana em termos de sua mecânica administrativa,
potencial financeiro e condições de eficácia, segundo os
seguintes critérios:
-
o evento em que a
mais-valia fundiária se manifesta e é apropriada;
- o tipo de caixa, ou trâmite
administrativo, ao qual o recurso correspondente está associado;
- a sua aplicação.
De acordo com
estes critérios, propomos abaixo oito formatos básicos de gestão de valorização
da terra urbana.
Formato de gestão (1) - IPTU
- Formato
mais geral. Ênfase na execução de obras públicas com recursos do orçamento
geral e/ou capital de empréstimo. Embora não concebido nem gerido como
instrumento de recuperação de mais-valias fundiárias, o Imposto Predial e
Territorial Urbano contém, explícita ou implicitamente, uma parcela correspondente à valorização do solo.
Recolhido ao Orçamento Geral, o IPTU tem sua aplicação balizada pelo
princípio constitucional da não-vinculação de recursos. Nada impede, por
outro lado, que para fins de desenho de política urbana o município
destine o equivalente a uma parcela do IPTU (por exemplo, aquela que
corresponda à tributação da propriedade do solo nos bairros de mais alta
renda, e/ou aquela que resulte da cobrança do próprio IPTU em comunidades
beneficiadas por programas de urbanização e regularização) a programas de
urbanização social.
Formato de gestão (2) – Solo Criado
- Forma
de recuperação sistêmica de mais-valias fundiárias geradas nas regiões
mais valorizadas, ou naquelas com maior potencial de valorização. Hoje
prevista no Estatuto da Cidade e disponível para os Planos Diretores de
todas as grandes cidades brasileiras na forma da Outorga Onerosa do
Direito de Construir. Complementa gastos em políticas de longo prazo de
urbanização social em grandes cidades. Os recursos são recolhidos ao Fundo
Municipal de Desenvolvimento Urbano, de aplicação vinculada a projetos de
urbanização social. Trata-se da única modalidade explicitamente vinculada
a uma transferência sócio-espacial de rendas fundiárias.
Outra forma clássica de
recuperação mais-valias fundiárias como contrapartida ao exercício de direitos
urbanísticos é a imposição, estabelecida na lei federal de parcelamento do
solo, da transferência ao município e concessionárias públicas de arruamentos,
lotes destinados a equipamentos públicos, áreas verdes e redes de
infra-estrutura básica. No âmbito das Áreas de Especial Interesse Social,
também previstas no Estatuto da Cidade, o manejo e/ou a flexibilização deste
instituto pode ser extremamente eficaz para o desenho de programas e projetos
de regularização de loteamentos e, sobretudo, de oferta de lotes urbanizados.
As legislações urbanísticas
locais prevêem muitas outras formas de contrapartida aos direitos de construir,
ditadas ora pela tradição local, ora pela existência de planos especiais, como
é o caso, por exemplo, de obrigações de construção e doação de escolas e outros
equipamentos públicos e transferência de servidões de recuo para alargamento de
vias. De caráter específico e não monetário, essas contrapartidas não são
relevantes ao financiamento de grandes projetos de infra-estrutura urbana.
Formato de gestão (3) – Contribuição de
Melhoria
- Ênfase
na internalização (parcial) dos benefícios do projeto. Usada para
complementar recursos do orçamento na execução de obras emergenciais que
resultem em valorização fundiária. Os recursos são destinados unicamente
ao ressarcimento dos custos das obras. Mais eficaz em projetos
intra-urbanos e periféricos em cidades pequenas e médias, com poucos
recursos fiscais e menor nível de desigualdade social.
Outros mecanismos similares, como a pavimentação participativa ou
contribuições a melhoramentos públicos, são por vezes acionados pelos
municípios, de modo a escapar às regras rígidas desse tributo e suas normas
federais.
Formato de gestão (4) – Contribuição por
Benefício Geral
- Ênfase
na internalização (parcial) sistemática dos benefícios dos projetos
urbanos. Recupera parte dos gastos com a execução de um conjunto
pré-determinado de obras públicas intra-urbanas. O caso mais conhecido de
utilização deste formato é o de Bogotá, Colômbia. Os custos são
distribuídos de forma progressiva, de acordo com a classificação do imóvel
segundo estratos de valor.
Nas grandes cidades, parte dos recursos poderia estar destinada ao Fundo
Municipal de Desenvolvimento Urbano, ou mesmo ao Orçamento Geral. Seu
recolhimento poderia, por razões de eficiência econômica, estar ligado à gestão
do próprio IPTU, via atualização da planta de valores com foco nas obras de
infra-estrutura e melhorias urbanas.
Formato de gestão (5) – Revenda Pública de
Lotes Valorizados
- Ênfase
no projeto, com internalização dos benefícios fundiários. Para melhor
eficácia e controle, a gestão do solo deve integrar o desenho gerencial do
projeto. Indicado para todo projeto que necessita desapropriações. A
localização central de infra-estruturas e equipamentos como metrôs e
avenidas comerciais potencia a recuperação de mais-valias fundiárias mediante a revenda
dos lotes valorizados pela implantação do sistema, podendo ser combinada
com contribuições sobre a valorização e impostos sobre a propriedade,
assim como mediante mudança de legislação para densificação do entorno. Em
loteamentos periféricos de baixa-renda, o benefício resultante da
desapropriação com base em valores de solo rural ou não-urbanizado pode
ser usado como amortização de custos do Orçamento ou do Fundo de
Desenvolvimento Urbano, ou usado como subsídio às famílias.
Formato de gestão (6) – Operação Urbana
- Ênfase
na captura in loco de economias
resultantes de maior e/ou melhor aproveitamento, via Transferência de
Potencial Construtivo e Operações Urbanas Consorciadas, ambos previstos no
Estatuto da Cidade. Eficaz na execução de projetos e planos urbanísticos
locais, mediante a aquisição de imóveis para fins de preservação e tutela
ou áreas verdes, o redesenho de vias, a instalação de novos equipamentos
públicos, infra-estruturas, etc. Os direitos de construir podem ser
comercializados através da emissão de papéis.
Uma aplicação potencialmente eficaz da Transferência de Potencial
Construtivo em regiões onde existe mercado imobiliário é a venda do potencial
construtivo dos terrenos desapropriados pela municipalidade para a realização
de obras ou instalação de serviços públicos à escala local, ou seja,
administrável pelo gestor urbanístico local (escolas, parques, melhoramentos na
rede viária, etc). A consagração da Transferência de Potencial Construtivo no
Estatuto da Cidade sugere que os planos urbanísticos locais devem prever regras
para o instrumento, tais como a definição de áreas de destino de potencial
construtivo oriundo de terrenos sujeitos à desapropriação para funções
públicas.
No caso da aprovação de Operações Urbanas Consorciadas, o Estatuto da Cidade
faculta a previsão da emissão de Certificados de Potencial Adicional de
Construção (CEPACs) pelo município, o qual definirá uma quantidade determinada
de CEPACs, a serem alienados em leilões públicos ou utilizados diretamente para
o pagamento das obras necessárias à própria operação urbanística. Os CEPACs,
regulamentados em 2003 pelo Colegiado da CVM (Comissão de Valores Mobiliários),
são títulos negociados livremente no mercado, sendo os recursos depositados em
conta vinculada à operação correspondente, na Caixa Econômica Federal. A
Operação pode ser dividida em setores, para os quais é elaborada uma tabela de
equivalência de metros quadrados adicionais de construção ou relativos a
modificações de usos e parâmetros urbanísticos. Exemplos de negociação de
CEPACs encontram-se no desenvolvimento das Operações Urbanas Faria Lima e Água
Espraiada, ambas na Cidade de São Paulo.
Formato de gestão (7) – Grandes Projetos
Urbanos
- Ênfase
na otimização do uso de terras públicas, ou do subsídio em projetos de
habitação popular. Participação pública nas rendas e/ou lucros oriundos do
projeto. O caso da concessão onerosa, mediante leilão público, de terrenos
à beira do Lago Paranoá em Brasília para a exploração privada como áreas
de lazer e turismo ilustra a utilização da modalidade. Formato comum a grandes projetos
urbanos, tanto de revitalização de centros urbanos, com a utilização de
terrenos disponíveis, como de urbanização social.
Formato de gestão (8) – Consórcio
Imobiliário Urbano
- Ênfase
na viabilização de projetos em áreas em que a urbanização seja de
interesse público. Presente no Estatuto da Cidade através do instrumento
do Consórcio Imobiliário, associado a áreas de parcelamento ou utilização
compulsórias, o formato pode estender-se a qualquer situação em que seja
recomendada a utilização de terrenos e não exista a capacidade financeira
por parte do(s) proprietário(s) para desenvolver o projeto. Pode envolver
o re-parcelamento de áreas. Após a remuneração ao(s) proprietário(s)
através de unidades imobiliárias de valor correspondente ao valor do
imóvel antes do início das obras, as rendas obtidas podem ser utilizadas
para o financiamento dos gastos públicos realizados, e em parte reverter a
outros fins internos ao projeto (áreas verdes, equipamentos públicos,
lotes urbanizados subsidiados) ou mesmo podem ser transferidas ao Fundo
Municipal de Desenvolvimento Urbano ou outro destino pré-definido pela
municipalidade.
Considerações
adicionais
Em uma primeira
classificação, os formatos acima podem ser agrupados segundo os tipos ou
parcelas de mais-valias fundiárias enfocadas e os modos utilizados para a sua
mobilização, gestão ou recuperação. Teríamos então os seguintes grupos:
- Formatos 1 (IPTU) e 2
(Solo Criado) – Históricos / Sistêmicos
- Formatos 3 (CM) e 4
(CBG) – Atuais / Pontuais
- Formatos 5 (GOP) e 6
(OUC) – Projetuais / Futuros
- Formatos 7 (GPU) e 8
(CIU) – Estratégicos / Antecipados
Os formatos básicos acima
muitas vezes aparecem associados na prática, seja porque boa parte dos recursos
do orçamento são aplicados em “projetos”, seja porque quase todo projeto
auto-financiado por mais-valias fundiárias só o é em parte, recorrendo a
diversas formas de financiamento e subsídio cobertos pelo orçamento.
Esses formatos básicos de
mobilização e aplicação de mais-valias fundiárias oferecem uma espécie de
gradiente quanto ao cumprimento de objetivos específicos em termos de políticas
públicas: vários formatos estão associados à internalização das mais-valias
fundiárias nos próprios projetos, o que favorece a obtenção de efeitos locais e
de curto-médio prazo, mas tendem à manutenção do status quo em termos de distribuição de renda; ao passo que sua
aplicação via orçamento favorece a transferência sócio-espacial da renda, que,
no entanto, só pode se manifestar no longo prazo e é muito mais difícil de
controlar.
Vale observar também que
esses modelos só são “comutáveis” até certo ponto. O ingresso das apropriações
diretas para projeto no orçamento só é factível (e indispensável) do ponto de
vista contábil. Por outro, lado, recursos apropriados no âmbito de um projeto
que caiam no orçamento geral tendem a receber outras destinações. Nisso reside
a diferença ao mesmo tempo sutil e abismal entre o IPTU e a Contribuição de
Melhoria. Recursos que ingressam diretamente no FMDU têm destinações vinculadas a programas sociais, mas
nunca a tal ou qual gasto ou projeto.
As modalidades sistêmicas
de captura como o IPTU e a Outorga Onerosa do Direito de Construir dizem
respeito a mais-valias históricas.
