Pedro, não ficou claro para mim qual a real diferença entre a TDC [Transferência do Direito de Construir] e a TPC [Transferência de Potencial Construtivo] que você propõe. Nos dois casos, me parece que se está legitimando que um potencial construtivo ainda não realizado possa ser entendido como direito de construir do proprietário. Algo que vai contra a sua nota sobre o ponto.
Explico-me.
A tradição jurídica brasileira não reconhece ao
proprietário de um terreno como coisa sua, como bem disponível, o potencial
construtivo aplicável conforme a Lei de Uso e Ocupação do Solo. É prerrogativa
da municipalidade manter, aumentar ou reduzir o potencial construtivo, bem como
alterar os usos permitidos, sempre que um novo plano urbanístico é aprovado,
sem incorrer em obrigações (“direitos adquiridos”) para com os proprietários de
terrenos urbanos. É bom que seja assim e que continue assim. Não advogo a
privatização do potencial construtivo ainda não realizado.
Mas o limite dessa autonomia da limitação do direito de construir
é, no Brasil, a extinção
da possibilidade de aproveitamento econômico do imóvel. Neste caso,
é acionado o instituto da desapropriação,
que deve ser paga pelo valor de mercado. E como sabemos, o valor de mercado de
um terreno é função da combinação uso-aproveitamento mais
rentável que ele pode ter. Portanto, sempre que a Municipalidade desapropria um
imóvel pelo valor de mercado, o "potencial construtivo ainda não realizado
[é] entendido como direito de construir do proprietário" e pago como se tratasse
de uma compra-venda entre particulares. Dito de outra forma, muito antes de a
Transferência de Potencial entrar em cena, o potencial construtivo não
realizado é patrimonializado... pela desapropriação
por utilidade pública paga pelo valor de mercado.
Na verdade, a técnica urbanística da Transferência de Potencial,
ou do Direito de Construir, sempre opera
no marco daquilo que o direito de propriedade determina como passível de indenização por parte do
poder público. E é aqui que surge o problema. E que se faz
necessária a distinção.
A TPC onerosa, tal como eu a entendo, opera no espaço da regra já estabelecida
pelo instituto da desapropriação. Ao se iniciar um projeto que
depende de desapropriações, a patrimonialização do potencial construtivo desses
terrenos é inevitável, um dado do problema, e seu custo um custo do projeto
como outro qualquer. O que a TPC pode fazer é transferir o custo direto
(desembolso do Tesouro) das desapropriações para o mercado imobiliário
(compradores de imóveis adicionais construídos, com o potencial transferido, em
outros lugares do perímetro de projeto). A TPC equivale, pois, à Outorga
Onerosa de um estoque de
potencial construtivo já estabelecido na Lei Urbanística, ou no Plano Local ,
para cobertura das despesas do projeto com as respectivas desapropriações.
Como a TPC "recupera" a sobre-valorização no solo de
destino para pagar o valor estabelecido para a indenização do solo de origem, o
seu poder será tanto maior quanto menor for o espaço
jurídico da obrigação de indenizar. Se as desapropriações por utilidade pública
passassem a ser pagas pelo "valor de mercado sem projeto", o poder da
TPC aumentaria consideravelmente; se passassem a ser pagas pelo valor da terra
rural, a TPC se tornaria uma ferramenta de alta potência - e seria, é claro,
acusada pelos proprietários de servir à especulação pública.
O problema com a TDC tal como definida no Estatuto da Cidade é
que, ao invés de reduzir ou pelo menos ater-se ao espaço das regras dadas para
a desapropriação, ela amplia
perigosamente o espaço da obrigação de indenizar criando uma espécie de
interesse público em fazê-lo. A TDC permite e incentiva que as
Municipalidades indenizem, com "Títulos de Potencial Construtivo"
(portanto pelo valor de mercado do terreno), proprietários de imóveis afetados
por limitações ao direito de construir que
não necessariamente eliminam a possibilidade de seu aproveitamento econômico,
portanto não obrigam a Municipalidade a desapropriar (Art. 35, ... exercer em
outro local... o direito de construir... quando o referido imóvel for
considerado necessário para fins de...; Inciso II – preservação, quando o
imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social
ou cultural).
Assim, a interessante técnica urbanística da Transferência de
Potencial se transforma em “cavalo de Tróia” de uma nova interpretação
(patrimonialista) da relação entre a limitação do direito de construir e o
pagamento de indenizações. A TDC é o veículo de uma nova modalidade de
“incentivo” à preservação urbanístico-ambiental que já não é fiscal, mas
parenta (muito) próxima da desapropriação por utilidade pública – porém (!!!) mantendo-se
o proprietário não apenas na posse do imóvel como no usufruto do aproveitamento
econômico que ele pode proporcionar: rentáveis lojas de souvenirs em centros
históricos, agências bancárias em imóveis tombados pelo Patrimônio Histórico,
resorts turísticos em áreas naturais protegidas... Nos termos do Estatuto da
Cidade, a TDC pode funcionar como o Gênio da Lâmpada que concede ao Aladim
proprietário o seu maior desejo: vender o imóvel e continuar sendo o seu dono.
A meu ver, cria-se assim não apenas uma nova indústria urbanística da
preservação ambiental (a "viúva" paga, e bem) como abre-se a porta
para a privatização total do “direito de construir”.
A maneira mais simples e idônea de eliminar essa
"liberalidade" é, a meu juízo, o Estatuto da Cidade estabelecer que
a Transferência do Direito de Construir (que seria melhor chamar de
Transferência do Potencial Construtivo) só possa ser aplicada a situações que
impliquem em obrigação pública de indenizar ou em desapropriações por utilidade
pública. Já não basta o absurdo de o Estado ser obrigado a desapropriar pelo
valor de mercado (isto é, pela valorização esperada)?
Espero que tenha conseguido ao menos esclarecer o meu ponto de
vista. Prossigamos o debate, que para isso está este blog. Em breve os leitores
terão um link para um texto mais amplo que estou escrevendo sobre o tema. E
eles próprios, sempre que quiserem, poderão ter seus textos publicados a partir
deste blog.
2007-10-25