sábado, 23 de fevereiro de 2008

A Transferência do Direito de Construir vista dos lotes de destino: apenas uma modalidade de aplicação dos recursos da outorga onerosa


Toda transferência de “direito de construir” supõe, obviamente, a existência de lotes de origem e lotes de destino do potencial construtivo. No lote de origem está o objeto da ação pública. No lote de destino, o recurso para a sua execução.

https://urbanidades.arq.br/2008/06/29/transferencia-do-direito-de-construir/


Em geral, a discussão da TDC é feita do ponto de vista do que se passa nos lotes de origem, seja por declaradas preocupações compensatórias – o suposto prejuízo sofrido pelo proprietário com a edição de um ato normativo que reduz o valor de expectativa de seu imóvel – seja pelas meritórias razões da ação pública, geralmente uma desapropriação por utilidade pública ou a preservação de um bem do patrimônio histórico, arquitetônico ou ambiental.

Vista, porém, desde os lotes de destino do potencial construtivo, a TDC não é mais do que uma modalidade de aplicação dos recursos da outorga onerosa – oriundos do excedente de valor por ela gerado – inclusive naqueles países que não dispõem formalmente desse instituto.

Resta, no entanto, uma questão crucial: os recursos da outorga onerosa mobilizados via TDC devem pagar (a) o suposto prejuízo do proprietário afetado no lote de origem ou (b) o justo preço da ação de interesse público?

Vejamos, pois, a questão do ponto de vista inverso ao da prática corrente: os lotes de destino.

TDC e estoque público de potencial construtivo oneroso
O uso, em outro lugar da cidade, do potencial construtivo oriundo de um lote afetado por uma ação de interesse público implica que, no lote de destino, o potencial construtivo adicional fará aumentar o seu valor residual (preço de transação provável), sem que esse aumento reverta, ao menos integralmente, para o bolso do proprietário. E para quem reverte, então, esse aumento? Para a municipalidade, que com esse recurso custeará ações de interesse público (desapropriação ou preservação).

É certo que se a ação pública for uma desapropriação – pelo valor de mercado, como manda a lei – esse recurso acaba sendo transferido para o bolso do proprietário do terreno de origem, beneficiário puramente passivo da melhoria representada pelo projeto. Esta, no entanto, é uma contingência de ordem constitucional (nossas normas de desapropriação são essencialmente patrimonialistas), que só pode ser evitada com a renúncia à desapropriação e, portanto, ao próprio projeto. O que discutimos aqui é se outras ações, que não requerem a desapropriação do terreno, também serão pagas pelo valor de mercado do mesmo, transferindo indevidamente recursos da coletividade para o proprietário passivo.

Os recursos da outorga onerosa de potencial construtivo revertem para a municipalidade de três formas: (1) recolhimento, no ato da licença de construção, ao Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano, para aplicação posterior em projeto de urbanização social; (2) adiantamento via CEPACS (Certificados de Potencial Construtivo Adicional), para aplicação imediata em obras públicas no périmetro de projeto; e (3) aplicação imediata "carimbada", via agentes privados, em projetos diversos de interesse público, geralmente desapropriação ou preservação. Essa terceira modalidade é a TDC, que, por razões que discutiremos adiante, prefiro chamar de TPC.

Toda TDC supõe a existência de um “estoque” de potencial construtivo que a municipalidade outorga, nas zonas de destino, para fins de cobertura de gastos em ações de interesse público. Em outras palavras, o estoque de potencial construtivo aplicável nas zonas de destino é, incontornavelmente, um recurso público cuja aplicação deve estar sujeita às regras gerais da administração fazendária.

A outorga onerosa de potencial construtivo em zonas de alta valorização é um princípio de gestão pública da intensificação do aproveitamento do solo, sem o qual nenhum potencial construtivo pode ser “transferido”, independentemente dos critérios que habilitam um proprietário a solicitar o “direito” à transferência.

A figura abaixo (um gráfico cartesiano dos coeficientes de aproveitamento em uma secção diametral à cidade), representa o circuito típico da geração e aplicação dos recursos da outorga onerosa em uma cidade. Nas zonas B, C e D, os agentes que fazem uso de coeficientes de aproveitamento de terreno situados entre o básico e o máximo definidos por lei estão sujeitos à cobrança da Outorga Onerosa do Direito de Construir, cujos valores são recolhidos ao Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano para posterior aplicação em programas ou projetos de interesse público, notadamente os assim chamados programas de urbanização social em Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS).