Modalidades como a Contribuição de Melhoria e a Revenda de Lotes atuam sobre as
mais-valias fundiárias atuais (recuperação a curto-prazo) e futuras
(antecipação). A recuperação de rendas com finalidades imediatas tende a ser
mais eficaz, porque de mais fácil contabilização e controle. O problema é que
ela não incide sobre a distribuição espacial dos benefícios da urbanização, a
menos que combinada com medidas compensatórias e includentes aplicadas “in
loco”.
Políticas de recuperação de mais-valias fundiárias com finalidades de regulação urbanística, como a
Outorga Onerosa do Direito de Construir, hão de ter pouca relevância do ponto
de vista da arrecadação. Essa é a principal fragilidade dos Fundos Municipais
de Desenvolvimento Urbano como fonte de recursos para a urbanização social.
Somente uma combinação de formas de recuperação de mais-valias fundiárias
poderá dar a tais Fundos uma dimensão compatível com seu objetivo.
Cabe ainda a pergunta se
seria eficaz a monetarização de todas as modalidades de mais-valias fundiárias
recuperadas pelas municipalidades e seu recolhimento ao Orçamento Geral ou a um
fundo único. A resposta provável é negativa, uma vez que a eficácia de
aplicação é muitas vezes inseparável do processo através do qual ela é
capturada. Mais-valias fundiárias recuperadas em situações locais podem não ser
relevantes para o orçamento municipal, mas ser eficazmente convertidas em bens
públicos locais.
Capítulo 4
Questões Acerca do Mercado de Terras
Urbanas no Brasil
4.1 Características Essenciais
O papel da terra e da
propriedade imobiliária
O contexto no qual o tema
da recuperação de mais-valias fundiárias está compreendido, na América Latina,
tem como elemento preponderante o papel da propriedade na formação e no
desenvolvimento sócio-econômico e cultural das sociedades da região. A defesa
reiterada do direito de propriedade, cuja origem remete ao caráter
patrimonialista histórico das classes hegemônicas, ultrapassa, no entanto, os
limites das classes mais abastadas, estendendo-se a todos os setores sociais, e
permanece em geral com poucas alterações substantivas.
Uma das formas de abordar a
importância do direito de propriedade na região é a partir do reconhecimento de
sua consolidação legal e institucional. Embora o amadurecimento do processo de
urbanização tenha tendido a impulsionar alterações no papel da propriedade
imobiliária urbana, como no caso das novas constituições promulgadas no Brasil
(1988) e na Colômbia (1991), essa tendência pode ser contra-arrestada pelos
princípios do neoliberalismo, com forte penetração em diversos países da
região. Em alguns países, inclusive, isto pode vir a se consolidar em
modificações constitucionais ou nos Códigos Civis, com a ampliação das
garantias à propriedade privada, como ocorreu no Chile em 1980, na Argentina em
1994 e no Peru em 1995 (Smolka e Furtado, 2001).
Para uma compreensão mais
ampla dessa permanência, ou do significado da propriedade para o conjunto da
sociedade, é conveniente situá-la em ambientes históricos marcadamente
instáveis, seja no campo econômico como no sócio-político. Esse contexto é
bastante familiar ao caso latino-americano, e nele a propriedade imóvel
funciona como esteio para diferentes grupos sociais.
De fato, a terra, base material
da propriedade imóvel, é a melhor, senão a única, alternativa amplamente
reconhecida na região como capaz de resistir às fortes turbulências econômicas,
e a fatores perturbadores como a inflação. A fragilidade dos mercados de
capitais na região é flagrante e sujeita às incertezas da política econômica.
Além disso, sendo garantida como princípio da ordem econômico-social, a
propriedade imóvel é também considerada como relativamente imune a oscilações
de ordem política. Ademais, é a única que pode oferecer a qualquer indivíduo
uma segurança que compense a ausência de suficientes garantias de seguridade
social. Assim, tanto a forma de “investimento” como de poupança preferidos
pelas famílias na região ainda é a propriedade imóvel.
Mas, além das qualidades da
terra em relação à sua estabilidade como bem econômico, as possibilidades de
valorização desse bem, como conseqüência do processo de urbanização, são também
amplamente disseminadas, sendo esperada e desejada por todos. E por estar perfeitamente absorvido
culturalmente, o acesso de cada proprietário à valorização de seu imóvel é
compreendido de modo geral como uma extensão do direito de propriedade, em
lugar de ser motivo de censura ou entendido como ganho imerecido. Mais que
isso, o proprietário urbano em geral se sente no “direito” à valorização de sua propriedade, impondo a responsabilidade desse
processo ao poder público. Ou seja, ele usualmente tem a expectativa de que a
valorização ocorra e, se ela não ocorre, é comum imputar à má administração
pública da cidade o seu prejuízo. Neste contexto, as mais-valias fundiárias são
tidas como uma conseqüência “natural” da propriedade, e da mesma forma é
entendida a apropriação privada dessas rendas urbanas.
Fica claro, então, pelo
entendimento existente sobre o “direito” à valorização imóvel, que o argumento
ético que genericamente sustentaria a implementação de instrumentos de
recuperação de mais-valias fundiárias, de que cada um deve ser recompensado apenas pelo seu próprio esforço (Brown
e Smolka, 1997), longe de estar consolidado na América Latina, parece carecer
de maior sentido ou reconhecimento social na região.
Tributação à propriedade
Na
vasta e já tradicional literatura sobre sistemas
de tributação à propriedade imobiliária nos países em desenvolvimento em geral
e na América Latina em particular,
é amplo o consenso de que os impostos sobre a propriedade – e em especial o
imposto predial, referência básica nesses estudos - são muito baixos. A
arrecadação com esse tributo, quando comparada com a experiência dos países
desenvolvidos, sobretudo aquela do continente norte-americano, é considerada
baixa em vários sentidos. Em primeiro lugar, ao nível municipal, pela proporção
do imposto predial na arrecadação com tributos locais. Em segundo lugar, à
escala nacional, como porcentagem do PIB. E em terceiro lugar, com relação às
baixas alíquotas aplicadas.
Sob uma perspectiva
adicional, o imposto predial é considerado baixo em relação ao rápido processo
de urbanização da região, na medida em que se podia esperar que o crescimento
urbano fosse acompanhado por uma ampliação da arrecadação com esses impostos.
Além de uma reduzida base
de arrecadação, decorrente, sobretudo, do baixo valor cadastral das
propriedades, os sistemas de arrecadação do imposto predial operam com baixos
níveis de eficácia na região, registrando-se altos percentuais de inadimplência
e evasão. Por fim, o elevado custo político imputado ao imposto sobre a
propriedade urbana acaba por se sobrepor às suas vantagens econômicas, a tal
ponto que as autoridades locais responsáveis pela arrecadação muitas vezes não
demonstram interesse em aprimorá-la, optando pelo endividamento ou contando com
as transferências inter-governamentais.
A inclusão, nos estatutos
legais ou nos preceitos constitucionais da maioria dos países
latino-americanos, da manutenção de um nível básico de bem-estar para o
conjunto da população, que se traduz na obrigação pública da provisão de
serviços locais, torna ainda mais difícil implementar a tributação de forma
adequada. Pelo lado da população, não há o reconhecimento de uma relação entre
os gastos públicos com o ambiente construído urbano e o sistema impositivo
imobiliário. Dada a tradicional expectativa da responsabilidade do governo
nacional pelos itens da urbanização, é frágil o compromisso público com a ação
governamental local. A debilidade coercitiva do poder público amplia as margens
de sonegação ou facilita o adiamento do pagamento dos impostos. Tais práticas,
por parte dos contribuintes, são facilitadas pelas baixas multas aplicadas, e
pela recorrência de políticas de anistia fiscal que ocorrem sobretudo em épocas
eleitorais.
A contra-face dessa
fragilidade na cobrança de impostos imobiliários é a famosa especulação
fundiária, sobretudo na forma da retenção de terrenos vazios à espera da
infra-estrutura pública gratuita e correspondente valorização.
Uma importante parcela dos recursos locais nos países latino-americanos
provém de transferências dos governos regionais, estaduais e nacionais que, se
por um lado têm um sentido distributivo, por outro acabam por tornar as
administrações locais altamente dependentes desses recursos. Como resultado
mais geral, a arrecadação local na América Latina raramente foi suficiente para
cobrir os gastos correntes da administração, e menos ainda o custo das
infra-estruturas urbanas, sejam elas básicas ou de suporte ao desenvolvimento.
Como mostrou Guarda (1989), a provisão de serviços públicos foi
sistematicamente financiada através de outras fontes.
Na década de oitenta, a
combinação de um quadro geral de recessão das economias nacionais com os
esforços de descentralização experimentados em todo o continente impulsionou, na
maioria dos países latino-americano, iniciativas de reforma do sistema de
administração e cobrança do imposto predial. Entretanto, a concentração dessas
reformas do imposto sobre a propriedade em uma combinação de atividades legais
e administrativas, não levou em geral a resultados importantes ou sustentáveis.
Em paralelo a essas
iniciativas, toma corpo uma linha de estudos voltados para a viabilização da
Contribuição de Melhoria como fonte de recursos para o financiamento de
infra-estrutura urbana local nos países latino-americanos, tendo como base a
existência do instrumento ou de procedimentos similares na legislação da
maioria dos países, e seu desenho relativamente uniforme. Sendo o argumento
ético de pouca penetração na região, a existência e implementação desses
tributos específicos é sustentado pelo argumento da sua racionalidade econômica.
Na avaliação
de Macon e Mañon (1977), “o fato de que o pagamento da contribuição esteja
vinculado a um benefício real e visível aproxima esse sistema a uma forma de
financiamento da economia de mercado, normalmente não obstruída pelas mesmas
desvantagens, como a resistência política, dos impostos.” (p.111). Doebele (1977) também recomendou a sua utilização: “Essas contribuições
têm como objetivo tornar auto-financiável a provisão de serviços urbanos nas
cidades dos países em desenvolvimento, reduzindo a carga do sistema geral
municipal de tributação. Diminuindo esses constrangimentos financeiros, a
contribuição de melhoria tem o potencial, nessas cidades, de facilitar a
provisão de infra-estrutura urbana em quantidade e ritmo comensuráveis com seu
rápido crescimento.” (p.2)
Apesar dessas
recomendações e dos esforços empreendidos, não se verifica, nos anos seguintes,
a implementação do instrumento de modo mais geral, sendo as experiências
registradas em geral episódicas e localizadas (Smolka e Furtado, 2001). Na
realidade latino-americana, continua a preponderar a avaliação de que as
administrações locais têm uma reduzida arrecadação própria e, com isso, uma
débil autonomia financeira e conseqüentemente política. Assim, é comum os orçamentos municipais apresentarem um déficit sistemático, sendo os serviços
municipais financiados parcialmente através do endividamento e contando com a
provisão de boa parte dos serviços básicos por parte dos governos centrais
(Clichevsky et al., 1990).
A ausência da
esperada racionalidade econômica é então entendida como uma anomalia da
situação latino-americana, formalizada com a seguinte questão: “Por que é tão
difícil financiar infra-estrutura pública que incrementa o valor da terra
servida em muito mais que o custo da infra-estrutura em si?” (Shoup, 1994,
p.236).
Escassez relativa de terra
servida
A
crônica insuficiência de recursos públicos para responder de forma
adequada ao rápido crescimento urbano deve ser, no entanto,
relativizada. Ao considerar o conjunto urbano das cidades observa-se que essa
dificuldade, ainda que generalizada, não impede totalmente a provisão de
infra-estrutura, e que a provisão parcial que ocorre ao longo do tempo não é
direcionada de forma randômica na cidade.
Não é preciso um estudo
aprofundado para perceber que, nas grandes cidades latino-americanas, certas
áreas possuem uma infra-estrutura pública urbana considerável, em muitos casos
comparáveis a qualquer capital de país desenvolvido. Basta olhar um cartão
postal de uma dessas cidades latino-americanas, que certamente estará
retratando o que ela tem “de melhor”. Nessas áreas, não parece ter havido
dificuldades impeditivas para financiar a infra-estrutura pública.
Essa evidência permite
qualificar o argumento de que “a dificuldade de financiar a infra-estrutura
pública urbana impede sua provisão” (Shoup, 1994). Essa dificuldade se
manifesta, na verdade, através da “síndrome do cobertor curto”, em
que as mesmas áreas das cidades são reiteradamente beneficiadas, enquanto
outras permanecem relegadas a sua própria sorte. Ademais, nada garante que se o crédito para investimentos em infra-estrutura
fosse farto, ele seria canalizado para a provisão nas áreas desfavorecidas.
Não sendo aleatória, a
provisão atinge na maioria das vezes as mesmas áreas cumulativamente, ou visa à
expansão dessas áreas das cidades. Como demonstram variados estudos em cidades
latino-americanas desde os anos oitenta,
as áreas beneficiadas são prioritariamente as que satisfazem majoritariamente
as premissas da existência de mercados formais organizados, propriedades
legalmente definidas, a concentração espacial de poder econômico e político, a
população de mais alta renda e os mais altos valores da terra urbana. Por contraste, as áreas que não possuem
infra-estrutura básica concentram os mercados informais de terras, os
loteamentos irregulares e os assentamentos informais, a população de
baixa-renda, as áreas não cadastradas, as áreas de propriedade ambígua, etc.
A questão da valorização
oriunda de investimentos em infra-estrutura, na realidade latino-americana,
passa necessariamente pelo reconhecimento de que as desigualdades
sócio-espaciais existentes nessas cidades dão às áreas urbanas um caráter
dicotômico. Núcleo e periferia, ricos e pobres, formal e informal, legal e ilegal,
zona nobre e zona proletária, arranha-céus e casebres, são diferentes imagens
usadas para caracterizar essa dicotomia.
As áreas com carência de
infra-estrutura são exatamente aquelas onde predominam as populações de menor
rendimento e os assentamentos informais, sujeitas a uma série de condicionantes
para a aplicação de instrumentos tributários; por isso, qualquer proposta de
como provê-las de infra-estrutura urbana deve minimamente reconhecer as
dificuldades existentes, nas diversas formas concretas em que a ocupação dessas
áreas se expressa, tanto espacialmente como socialmente.
4.2 Problemas da Auto-Sustentabilidade na Provisão
de Infra-Estrutura Básica
Esta seção tem como
principal objetivo alinhar argumentos que questionam a idéia da utilização da
Contribuição de Melhoria de forma geral e igual para comunidades ricas formais
e assentamentos pobres informais.
Uma das razões apontadas
por especialistas para a rejeição da aplicação da Contribuição de Melhoria é a
sua cobrança quando o projeto é executado, enquanto a valorização em geral só é
realizada pelo proprietário no momento da venda da propriedade. Assim, a
valorização potencial criada pela execução do projeto não ofereceria ao
proprietário a liquidez necessária para o pagamento da contribuição. Este problema pode
ser estendido a todas as situações em que o valor do imóvel não esteja em
consonância com o rendimento anual do seu proprietário. Em síntese, estaríamos
diante da questão conhecida como a da “pobre viúva”, em que o rendimento do proprietário
não é compatível com a sua riqueza em bens imóveis.
O problema da liquidez
atinge sobretudo os proprietários de menores rendimentos e aqueles que não têm
uma renda previsível e confiável, na medida em que, nesses casos, nem mesmo o
mecanismo clássico de financiamento dessas obras, através da emissão de títulos
pelo poder público e o parcelamento da dívida a mais longo prazo, se
apresentaria como uma solução viável.
A solução imediata para o
problema técnico da ausência de liquidez dos proprietários
beneficiados seria o diferimento do pagamento das contribuições, acrescido dos
juros correntes acumulados, para o momento da venda dessas propriedades, como
advogado por Shoup (1994). Entretanto, Smolka (1997)
adverte para a inadequação da solução apresentada para o caso dos assentamentos
informais. De fato, ao considerar que o que falta para que as populações que
vivem nessas áreas carentes tenham acesso aos investimentos em infra-estrutura
de que tanto necessitam é um financiamento adequado, propõe-se uma forma de
financiamento ao qual essas populações, sem as credenciais necessárias, não
terão acesso.
Outro problema reconhecido
como entorpecedor do uso do instrumento é a transferência da obrigatoriedade de
sua utilização, em caso de valorização, para a própria obra pública ao qual
está vinculado, cuja pertinência ou conveniência não é em geral consultada aos
beneficiados. As tentativas de fomentar a sua implementação através da inserção
de mecanismos de adesão ou consulta prévia aos beneficiados oferecem evidências
desse entendimento. Seus resultados, entretanto, não são exatamente os
esperados, uma vez que em geral são as comunidades mais bem-dotadas de
infra-estrutura e serviços as que sistematicamente rejeitam o uso da
contribuição de melhoria, enquanto as comunidades carentes anseiam por receber
os benefícios da urbanização.
Há que se reconhecer que
ainda que os supostos beneficiários estejam em posição de aceitar ou rejeitar
determinada obra, permanece indefinida
a forma de seleção das comunidades a serem priorizadas, e os projetos urbanos
seguem concentrados nas áreas mais bem dotadas.
Ocorre que há nesse argumento uma inversão. Na verdade, esse tributo tem
em sua essência o financiamento de uma obra de interesse da coletividade, e não
somente das comunidades atendidas, sendo estas as que devem pagar pelos custos
da obra em razão do benefício especial recebido.
Se pudéssemos vislumbrar em qualquer dos países da América
Latina uma contribuição de melhoria de tal modo que toda a população de
baixa-renda fosse incluída nos projetos financiados através da utilização deste
instrumento, com a garantia de mecanismos de proteção para que só pagassem na
medida de sua liquidez e quando efetivamente tivessem recebido “benefícios
especiais”, ou seja, benefícios com os quais a população de maior renda não
tenha sido contemplada (na maioria das vezes, gratuitamente), com certeza
muitas dos problemas encontrados no uso do instrumento não aconteceriam, porém
permaneceria a questão de como financiar a infra-estrutura nessas áreas.
O argumento da equidade
“inter-generacional”, que nas cidades norte-americanas impulsiona a cobrança de
exações aos novos empreendimentos periféricos de alta-renda (Altshuler e Gómez
Ibáñez, 1993), assume nas cidades da América Latina a conotação inversa: na
urbanização latino-americana, os mais ricos não tiveram que pagar por essa
provisão, de maneira que se torna questionável impor essa carga aos mais
pobres.
Historicamente, predominou
a opção pela (lenta) distribuição de infra-estrutura pública, de forma
subsidiada pelo Estado, e com a posterior cobrança de taxas pela prestação dos
serviços correspondentes pelas concessionárias de serviços públicos. Tendo sido
essa a forma tradicional de atuação do Estado na provisão de infra-estrutura
para o conjunto da cidade, essa provisão subsidiada, em geral gratuita, sempre
beneficiou a população de maior renda instalada nas áreas centrais.
Outro elemento a ser
considerado, na opção pela utilização de um instrumento que objetiva a
recuperação de custos, seja para as novas áreas formais como para as áreas
informais existentes, é o de que de modo geral é maior o custo relativo, quando
não o absoluto, de prover de infra-estrutura básica as áreas já ocupadas.
Assim, as populações que ocupam esses assentamentos podem terminar pagando mais
do que as demais pelo mesmo benefício. Ora, é preciso lembrar que aqueles que
se dirigem a essas áreas, seja em processos de invasão ou pela forma mais
generalizada na América Latina que é a da aquisição no mercado informal de um
lote produzido sem atender às normas urbanísticas, o fazem porque não podem
ascender ao mercado formal, seja pela ausência de acesso ao crédito como pela
insuficiência de rendimentos.
À parte o já descrito papel
da propriedade em geral como um mecanismo tradicional de apropriação de
mais-valias, e que é extensivo, no caso dos mais pobres, a qualquer moradia com
uma certa segurança da posse e, até, em última instância, a simplesmente um
teto, a habitação pode ter um papel importante na complementação de uma renda
familiar mínima, seja mediante o aluguel de uma parte a terceiros, ou através
de construção adicional para acomodar famílias ampliadas, mecanismos que podem
ocorrer de maneira mais permanente ou podem ser acionados em momentos de necessidade,
como já bem ilustrado em diversos estudos sobre o tema. Poderia ser argumentado
que esse seria um motivo adicional para que essas famílias comprometessem parte
de seus rendimentos para pagar pela infra-estrutura urbana, mas ocorre que se a
provisão está vinculada à regularização dessas moradias, como é o caso muitas
vezes, esses mecanismos informais de complementação de renda podem se tornar
mais difíceis de viabilizar.
Desta forma, embora não
paguem necessariamente menos do que poderia custar um lote formal com
infra-estrutura básica,
o fato é que a infra-estrutura básica não entra como componente direto do preço
de aquisição desses lotes. Nessa realidade, há que se considerar que a solução
do uso da contribuição de melhoria como instrumento para permitir a instalação
de infra-estrutura pública nessas áreas, ainda que diferida para o momento da
venda, restringe a captura do benefício pelas famílias correspondentes. Essas
famílias, sem essa capitalização no caso em que vendam suas moradias, poderão
não ter os meios necessários para adquirir um lote no mercado formal em outro
lugar. Como conseqüência, o instrumento pode tornar-se um mecanismo de
reprodução da informalidade, além de impor restrições à mobilidade residencial
(Smolka, 1997).
Por outro lado, é preciso salientar que o
argumento fácil da isenção dessas populações, como forma de tornar a
contribuição de melhoria redistributiva, não só não resolve o problema em mãos,
como colabora para a sua permanência e até intensificação.
Regularização de Assentamentos
Informais, Produção de Terra Urbanizada e Recuperação de Custos
5.1 A Experiência Brasileira Recente
Já é considerável a
experiência brasileira de urbanização de assentamentos informais, produto de
uma profunda inflexão na política habitacional brasileira operada no início da
década de 1980, quando o Estado reconhece a favela como solução habitacional
legítima ao alcance dos pobres. Poucos avanços, no entanto, se têm registrado
na luta contra a persistente reprodução
da moradia precária e informal e contra o permanente aumento de populações sem acesso à terra
urbanizada, e as dificuldades são recorrentes nos programas de titularidade e
na questão da recuperação de custos.
A evolução recente dos assentamentos informais
De 1940 a 1970, a formação
de favelas nas grandes cidades resulta de intensos fluxos migratórios
campo-cidade. Entre 1960 e 1980, porém, o auge da política de remoções para
conjuntos habitacionais das periferias urbanas determina um decréscimo absoluto
da população residente em favelas. A partir década de 1980, reduz-se
sensivelmente a migração externa e aumenta proporcionalmente a migração interna
causada pela pobreza urbana, o desemprego crônico e a precariedade das relações
de trabalho. No Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, a população residente em
favelas passa a crescer a taxas superiores à população municipal.
A urbanização de
assentamentos informais passou a predominar nas políticas públicas como
resultado das lutas sociais que culminaram na Constituição de 1988. A política
de remoções forçadas é substituída pelo reconhecimento do direito do favelado a
permanecer em sua posse e conservar o capital investido na auto-construção de
suas casas. Independentemente de suas conseqüências de longo prazo sobre os
preços da terra urbana (perpetuação do ciclo da pobreza), a política de
urbanização de assentamentos precários e informais resulta de uma vitória das
populações excluídas sobre a política de remoções (Faria, 2004). Diante da
constatação de que a casa auto-construída sai pela metade do preço da casa
oferecida pelo governo, o Estado passa a adotar a estratégia, supostamente mais
barata, de deixar ocupar para depois regularizar, sem atender no entanto às
causas da irregularidade. No processo, o Estado se retira totalmente da
provisão da habitação popular.
Uma das conseqüências mais
visíveis dessa mudança é a consolidação das favelas nas últimas décadas do
século XX, muitas com casas de alvenaria providas de água corrente, instalação
sanitária domiciliar e energia elétrica. As favelas existentes se expandem, se
adensam e até se verticalizam. Com a segurança da posse, consolida-se o mercado
informal nas favelas mais antigas e aquece-se o mercado imobiliário nas mais
distantes do centro. A transformação do estoque de moradias precárias em
permanentes torna-se fator de atração para segmentos de renda média que desejam
adquirir casa própria mas não têm acesso ao mercado formal. O acesso às favelas
passa a se dar exclusivamente por meio da compra ou aluguel. Elevam-se
substancialmente os preços cobrados no mercado informal das favelas (Abramo,
2003).
Por outro lado, dá-se o
surgimento das pequenas favelas periféricas resultantes de invasões
organizadas: assentamentos de extrema pobreza, com renda per capita de meio salário mínimo (Faria, 2004). Acelera-se também
a auto-construção em loteamentos populares e dissemina-se a ocupação de logradouros públicos. Numa palavra,
estratificam-se a própria pobreza e o mercado informal. Surge a diferenciação
entre favelado e morador da periferia. O surgimento do loteador clandestino
leva ao virtual desaparecimento, na década de 1990, da aquisição informal da
terra a custo zero.
Observações sobre os programas de urbanização e
regularização
Um recente estudo de
avaliação da experiência brasileira de urbanização de favelas e regularização
fundiária realizado pelo IBAM (Larangeira, 2004) em dez cidades apurou a
seguinte matriz de fontes de financiamento:
- 38,9% recursos
próprios, incluídos os Fundos Municipais de Habitação
- 6,3% repasses do OGU,
incluídos recursos do programa Habitar Brasil-BID
- 5,4% empréstimos do
FGTS e FAT
- 46,8% empréstimos
externos, aí incluídos os empréstimos do BID para o Rio de Janeiro
- 1,2% repasses de
agências bilaterais e multilaterais
Levando-se em conta que os
recursos destinados pelo governo federal somam no máximo 6,3% do total de
recursos mobilizados, e considerando por outro lado que os 46,8% de recursos
externos incluem o empréstimo do BID ao município do Rio de Janeiro, esses
dados parecem indicar que o déficit habitacional e de infra-estrutura no Brasil
é hoje um assunto quase exclusivamente da alçada municipal. Do total de
recursos, 54,1% são empréstimos externos e nada menos que 85,7% estão a cargo
dos orçamentos municipais – exercício fiscal, fundos e débitos externos.
Se isto significa, por um
lado, que o país está longe de assumir plena responsabilidade por suas
condições de desenvolvimento econômico e social, por outro mostra também que os
municípios devem redobrar seus esforços para tornar mais eficazes e equânimes
tanto os seus sistemas de arrecadação quanto as suas estratégias de gastos em
urbanização social.
Longe de questionar os
resultados práticos positivos alcançados pelas políticas eminentemente
corretivas aplicadas nos últimos anos – urbanização de favelas e regularização
de loteamentos, cabe, no entanto, reconhecer que a prioridade que lhes tem sido
conferida no âmbito das políticas públicas não contribui para impedir, e nem
mesmo frear, a reprodução do círculo vicioso da moradia precária e da pobreza.
Quanto maior a expectativa de urbanização e regularização de assentamentos
informais, maior a pressão exercida pela população pobre sobre o estoque de
terras públicas e privadas sujeitas a invasão e, sobretudo, maior o preço
cobrado pelos loteadores pela terra sem infra-estrutura nos loteamentos
periféricos (Iracheta e Smolka, 2000).
Dentre as principais
conclusões do citado estudo sobre a experiência recente de regularização de
loteamentos e urbanização de favelas, destacamos:
- a pouca consideração
dada, no desenho dos programas pesquisados, ao tema da recuperação de
custos, problema agravado pela divisão entre a gestão dos programas e de
seus respectivos recursos;
- a não recuperação de
custos de instalação de redes de abastecimento de água e esgotamento
sanitário executadas pelos municípios, que as transferem gratuitamente às
concessionárias;
- a pouca expressividade
dos resultados alcançados e a pouca valorização atribuída pelas famílias à
regularização fundiária;
- a prática comum de flexibilização
da legislação urbanística por meio da delimitação de Áreas de Especial
Interesse Social.
Apesar da enorme complexidade do problema, evidenciada por décadas de
estudos sistemáticos e experiências práticas pioneiras, é imperioso admitir que
a população de menor renda continua sendo empurrada para as ocupações informais
e ilegais antes de tudo por seus baixos rendimentos, insuficientes para aceder
ao mercado formal de moradia e terra infra-estruturada. Na virada no século, a
precarização das relações de trabalho vem se somar aos graves problemas gerados
pelo aumento da pobreza urbana e pela produção cronicamente insuficiente de
habitações de interesse social e, principalmente, de terra servida.
O problema crítico da oferta insuficiente de terra servida tem sido
pouco ou nada enfocado tanto pelo mercado formal brasileiro – refugiado na
“zona de conforto” que lhe proporciona o amplo atendimento da demanda dos
pobres pelo mercado ilegal – quanto pelos governos, que por alegadas razões de
custo, mas também de pragmatismo administrativo, vêm dando nítida prioridade a
programas de regularização de loteamentos irregulares e, principalmente, de
urbanização de favelas.
A produção de lotes urbanizados no Brasil :
um tema ainda pendente
O mercado de terras
das cidades brasileiras não oferece alternativas para o segmento da população
de baixa-renda. O PROFILURB - Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados –
criado em 1975 pelo extinto Banco Nacional da Habitação, destinava-se ao
atendimento das famílias mais pobres. O programa consistia das seguintes fases:
(1) Urbanização da área, preparo dos lotes, construção das unidades
sanitárias e ligações domiciliares; entrega dos lotes aos moradores;
(2) ocupação do lote
pelas famílias; construção de moradia provisória no fundo do lote;
(3) construção da moradia definitiva, com financiamento complementar para
aquisição de material de construção via FICAM ;
(4) mudança da família para a nova moradia; demolição da habitação
provisória.
Apesar de sua aparente
simplicidade, dificuldades de naturezas diversas limitaram os resultados do
programa. Mesmo com o aumento significativo do número de contratos a partir de
uma reformulação realizada em 1978, os resultados do programa podem ser
considerados pouco expressivos em termos tanto do déficit habitacional como do
impacto sobre o preço da terra urbana.
Em 1980, o Banco
Mundial assinou com o BNH o primeiro contrato para apoiar a produção
habitacional para as famílias de baixa-renda. Entre outros itens, o contrato
previa financiar 41.800 lotes urbanizados, 19.500 unidades habitacionais do
tipo ‘embrião’ e concluídas, além de 23.200 cartas de crédito para compra de
materiais de construção. Na época, estimou-se que 91% das famílias
beneficiárias do programa teriam renda abaixo de três salários mínimos
regionais. Mas os resultados obtidos foram inexpressivos: apenas metade de
produção de lotes urbanizados e cerca de 10% dos financiamentos de material de
construção previstos através do FICAM.
A partir da década de
80, a urbanização de favelas e a regularização de loteamentos irregulares
passam a ocupar o centro da política habitacional brasileira. Em 1985, é
extinto o Banco Nacional da Habitação. Os programas de financiamento
habitacional com recursos do FGTS hoje disponíveis na esfera federal não têm
privilegiado a produção de lotes urbanizados. O programa Carta de Crédito
Associativo é o único que prevê a sua produção, com crédito unitário limitado a
R$ 8.000,00. Não há informações sobre a concessão de financiamento para esta
modalidade. Dados da Caixa Econômica Federal revelam que somente cerca de 1%
dos financiamentos do Programa Carta de Crédito Individual foram direcionados
para a aquisição de lotes urbanizados em 2002. Isso significa que pouco menos
de dois mil lotes foram adquiridos em todo o Brasil, naquele ano, com recursos
do FGTS.
Recuperação de custos em programas de urbanização
social
Tradicionalmente, o tema da
recuperação de custos diz respeito, fundamentalmente, à relação entre o Estado,
que arca com os custos dos programas de infra-estrutura básica, e a população
beneficiária. A privatização dos
serviços públicos trouxe a esta relação um terceiro elemento ainda pouco ou
nada considerado no que respeita à cobertura de custos dos programas.
No Brasil, somente em
alguns casos, em especial na região Sul, o retorno dos investimentos em
programas de urbanização é previsto, independentemente da fonte de recursos
(Cherkezian, 2004). Em geral, os investimentos em infra-estrutura básica não
são recuperados, quer pela via das contribuições de melhoria, quer pela via dos
impostos sobre a propriedade. Predomina, na maioria dos círculos técnicos, a
idéia de que “em programas sociais como o de urbanização de favelas, não se
deve ter preocupação com o retorno dos investimentos”. A maioria dos
empreendimentos é projetada sem previsão de retorno, ainda que parcial, dos
recursos, oriundos principalmente do Orçamento Geral da União. Ao contrário dos
programas da Caixa Econômica Federal, os programas do Habitar-Brasil/BID, pelo
menos até o momento, não prevêem retorno dos investimentos.
Um estudo comparativo das
legislações de incentivo à produção privada de lotes urbanizados em três
cidades brasileiras (Joinville, SC, Rio de Janeiro, RJ e Porto Alegre, RS) e
uma colombiana (Bogotá)
(Veríssimo, 2004) revela que a recuperação de custos está em geral prevista,
nesse tipo de projeto, na forma de lotes urbanizados ou de contrapartida
pré-acordada. Entretanto, a implementação dos programas correspondentes ainda
encontra-se aquém do necessário para a disseminação dessa idéia.
Finalmente, a recuperação
de custos não se faz nem mesmo pela via usual da cobrança do IPTU nos
assentamentos beneficiados por programas de urbanização. Relatos de
especialistas em regularização de loteamentos indicam que esta política
resultaria contraditória com a aspiração dos adquirentes dos terrenos ao
reconhecimento pleno de sua cidadania. No caso das favelas, as alegadas razões
de eficiência para a não cobrança contribuem para alimentar a opção dos proprietários
ocupantes pela permanência no mercado informal, acarretando prováveis perdas
muito superiores a longo prazo. É de se supor também que as alegadas razões de
eficiência contenham um forte componente político-eleitoral.
As concessionárias e a recuperação dos custos das
infra-estruturas
Na maioria das cidades, a
responsabilidade do investimento em infra-estrutura é parcial ou integralmente
assumida pelos órgãos gestores dos programas, que repassam às concessionárias
as redes instaladas (Larangeira, 2004). Com base nas informações prestadas à
sua pesquisa, Cherkezian (2004) deduz a crença de que “a recuperação dos
investimentos em redes de infra-estrutura deve se dar, automaticamente, por
meio das tarifas a serem cobradas pelas concessionárias”.
Parece haver aqui uma
confusão entre recuperação do investimento
público em infra-estrutura básica e receita da prestação de serviços
básicos. Em geral, as concessionárias recebem por doação o capital fixo
representado pelas redes instaladas e se apropriam integralmente dos resultados
financeiros da operação dos serviços (Larangeira,2004).
Esta concepção parece
indicar a permanência de uma cultura administrativa anterior à reestruturação
produtiva dos anos 1990, quando se supunha que a doação de infra-estruturas a
empresas estatais equivalia a uma doação ao próprio Estado. Esse pressuposto
está implícito na Lei 6766, de 1979, que impõe ao parcelador do solo a
obrigação de prover os loteamentos de espaços públicos e infra-estrutura básica
a ser transferida ao patrimônio público.
No entanto, as concessionárias atuais ou deixaram de ser estatais via
privatização ou são obrigadas pelo ambiente econômico a adotar métodos
gerenciais voltados para o desempenho comercialmente eficiente. Em ambos os
casos, o repasse sem ônus da infra-estrutura constitui, em princípio, uma
transferência líquida de recursos públicos ao capital privado.
Em resumo, nos projetos
governamentais a infra-estrutura é provida gratuitamente tanto à população
diretamente beneficiária, que no caso dos loteamentos da periferia
provavelmente já pagou pelo seu custo ao loteador irregular, quanto às
concessionárias dos serviços, que cobram tarifas pelo uso de instalações que
nada lhe custaram.
Em geral, as
concessionárias não se mostram flexíveis nem interessadas em estender seus
serviços às comunidades faveladas e, via de regra, não se empenham em manter
controles financeiros específicos sobre os serviços conectados aos domicílios
localizados em favelas (Larangeira, 2004).
Algumas notáveis exceções permitem, no entanto, supor que é perfeitamente
possível a plena integração das concessionárias ao esforço de redução e/ou
recuperação de custos em urbanização de assentamentos informais. Em Goiânia e
Porto Alegre as concessionárias desenvolvem os projetos, executam e financiam
as obras e serviços (Cherkezian, 2004). Algumas, como a Companhia Estadual de
Saneamento – COPASA – de Minas Gerais e a Light, concessionária de energia
elétrica da União, hoje privatizada, no Rio de Janeiro, mantêm programas especificamente
desenhados para o atendimento de comunidades informais.
Além de manter um
Departamento de Coordenação de Favelas, a Light desenvolve há mais de duas
décadas o Programa de Eletrificação de Favelas, que reduziu substancialmente as
perdas por ligações clandestinas e ampliou a 90% a taxa de domicílios
conectados na década de 1980, na perspectiva da universalização dos serviços
(Larangeira, 2004).
Regularização fundiária
O estudo do IBAM avalia que
os resultados alcançados em termos de regularização fundiária nas dez cidades
pesquisadas são modestos, destacando-se Belo Horizonte e Teresina. No Rio de
Janeiro, apenas 10 por cento dos assentamentos incluídos na primeira etapa do
programa Favela-Bairro lograram completar os processos de emissão de títulos de
propriedade.
O estudo destaca o pouco
interesse na titulação por parte das populações beneficiadas com programas
urbanização. Mantém-se, em geral, a preferência pela informalidade. Muitas
famílias beneficiadas pela titulação optam pela venda dos imóveis. Chama a
atenção, por outro lado, o caso de Goiânia, que através de uma rígida
fiscalização impede que as famílias beneficiadas transfiram a propriedade dos
imóveis beneficiados. Na maioria das respostas ao questionário de Cherkezian
(2004), a Regularização Fundiária, que notadamente constitui a ação mais
difícil de ser executada nesse tipo de programa, está sempre prevista como
etapa final do empreendimento. Como o tempo médio de duração dos mesmos é de 60
meses, a etapa de regularização não tem sido em geral atingida.
Grande parte dos
assentamentos ocupa terrenos públicos municipais (em Porto Alegre, 70%, em
Goiânia 56%, em Vitória 55%). Por um lado, administrações adotaram esta
condição como critério de elegibilidade para acesso aos programas; por outro,
trata-se de estratégia dos invasores devido ao menor risco de remoção e maior
probabilidade de obtenção de serviços e a regularização da posse. Predomina a
concessão do direito real de uso.
Alternativas são o aforamento (Belém,
Teresina e Salvador) e, conforme a situação, a concessão de títulos individuais ou coletivos.
5.2 Questões e Oportunidades
Mais valias para o
financiamento de infra-estrutura em assentamentos informais: duas questões de
fundo...
A evidência empírica de que
a valorização da terra gerada por fatores como infra-estrutura básica e
titulação tende a ser maior do que o custo dessa mesma infra-estrutura,
apontada no estudo Urban Land Markets and
Urban Land Development: An Examination of Three Brazilian Cities: Brasilia,
Curitiba and Recife (Serra et al, 2004), contribui para ampliar o renovado
interesse pelo tema da recuperação de mais-valias fundiárias para o
financiamento de infra-estruturas urbanas em países pressionados por altos
níveis de endividamento externo e interno.
Essa hipótese suscita, de
imediato, duas questões de fundo envolvendo os segmentos público e privado da
economia, cuja resposta é crítica para o desenvolvimento de políticas
bem-sucedidas de financiamento de infra-estruturas com recursos da mais-valia
fundiária.
Do ponto de vista das finanças públicas – para não dizer do governo
democrático – a pergunta que se coloca é: até que ponto é válida a
racionalidade da “produtividade urbana”, segundo a qual os escassos recursos do
governo urbano devem ser prioritariamente investidos nas áreas centrais, onde o
retorno direto e indireto é mais alto? Por que não inverter, ou pelo menos
alterar substancialmente, nesse caso, a matriz espacial da aplicação dos
recursos fiscais?
A segunda questão diz
respeito ao setor privado: se servir a terra aumenta tanto o seu valor, por que
é tão difícil encontrar agentes privados no mercado formal que tenham interesse
em investir no mercado de terra para baixa-renda? Porque esse mercado não é
considerado lucrativo apesar dos substanciais aumentos de preços fundiários
proporcionados? Seriam suficientes as alegações de que as dificuldades jurídicas,
a falta de regras claras, o alto custo das licenças de aprovação e a falta de
informação impõem custos proibitivos aos empreendedores legais? Ou será que a
insegurança inerente às precárias condições de vida e trabalho do público-alvo
impõem a este sub-mercado riscos específicos que o tornam desinteressante aos
olhos dos promotores formais?
Em relação à participação
do segmento privado, cabe também perguntar: na medida em que os serviços
essenciais como água, eletricidade, telefone e transporte público são na
verdade fornecidos com base em taxas aplicadas aos usuários, o que é preciso
fazer para que os fornecedores de serviços públicos – hoje privatizados em
larga em escala no Brasil, se associem ao capital privado em projetos de
infra-estruturação do solo para as populações mais pobres?
... e uma hipótese alternativa
As questões suscitadas pela generalização da idéia de
que a valorização causada pela provisão de infra-estrutura básica escassa seria
sempre maior que o custo daquela provisão podem ser em parte resolvidas pela
hipótese alternativa em que se qualifica a que custos se está referindo. De fato, é consenso que o custo da provisão
de infra-estrutura básica é muito maior quando esta provisão é feita a posteriori, ou seja, em processos de
regularização urbanística de assentamentos informais. Estima-se que os custos
nesse caso são muito superiores, da ordem de até três vezes o que seriam os
custos originais. Qualificado desta forma, nada garante que a valorização seja
suficiente para cobrir esses custos de intervenções curativas, muito embora a
mesma valorização fosse mais que suficiente para o auto-financiamento da
infra-estrutura, se realizada no momento da implantação do assentamento ou
loteamento.
A forma mais simples de
verificar a validade da “hipótese da auto-sustentabilidade dos programas de
urbanização de assentamentos precários e informais” seria a pesquisa empírica
de preços antes e depois da execução dos projetos. Infelizmente, mesmo em
programas de grande porte financiados com recursos externos, como o
Favela-Bairro, não se encontra tal item de avaliação.
Ao contrário do que dita a
teoria, na prática a hipótese da valorização maior que o custo da
infra-estrutura não é tida pelos técnicos consultados, especialistas com anos
de experiência em projetos similares, como provável nos assentamentos
irregulares periféricos de baixa-renda, e é vista como apenas possível em
programas de urbanização de favelas consolidadas.
A média de custo apurado da
urbanização de favelas no Rio de Janeiro é da ordem de 4,0 a 5,5 mil dólares
por unidade, considerando todos os componentes de infra-estrutura e
equipamentos urbanos, exceto titulação. Observe-se que essa ordem de custo equivale, grosso modo, ao padrão
adotado pela Caixa Econômica Federal para custo da unidade habitacional básica
em programas destinados à população de baixa- renda (Habitar-Brasil), o que
lança dúvidas sobre o argumento do menor custo em defesa da prioridade para a
urbanização de favelas, em relação à produção de novos lotes. No caso da
regularização de loteamentos periféricos, o custo médio apurado é da ordem de
2,2 mil dólares por lote, incluída a titulação.
A valorização apurada em
favelas beneficiadas com programas de infra-estrutura básica e urbanização
chega a atingir a casa dos 90% (Abramo, 2003). Ou seja, o valor mínimo de venda
de um imóvel em favelas consolidadas beneficiadas pelo programa Favela-Bairro
para satisfazer a hipótese da valorização igual ao investimento seria da ordem
de 10 mil dólares, estimativa que parece confirmar a opinião predominante nos
meios técnicos, acima mencionada.
Entretanto, há que se
reconhecer que apesar de sensivelmente mais caros, os investimentos em
urbanização de favelas consolidadas parecem produzir efeitos sinérgicos com as
economias de localização pré-existentes. O processo de verticalização das
favelas é a prova cabal de uma certa “maturidade” do mercado de imóveis
irregulares nesses assentamentos.
A tendência de valorização
dos imóveis nas favelas consolidadas é explicada por fatores como: (a) acesso
imediato a benefícios da urbanização como proximidade dos locais de oferta de
trabalho, comércio e transporte público abundantes, às vezes até mesmo metrô;
(b) relações de vizinhança e redes de solidariedade consolidadas; (c) aumento
substancial da procura de moradia por parte de segmentos da classe média-baixa
que, por redução de renda, encarecimento mais que proporcional dos imóveis
formais ou emprego precário e/ou informal, são obrigados a recorrer ao mercado
informal de moradia .
Nos loteamentos periféricos
atuais, mesmo regulares, parece ocorrer o fenômeno inverso. Conforme Furtado e
Oliveira (2002),
“...há indícios de que a ocupação desses loteamentos, em vez de
valorizar os lotes que ficam vazios, na verdade desvaloriza-os em relação aos
valores praticados na ocasião do lançamento, pois enquanto o que se vende é a
idéia de um bairro esteticamente agradável e organizado, o que se observa, com
o decorrer da ocupação, é um assentamento de lenta consolidação, com a maioria das
construções ainda inacabadas, sendo às vezes difícil distinguir visualmente,
com o passar dos anos, um loteamento legal de um ilegal. (..) A compra de lotes
e sua manutenção sem uso, com a expectativa de uma valorização futura, uma
prática antes arraigada, parece começar a perder sua força nessas áreas,
embora, segundo o loteador, ainda exista: ‘quem compra lote para revender é
‘biruta’, não vai conseguir, a não ser em casos excepcionais. Mas há quem faça,
temos esse caso todos os dias, o sujeito compra para tentar valorizar mas não
consegue, perde dinheiro’. [Otávio Araújo, sócio-proprietário da ECIA, maior
empresa urbanizadora da Zona Oeste do Rio de Janeiro]”(p.50)
Esse efeito sugere que a
ocorrência de uma valorização substancial de imóveis populares por efeito da
execução de infra-estrutura e urbanização pressupõe
a existência de um mercado razoavelmente desenvolvido, vale dizer, de uma
“massa crítica” de riqueza imobiliária, ainda que regulada por meios informais.
A dispersão e o grau de pobreza intrínsecos aos loteamentos informais
periféricos podem representar ausência de economias de aglomeração (urbanização
somada a localização) necessárias e suficientes para que o investimento
público resulte em uma dinâmica imobiliária geradora de valorização fundiária
efetiva e consistente.
Tal hipótese traz consigo
duas conseqüências importantes para a política de recuperação de custos em
regularização de loteamentos periféricos: (1) a valorização seria proporcional
à escala e ao grau de concentração geográfica e centralidade urbana com que
fossem planejados os programas de oferta de terra servida e regularização de
loteamentos na periferia; (2) a recuperação de custos baseada, de alguma forma,
no adiantamento da valorização dos imóveis (por exemplo, via uma contribuição
de melhoria integral) poderia impedir a formação de um estoque de capital
imobiliário familiar mínimo capaz de gerar mercado e, portanto, a própria
valorização.
Operación Urbanística Nuevo Usme: um novo modelo de produção
de lotes urbanizados, baseado na gestão pública da terra.
Como alternativa às
políticas clássicas de subsídio direto à demanda e acesso ao crédito
imobiliário, de um lado, e a tolerância à informalidade, seguida de eventuais
programas corretivos, a Operação Nuevo Usme, em Bogotá, Colômbia,
apresenta-se como uma terceira alternativa, cuja elaboração e montagem pode
servir de exemplo a outras iniciativas para a América Latina.
O projeto da Operação
propõe a aplicação integrada de instrumentos de gestão do solo previstos na
legislação colombiana, dentre os quais se destacam o controle dos preços da
terra e a redistribuição da valorização do solo, para permitir às camadas mais
pobres o acesso à terra urbanizada.
As premissas
básicas do modelo Nuevo Usme são:
- Os subsídios diretos à
demanda não são a melhor alternativa porque elevam os preços do solo e
facilitam a transferência de recursos para os proprietários da terra.
- O manejo da
valorização proporcionada pelo investimento público e pela atribuição de
direitos urbanísticos específicos são alternativas viáveis à desapropriação
ou aquisição de terras para fins coletivos e sociais.
- O aumento da escala de
planejamento e gestão facilita a distribuição equitativa de custos e
benefícios.
- A oferta de terra
urbanizada evita futuras regularizações a preços mais elevados.
As áreas de intervenção são
objeto de Planos Parciais, instrumento normativo obrigatório e complementar aos
planos de ordenamento territorial para fins de atuação urbanística especial e
macro-projetos. Os Planos Parciais substituem a urbanização lote a lote e facilitam
também a execução dos projetos de urbanização por etapas.
A legislação colombiana em
vigor determina que o valor comercial da terra para fins de aquisição pelo
poder público não poderá incluir a valorização gerada pelo Plano Parcial. O
princípio da distribuição equitativa dos custos e benefícios da urbanização é
aplicado mediante o re-parcelamento do solo privado e o rateio e a
redistribuição proporcional dos custos de infra-estrutura e direitos de
urbanização entre os proprietários envolvidos, com clara inspiração no modelo
espanhol.
A recuperação de custos do
investimento público em infra-estrutura e urbanização é obtida na forma de
terra urbanizada, a preços compatíveis com a produção de habitação popular.
Além disso, o município pode recuperar de 30 a 50% do incremento de valor do
solo resultante da mudança de classificação da terra de rural para urbana e
pela autorização para usos e aproveitamentos mais rentáveis. Direitos de
construção podem também ser atribuídos diretamente aos beneficiários dos
programas de habitação popular para baixa-renda (Veríssimo, 2004)
As principais orientações
da Operação são:
·
Controle dos preços da
terra: são produzidas avaliações de referência pelo Departamento de Cadastro
Imobiliário, tendo em conta a normativa urbanística vigente ANTES do anúncio do
projeto.
·
Aproveitamentos
urbanísticos prévios: se reconhece o mesmo preço a toda a terra incluída na
área de re-parcelamento, seja ela destinada à proteção ambiental, espaço
público, equipamentos ou a loteamentos para futura construção.
·
Recuperação parcial da
valorização da terra decorrente do desenvolvimento do projeto: os custos da
infra-estrutura projetada e o solo necessário para sua implantação são pagos
através da outorga onerosa de direitos construtivos em áreas previamente
definidas no projeto.
·
Controle da urbanização
ilegal: são identificados todos os proprietários envolvidos no perímetro do
projeto; o desenvolvimento do projeto é acompanhado de monitoramento permanente
dos terrenos; o recurso da desapropriação administrativa é acionado quando
necessário.
Em termos específicos, a
Operação envolve 936 hectares de área bruta, sendo o projeto dividido em quatro
Planos Parciais de cerca de 200 ha. O valor médio dos terrenos existentes,
segundo a avaliação de referência realizada, é da ordem de $ 4.400 pesos
colombianos por metro quadrado, cerca de U$ 1.70 (2003).
A urbanização segundo a
normativa vigente permitiria a utilização líquida de cerca de 601 ha, ou 64% da
área bruta disponível. O projeto desenvolvido para a área contempla 17% da
terra para a malha viária arterial e intermediária, 10% para equipamentos
públicos, 12% para áreas verdes e de recreação e 17% para áreas de proteção
ambiental, destinando 44% de área útil para fracionamento. Destes, são reservados
74.5 ha para habitação de interesse social (VIS) e 176.5 ha para moradia de
interesse prioritário (VIP) na forma de lotes urbanizados.
Os cálculos do projeto
levam o valor final dos terrenos já urbanizados a cerca de $ 11.841 pesos
colombianos por metro quadrado, ou US$ 4.55.
A título comparativo,
calcula-se que se a Operação não se realiza, a tendência é o parcelamento
ilegal deste solo de expansão urbana, com a ocupação de cerca de 70% do total
da área bruta, algo como 655 ha. As famílias pagariam por essa terra cerca de
US$ 20 por metro quadrado (para lotes de aproximadamente 72 m2) e o poder
público teria que investir em melhoramentos para esses assentamentos informais
cerca de três vezes o montante de investimentos públicos previstos na Operação.
Considerações Finais e Recomendações
Algumas Políticas e Estratégias para o Financiamento de Infra-Estrutura
Urbana Básica no Brasil
Premidas pelas
responsabilidades advindas da autonomia municipal, bem como pela pressão
continuada do déficit de moradia e infra-estrutura básica, e por outro lado
pelo acesso limitado às fontes tradicionais de financiamento, as cidades
brasileiras se vêem forçadas a trazer de volta ao primeiro plano das políticas
públicas a busca de alternativas endógenas, social e economicamente
sustentáveis, de cobertura de custos de investimentos em infra-estrutura urbana
básica e melhoramentos urbanos.
Uma delas é a recuperação
da valorização extraordinária do solo privado – histórica, atual e futura –
proporcionada pelos efeitos em geral benéficos da urbanização, apenas parcial e
imperfeitamente captados pelo imposto sobre a propriedade imobiliária - o IPTU
- que é a sua forma clássica e, presumivelmente, a mais relevante em qualquer
cenário previsível.
A explicitação da
recuperação da valorização fundiária como dever
das administrações municipais no Estatuto da Cidade – expressão da função
social da propriedade urbana conforme estabelecida na Constituição de 1988 –
não apenas devolve o tema da gestão da valorização da terra ao centro das
atenções da política urbana como consagra a sua legitimidade social.
A geração de Planos
Diretores Municipais posteriores à Constituição de 1988 generalizou a formação
de Fundos Municipais de Desenvolvimento Urbano exclusivamente destinados a programas
de urbanização social com recursos oriundos da recuperação de mais-valias
fundiárias urbanas, em especial por meio da Outorga Onerosa do Direito de
Construir. Esse fato confirma a predominância de uma perspectiva redistributiva
no âmbito das políticas nacional e local de gestão da valorização do solo.
É necessário, no entanto,
ampliar os horizontes dessa conquista. Sabemos que as grandes metrópoles
capturam muito mais rendas fundiárias do que as que recolhem aos Fundos de
Desenvolvimento Urbano. Sabemos também que o caráter generalizado e mais ou
menos difuso da formação de mais-valias fundiárias a partir dos investimentos
públicos e privados – vale dizer, da sociedade – implica uma multiplicidade de
modelos pelos quais pode se materializar a sua recuperação – monetária,
fundiária, equipamentos e serviços – e posterior aplicação.
Muitos desses modelos
constituem práticas antigas e já
consolidadas que, por não serem reconhecidas como recuperação de valor, não
receberam até hoje tratamento gerencial e contábil adequado. Um
inventário analítico de tais práticas seria de grande utilidade para uma
avaliação não apenas do potencial financeiro da recuperação de mais-valias
fundiárias urbanas, mas também de suas condições de eficácia em diferentes
situações, para não dizer de seu controle econômico e social.
Nas grandes cidades, onde é
mais crítico o problema da distribuição de rendas e benefícios da urbanização,
parece justificar-se plenamente a cobrança da Contribuição de Melhoria (CM),
como já tem sido feito direta ou indiretamente nas cidades médias e pequenas,
desde que o instrumento seja utilizado de maneira generalizada. Tendo em vista,
porém, a eficácia e a eficiência desejadas para o instrumento, é recomendável
que ele esteja afeto aos próprios sistemas de IPTU existentes. Apesar de
relativamente modernos e sofisticados, os sistemas de gestão do IPTU da maioria
das grandes metrópoles brasileiras encontram-se em permanente estado de
defasagem cadastral, o que conduz os esforços prioritários de atualização aos
bairros onde se espera maior arrecadação. Nessas condições, o princípio da CM
poderia ser aplicado em algo como “Zonas Prioritárias de Recadastramento e
Avaliação para fins de IPTU” delimitadas como áreas de influência de novas
obras públicas. Dentre as vantagens de tal sistema poderíamos enumerar: (1)
evitar o impacto negativo da criação de um novo tributo; (2) criar um impacto
positivo pela disposição de aperfeiçoar o sistema com a justa distribuição dos
ônus e benefícios da urbanização; (3) garantir que a cobrança por obra pública
corresponda, em qualquer caso, à efetiva valorização do terreno; (4) permitir
que os casos de desvalorização fundiária fossem detectados e apropriados pelo
sistema; e (5) inserir um componente especial de avaliação que permita captar
eventuais sobrevalorizações decorrentes de obras públicas ou outras ações
governamentais.
Finalmente, um tema até
aqui pouco estudado no âmbito da valorização da terra urbana é o das rendas
públicas diretas obtidas com a cessão
de solo público para postos de abastecimento, publicidade estática e em
transportes coletivos, redes de serviços não essenciais, exploração do
mobiliário urbano etc. Tais receitas, que podem ser creditadas à conta da
“valorização extraordinária do solo urbano resultante dos efeitos da
urbanização”, poderiam constituir uma fonte suplementar, e também espacialmente
redistributiva, de reforço dos Fundos Municipais de Desenvolvimento Urbano para
o financiamento de programas de urbanização social.
Recuperação de mais-valias
fundiárias urbanas e financiamento de programas para população de baixa-renda
Devido à sua pouca tradição
na administração pública brasileira, e conseqüentemente à sua pouca
representatividade em termos de volume de recursos, assim como em relação ao tamanho
do déficit acumulado de infra-estrutura básica, a recuperação de mais-valias
fundiárias tem de ser encarada como fonte complementar
de recursos para programas de urbanização e regularização de assentamentos
precários e informais.
Por outro lado, a
integração das políticas de recuperação de mais-valias fundiárias aos programas
de infra-estrutura e urbanização social pode ter um importante papel a
desempenhar, tanto do ponto de vista da redistribuição das rendas urbanas
quanto do ponto de vista da auto-sustentação dos programas de urbanização,
titulação e regularização fundiária e urbanística.
As metrópoles brasileiras
já acumulam uma sólida tradição de programas de urbanização de assentamentos
precários e informais, para os quais convergem recursos dos Fundos de
Desenvolvimento Urbano. Os pontos frágeis dessa relação são justamente a fraca
quantidade de recursos aportados pelos Fundos e, por outro lado, a opção
política quase generalizada pela não recuperação de custos através da inserção
dos assentamentos urbanizados ou regularizados no cadastro do IPTU.
A gravidade dessa fraqueza
se expressa com toda clareza no fato de que o programa social mais caro
(urbanização de favelas) é aquele que ao mesmo tempo promove a maior
valorização imobiliária (caso de algumas favelas consolidadas em regiões
centrais) e tem a perspectiva mais distante de recuperação de custos. Embora
não sejam interdependentes do ponto de vista jurídico, regularização fundiária
e cobrança de IPTU guardam uma
relação de interdependência política, razão pela qual o IPTU não é em geral
cobrado nas favelas beneficiadas com arruamento, drenagem, infra-estrutura
básica e equipamentos urbanos.
O investimento em regularização fundiária nas favelas
consolidadas é, provavelmente, aquele com maior potencial de retorno financeiro
em curto prazo para a cidade e o país, no âmbito das políticas habitacionais,
porque permite a passagem de um imenso estoque de capital imobiliário ao
mercado formal, com a correspondente arrecadação de impostos municipais (ainda
que com alíquota social) e estaduais, e inserção no PIB.
Urbanização progressiva e contribuição de melhoria:
alternativas para redução de custos em programas de moradia social
A concretização da margem
de recuperação de custos de investimentos públicos em infra-estrutura urbana
nos processos de regularização requer um primeiro corte no universo dos
assentamentos informais, qual seja entre favelas e loteamentos, aqui tomados,
grosso modo, como originados respectivamente de ocupações não planejadas do
ponto de vista espacial e de parcelamentos fisicamente regulares de glebas
maiores.
Há também, por certo,
muitos casos mistos, grandes parcelas em parte loteadas e em parte ocupadas
“espontaneamente”, casos em que se tem de pensar em um sistema também misto de
abordagem. Trata-se dos diferentes custos da regularização urbanística,
comparando-se o custo da provisão de serviços em um loteamento de formato
regular, com vias e limites dos lotes definidos, com o custo de urbanização de
uma área de favela, estando estas freqüentemente situadas em áreas pouco
adequadas à urbanização, em zonas de risco, com a presença de vielas e
escadarias, sem limites definidos de propriedade, etc.
Recuperação de custos em
processos de regularização e em novos parcelamentos são também duas coisas
diferentes. Enquanto no segundo caso se pode desenhar uma política mais ampla e
generalizada, no primeiro caso há que lidar com cada caso em particular, embora
algumas regras gerais possam ser estabelecidas.
A utilização da contribuição
de melhoria, ou seja, a recuperação dos custos de investimentos públicos
datados e localizados, poderia ser também a base de um sistema de implantação
de loteamentos de urbanização progressiva. É necessário, porém, que esse
sistema seja transparente e genérico, para que o comprador saiba que estará
pagando quando da provisão do serviço, mas não deve pagar antecipadamente ao
loteador. Esta solução é compatível até mesmo com a idéia (e a ética) de que
todos devem pagar, sendo que nos loteamentos superiores se estará pagando
diretamente ao loteador, por serviços realizados por ele antecipadamente.
No caso da
implantação de infra-estrutura urbana em parcelamentos informais existentes, a
utilização da contribuição de melhoria pode esbarrar na questão inter-generacional
(na versão ricos versus pobres, em
que os ricos obtiveram a infra-estrutura gratuitamente), sobretudo quando se
está falando de redes básicas de água e esgotamento sanitário, sistema viário
troncal, etc.
No caso de
infra-estrutura local passível de individualização de consumo, como para a
provisão de serviços de água, esgotamento sanitário e energia elétrica, os
custos podem ser diluídos na cobrança mensal, como aparentemente já costuma ser
feito, desde que sejam adequadamente considerados os casos especiais.
No caso de
infra-estrutura local não passível de individualização de consumo, como
pavimentação ou iluminação pública nas ruas internas, há margem para a cobrança
de contribuição de melhoria ou, melhor ainda, de outros instrumentos similares
(neste último caso, de modo a manter a CM com uma única forma de utilização, a
descrita mais acima), como a pavimentação participativa ou uma cotização para
melhoramento público, já que pelo menos nos loteamentos privados formais do
último quarto de século esses itens foram usualmente pagos pelos compradores de
lotes servidos. Uma questão importante é saber se os compradores de lotes
informais sem infra-estrutura não pagaram, ao menos em parte, pela expectativa
de provisão de infra-estrutura por parte do setor público, na forma de um
sobre-preço imposto pelos loteadores, o que vem sendo evidenciado em várias
situações na América Latina (Iracheta e Smolka, 2001).
Aqui, há que
se pensar também na hipótese de que as famílias não tenham fluxo de caixa
suficiente para arcar com tais custos. Neste caso, pelo menos em teoria, talvez
o instrumento cabível não fosse a contribuição de melhoria diferida, mas o
imposto sobre o “lucro” imobiliário – land gain tax - (com base na
diferença entre o preço de venda e o preço de compra), uma vez que somente
existiria “fato gerador” no caso de apreciação do imóvel. Este instrumento
existe na legislação brasileira e está regulamentado, muito embora funcione com
uma série de isenções que o desqualificam para os fins aqui propostos, de modo
que necessitaria um novo enfoque. O problema desta alternativa é criar
mecanismos de controle para não incentivar, com esse mecanismo, a perenização
da informalidade ou a prática usual latino-americana da sub-declaração.
Em todos os
casos, há que se ter presente que embora a valorização produzida pela provisão
de serviços escassos em novos loteamentos seja via de regra superior aos custos
de implantação dos serviços, apontando para a auto-sustentabilidade de seu
financiamento, o mesmo não ocorrerá necessariamente no caso da regularização
posterior e curativa de assentamentos informais, uma vez que o custo dessas
intervenções costuma ser muito mais alto que o da urbanização prévia.
Já no caso da
regularização fundiária (provisão de títulos / segurança da posse), a
valorização percebida parece ser muito menor ou pelo menos mais dependente de
situações especiais (inversamente proporcional ao perigo de remoção). Nesses
casos, aparentemente o sistema mais recomendado seria o da recuperação de
eventual valorização através da cobrança efetiva do imposto predial, a qual
deveria ser tornada obrigatória em nível federal, para evitar soluções
municipais em direção diversa.
A produção de lotes urbanizados baseada na gestão
pública da terra
O acesso das camadas mais
pobres ao solo urbanizado pode ser potencializado por meio do desenvolvimento
de projetos baseados na gestão estatal
das variáveis geradoras da valorização fundiária - como a desapropriação do
solo rural a custos compatíveis, o re-parcelamento das glebas com a devida redistribuição
da valorização do solo e a atribuição
de índices de ocupação e edificabilidade a serem objeto de outorga onerosa – em
ações de natureza consorciada envolvendo proprietários fundiários, construtoras
e operadoras de serviços públicos.
A aplicação integrada
desses instrumentos pode se dar na forma de Consórcios Imobiliários bem como de
Operações Urbanas Consorciadas, ambos previstos no Estatuto da Cidade, em Áreas
(ou Zonas) de Especial Interesse Social (ZEIS/AEIS), já amplamente utilizadas
no Brasil em iniciativas de regularização, e neste caso destinadas, a exemplo
dos Planos Parciais colombianos, a servir de suporte legal e de planejamento a
operações de transformação urbana.
A aplicação
deste modelo em zonas limítrofes à expansão urbana pode se beneficiar
particularmente da desapropriação com base em preços de terra rural. Nesse
caso, o diferencial de valor fundiário antes e depois do projeto representa um
dos principais aportes ao seu financiamento. Duas questões envolvidas requerem,
no entanto, esforços e análises complementares: (1) a inexistência, na
legislação brasileira, de dispositivos que garantam explicitamente o expurgo da
valorização “de expectativa” em desapropriações para fins sociais; e (2) a contribuição
desse tipo de projeto ao espraiamento da mancha urbanizada, implicando custos
adicionais de implantação e operação de redes de serviços públicos.
Algumas Recomendações
Quanto aos Programas: Integrar a política fundiária à política habitacional. Dar prioridade, na política habitacional, à
oferta de lotes urbanizados em escala compatível com o objetivo da baixa de
preços. A meta é que o lote urbanizado seja ofertado no mercado formal pelo
preço do lote não urbanizado no mercado informal.
Aplicar o conceito de
urbanização progressiva e utilizar toda a gama de possibilidades abertas pelos
Consórcios Imobiliários e instrumentos afins. Criar e aplicar mecanismos de
desapropriação a custo de terra rural e /ou políticas de controle de preços. Buscar
níveis de concentração física e centralidade que favoreçam a formação de
economias externas, mercado e valorização fundiária.
Incentivar a captura de
parte das mais-valias fundiárias pelos proprietários dos lotes urbanizados e
regularizados em programas de baixa renda como meio de capitalização familiar e
inserção a médio-longo prazo dessas propriedades no mercado imobiliário formal.
Amortizar custos de programas de urbanização social com mecanismos como a
recuperação parcial e com a inserção cadastral e aplicação do IPTU.
Manter, nas grandes
cidades, carteiras variadas de programas de melhorias e regularização
registrária de assentamentos informais: urbanização e consolidação de favelas,
urbanização e regularização de loteamentos, regularização fundiária e
titulação, recuperação e regularização de cortiços.
Promover uma investigação
conclusiva sobre os obstáculos jurídicos, administrativos, econômicos e sociais
à regularização fundiária e imobiliária em assentamentos informais envolvidos
em programas de urbanização. Com base em seus resultados, estimar os efeitos
potencialmente benéficos dos dispositivos facilitadores da legislação que
substituirá a Lei 6766 e sua aplicabilidade à inserção do estoque de moradias
beneficiadas no mercado formal. Seria a inserção da regularização fundiária uma
pré-condição viável e benéfica à eventual resistência detectada no
desenvolvimento de programas de urbanização?
Estudar a criação de
dispositivos de participação das concessionárias nos custos da instalação das
redes de serviços básicos.
Quanto às Fontes de Receita
dos Fundos de Desenvolvimento Urbano: Ampliar os recursos dos
FMDUs com diversos tipos de recursos provenientes da valorização fundiária das
regiões centrais, tais como:
a.
Parcelas do IPTU referentes
à valorização da terra
b.
Rendas públicas
provenientes da cessão onerosa de solo público (postos de abastecimento,
artefatos de publicidade estática, mobiliário urbano e transportes coletivos,
direitos de passagem de redes de serviços não essenciais, etc.).
Iniciar a aplicação
sistemática da Contribuição de Melhoria prevista na Constituição, no Estatuto
da Cidade e no Plano Diretor, como tributo
sobre a valorização, visando à construção de um sistema eficaz e
socialmente justo de participação nas obras de infra-estrutura e melhorias
urbanas em que o benefício seja patente e o esforço da recuperação claramente
superavitário. O sistema de aplicação sistemática da CM deverá, por razões de
eficiência, estar tecnicamente associado ao sistema de gestão do IPTU.
Quanto aos Recursos Humanos
e Materiais: Os instrumentos de gestão urbanística
consolidados no Estatuto da Cidade acrescentam, em caráter definitivo, a gestão da valorização da terra como
dimensão inerente à gestão urbanística, que não pode ser mais concebida como
mera atividade fiscalizadora da conformidade de projetos em relação à norma.
Especial atenção deve ser dada, portanto, nesse sentido, à capacitação técnica
e material das organizações públicas, em especial nas áreas fiscal, de controle
e de urbanismo.
Quanto aos Estudos: Realizar inventário de âmbito nacional das modalidades de recuperação
de mais-valias fundiárias aplicadas nas grandes e médias cidades brasileiras.
Incluir a incidência e a parcela do componente fundiário na alíquota do IPTU e
seu respectivo valor.
Realizar pesquisa
específica sobre a real utilização da Contribuição de Melhoria e mecanismos
similares nas cidades brasileiras. Desenvolver pesquisa de âmbito nacional
sobre modalidades de arrecadação de rendas públicas com cessão de áreas
públicas para fins comerciais e os respectivos valores aportados aos orçamentos
municipais. Desenvolver pesquisa sobre a valorização produzida pela alteração
de usos rurais para urbanos, com foco em cidades médias e pequenas.
Desenvolver pesquisa de
âmbito nacional sobre valorização e dinâmica imobiliária nos assentamentos
beneficiados por programas de urbanização, regularização urbanística e
titulação. Tornar essa modalidade de avaliação obrigatória nos programas
financiados com recursos das agências de fomento nacionais e internacionais.
BIBLIOGRAFIA
ABIKO, Alex Kenya et al., “Infraestrutura em áreas urbanas informais”, in Serra, MV e da Motta, Diana
Meirelles, Estudos Estratégicos de Apoio
às Políticas Urbanas para os Grupos de Baixa Renda no Brasil. Banco
Mundial/Cities Alliance, 2004.
ABRAMO, Pedro, A Cidade da Informalidade. Editora UFRJ, 2003.
ABREU, Maurício, Evolução Urbana
do Rio de Janeiro. IPLANRIO / ZAHAR, Rio de Janeiro 1987.
ALTSHULER, Alan e José Gómez-Ibañez. Regulation for Revenue: the political economy of land use exactions. The Brookings Institution / Lincoln Institute of
Land Policy 1993.
BOGOTÁ, Alcaldia Mayor et al. Operación Urbanística Nuevo Usme, 2003
BROWN, H. James e Martim O. Smolka, “Capturing
Public Value from Public Investments”, in
BROWN, H. James (Ed.) Land Use and Taxation. Applying the Insights of Henry
George. Lincoln Institute of Land Policy, Cambridge,
Massachusetts 1997.
CALDAS, Eduardo e Guilherme H. P. Silva, “Contribuição de Melhoria”, in Ação
Administrativa Nº 152. Instituto PÓLIS, São Paulo
2000.
CHERKEZIAN, Henry, “Inventário de projetos de melhoria de assentamentos
urbanos informais”, in Serra, MV e da
Motta, Diana Meirelles, Estudos
Estratégicos de Apoio às Políticas Urbanas para os Grupos de Baixa Renda no
Brasil. Banco Mundial/Cities Alliance, 2004.
______, “Lotes urbanizados no Brasil: considerações e
propostas preliminares”, in Serra, MV
e da Motta, Diana Meirelles, Estudos
Estratégicos de Apoio às Políticas Urbanas para os Grupos de Baixa Renda no Brasil.
Banco Mundial/Cities Alliance, 2004.
CLICHEVSKY, Nora et al. Construcción y Administracción de la Ciudad
Latinoamericana. Grupo Editor Latinoamericano/ IIED - LA, Buenos Aires
1990.
DAMASIO, Cláudia Pilla (Org.), Acesso
Legal à Terra Urbana e à Cidade. Prefeitura Municipal de Porto Alegre,
Porto Alegre 2004.
DILLINGER, William. Reforma del Régimen Tributario sobre la Propiedad
Urbana. Directrices y Recomendaciones. Programa de Gestión Urbana (BM,
Habitat, PNUD), 1991.
DI PIETRO, Mª Sylvia, Direito Administrativo.
Atlas, São Paulo 2001.
FARIA, Teresa Cristina de Almeida, Favelas
na Periferia: (Re) Produção ou Mudança das Formas de Produção e Acesso à Terra
e Moradia pelos Pobres na Cidade do Rio de Janeiro nos Anos 90?, Tese de
Doutorado. IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro 2004.
FERNANDES, Edesio e Betânia Alfonsín (Org.) A Lei e a Ilegalidade na Produção do Espaço Urbano. Del Rey/Lincoln Institute of Land Policy, Belo Horizonte 2003.
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit Habitacional no Brasil. Municípios
Selecionados e Microrregiões Geográficas. Centro de Estatísticas e Informações,
Belo Horizonte 2005.
FURTADO, Fernanda, Recuperação de
mais-valias fundiárias urbanas na América Latina: debilidade na implementação,
ambigüidades na interpretação, Tese de Doutorado, FAU-USP, São Paulo 1999.
FURTADO, Fernanda e Fabricio L. Oliveira, “Vazios Urbanos na Cidade do Rio de Janeiro: Situação Atual e Critérios
para a Formulação de Políticas”, in CLICHEVSKY, Nora, Tierra Vacante em Ciudades Latinoamericanas.
Lincoln Institute of Land Policy, 2002.
GEORGE, Henry, Progress and Poverty. Robert Schalkenbach Foundation, New York
1992.
GOELZER, Jorge e Paulo Saad, Cost Recovery Performance of the Benefit
Charge in the Paraná Urbano Program. Governo do Estado do
Paraná, Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano 1999.
INSTITUTO CIDADANIA. Projeto Moradia. Brasil, 2000.
INSTITUTO PÓLIS, Estatuto da
Cidade – guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Câmara dos
Deputados, Brasília 2001.
IRACHETA, Alfonso e Martim O. Smolka (Coord.) Los pobres de la Ciudad y la Tierra. Colégio Mexiquense, Lincoln Institue of Land Policy, Toluca 2000.
JONES, Gareth e Peter Ward (Eds.) Methodology
for Land and Housing Market Analysis. Lincoln Institute of Land
Policy, Cambridge, Massachusetts 1994.
JORGENSEN, Pedro, “Captura de plusvalías em proyectos de accesibilidad
urbana en Rio de Janeiro”, in CARMONA
M., SCHOONRAAD, M., e TUNAS, D. (Eds.) Globalization,
Urban Form & Governance Nº 8. Delft University Press,
Delft 2003.
LARANGEIRA, Adriana de A., “Avaliação da experiência brasileira sobre
urbanização de favelas e regularização fundiária”, in Serra, MV e da Motta, Diana M., Estudos Estratégicos de Apoio às Políticas Urbanas para os Grupos de
Baixa Renda no Brasil. Banco Mundial/Cities Alliance, 2004.
LONJA PROPIEDAD RAÍZ DE BOGOTÁ, La
Ciudad se Valoriza con Obras Públicas. Sanmartín Obregón & Cia, Bogotá,
2001.
LUNGO, Mario (Comp.) Grandes
Proyectos Urbanos. UCA/Lincoln Institue of Land Policy, San Salvador 2004.
MACON, J., MAÑON, J. Merino. Financing Urban
and Rural Development Through Betterment Levies:The Latin American
Experience. Praeger Publishers/Inter-American Development Bank, New York
1977.
MOURA JÚNIOR, Leopoldo. “Contribuição
de Melhoria: mais justiça e mais obras”. Monografia, Lincoln Institute of Land Policy, s/d
MUSGRAVE, R. The Theory of Public Finance.
McGraw-Hill Book Company, New York 1959.
PONTUAL, Ricardo D. “Moradias em Assentamentos Informais: uma proposta
para caracterizar o estoque”, in
Serra, MV e da Motta, Diana Meirelles, Estudos
Estratégicos de Apoio às Políticas Urbanas para os Grupos de Baixa Renda no
Brasil. Banco Mundial/Cities Alliance, 2004.
SERPA, Claudia, “Entrevista”, in DAMASIO, Cláudia Pilla (Org.), Acesso Legal à Terra Urbana e à Cidade.
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Porto Alegre 2004.
SHOUP, Donald, “Is under-investment in public
infrastructure an anomaly?”, in WARD, Peter e Gareth Jones (Eds.), Methodology
for Land and Housing Market Analysis. Lincoln Institute of Land
Policy, Cambridge, 1994.
SMOLKA, Martim e Fernanda Furtado (Eds.), Recuperación de Plusvalías en América Latina. Eurelibros, Lincoln Institute of Land Policy, 2001.
_____, “Lessons from the Latin america
Experience with Value Capture”, in Land
Lines Vol. 13 Nº4. Lincoln Institute of Land Policy, Cambridge, 2001.
SMOLKA, Martim. Value-Capturing in Brazilian
Local Planning. Trabalho apresentado na reunião do ACSP, Fort
Lauderdale, 1997, mimeo.
VERÍSSIMO, Antônio Augusto, “Incentivos à produção de lotes urbanizados:
uma análise dos instrumentos legais de Joinville, Rio de Janeiro, Porto alegre
e Bogotá”, in Revista de Administração Municipal Nº 247. IBAM, Rio de Janeiro
2004.
_____, Parcelamento
do solo na cidade do Rio de Janeiro: um estudo sobre a produção informal da
década de 40 aos anos 90. Dissertação de Mestrado. IPPUR, Rio de Janeiro,
2005.
Em
Curitiba, onde sua aplicação é vista como tradicional e consistente, entre
março de 1991 e novembro de 2002, o valor arrecadado com a aquisição de
potencial construtivo foi da ordem de apenas R$ 21 milhões.
[23] Para citar um exemplo
paradigmático, o Programa Favela-Bairro, hoje uma referência internacional,
investiu R$ 616 milhões entre 1994 e 2003 na urbanização de 166 assentamentos
informais do Rio de Janeiro, beneficiando diretamente 162 mil famílias e
indiretamente outras 40 mil (Cherkezian, 2004). Ainda assim, a população
residente em favelas e loteamentos irregulares e clandestinos segue crescendo,
segundo o último censo demográfico do IBGE (2001).
Os recursos do FGTS que chegam à população na
faixa de até três salários mínimos são os destinados ao financiamento de
materiais de construção, por sua vez aplicados quase sempre em unidades
habitacionais situadas em loteamentos irregulares (Veríssimo, 2004)
Informações baseadas
em CHERKEZIAN, Henry, “Lotes urbanizados no Brasil: Considerações e
propostas preliminares”, in Serra,
M.V. e da Motta, Diana Meirelles, Estudos
Estratégicos de Apoio às Políticas Urbanas para os Grupos de Baixa Renda no
Brasil. Banco Mundial/Cities Alliance, 2004.
Projetos de urbanização de assentamentos
informais na esfera do governo do Estado do Rio de Janeiro trabalham com custos
de infra-estrutura da ordem de U$ 2,500 por unidade em favelas e U$ 1,800 em
loteamentos irregulares. O estudo do IBAM em 10 cidades apurou um custo médio
de infra-estrutura por família de R$ 7.454,00 e um custo total por família de
R$ 5.957,22, com um mínimo de R$ 3.000,00 e um máximo de R$ 13.645,00 (outubro
de 2002). Abiko (2004) relata que os custos apurados por ANCONA & LAREU
2002 em um conjunto de 32 favelas urbanizadas pelo Programa Guarapiranga (São
Paulo) são de R$ 10.624,00 (dez 2000) por família, sendo R$ 9.701,00 (91,3%)
referentes à infra-estrutura. Cherkezian (2004) obteve, com dados de 100
programas de urbanização de assentamentos informais em todo o país, valores
médios de investimento por família extremamente variados segundo as regiões,
devido à disparidade de soluções adotadas. Na região sudeste de São Paulo, onde
estão os citados Programas Guarapiranga e Favela-Bairro, a média por família
foi de R$ 9.150,00 (julho de 2003).