O instrumento de gestão urbanística TDC se distingue do instrumento OODC no trâmite realizado pelo recurso oriundo da sobrevalorização de lotes de terreno beneficiados pelo aumento de potencial construtivo. Na Outorga Onerosa, o recurso é destinado a obras e serviços públicos ainda não especificados, via Fundos Municipais de Desenvolvimento Urbano, componentes dos Orçamentos Municipais. Na Transferência, o recurso é destinado a obras e serviços de interesse público previamente definidos, por intermédio dos próprios agentes privados que atuam no mercado imobiliário. Vista desde as zonas de destino, a Transferência do Direito de Construir não é, pois, senão uma espécie de Outorga Onerosa “terceirizada”.

Uma diferença importante entre a OODC e a TDC, mas que escapa ao escopo deste artigo, é o fato de que, no Brasil, os custos finais de “títulos” de OODC e de TDC para o incorporador podem ser diferentes, apesar de aplicáveis às mesmas localizações urbanas. O exemplo mais gritante da competição entre esse dois tipos de títulos é o da cidade de Salvador, onde, diante de um grande estoque de títulos de TDC já em mãos de agentes de mercado, a Câmara aprovou uma lei barrando a entrada em vigor da OODC até que só restassem no mercado 20% dos títulos de TDC “circulantes” naquele momento.

Em algumas cidades, a Transferência do Direito de Construir coexiste, pois, com a Outorga Onerosa do Direito de Construir no mesmo âmbito urbano. As duas figuras abaixo, a primeira representando uma edificação isolada, a segunda representando uma cidade e seus bairros, mostram como o montante arrecadado pela municipalidade com a OODC entre os coeficientes básico (Cb) e máximo (Cm) é repartido, por meio desses dois instrumentos, entre duas coleções de projetos de interesse público – tipicamente (mas não obrigatoriamente) a urbanização social nos caso da OODC e a preservação do patrimônio arquitetônico e ambiental do caso da TDC.

Mais exatamente, a primeira figura representa o caso de Porto Alegre, onde o potencial construtivo excedente ao básico pode ser adquirido via títulos de OODC e de TDC, porém aplicados em “bandas” superpostas de edificabilidade, previstas na lei de zoneamento. Essa distinção é interessante em termos de planejamento e gestão, pois permite, por exemplo, vincular a “banda” da OODC ao financiamento de programas municipais via FMDU e a “banda” da TDC à execução direta, via mercado, de ações locais, como preservação de imóveis protegidos e correções de traçado viário. Tal distinção inexiste em outras cidades, acarretando a já mencionada concorrência entre os dois tipos de títulos.




A segunda figura expressa a a mesma idéia do ponto de vista da cidade: o recolhimento aos Fundos Municipais de Desenvolvimento Urbano para posterior investimento (OODC) e a sua aplicação direta via transferência espacial operada pelo mercado (TDC) são duas modalidades de aplicação dos recursos arrecadados pela municipalidade com a concessão de excedentes de potencial construtivo nas áreas mais valorizadas.




 O mecanismo da TDC
Da mesma forma como o preço da Outorga Onerosa é pago com uma parte do valor residual do solo (geralmente uma parcela do valor acrescido pela própria Outorga), a TDC cobre o custo da ação pública no lote de origem do potencial construtivo com uma parte do valor acrescido aos lotes de destino, ficando o incorporador, em qualquer caso, com o aumento proporcional do lucro imobiliário (ver figura abaixo).

À direita temos o edifício que poderia ser construído sem o alargamento da rua e o que poderá ser construído depois de cedida a parte do lote correspondente ao recuo. À esquerda temos o edifício que poderia ser construído sem a aquisição do potencial construtivo excedente e aquele que poderá ser construído depois de aquirido o potencial correspondente à servidão de recuo do lote de origem.

Usando como base o modelo residual dedutivo de avaliação imobiliária e o conceito, dele derivado, de curva de retorno bruto RB (Valor Geral de Vendas menos Despesas Totais de construção e comercialização do empreendimento), deduz-se que, se o terreno de origem do potencial construtivo é igual ao terreno de destino em tamanho e valor, então o valor (de mercado) da área a ser desapropriada é igual ao valor residual acrescido ao terreno de destino pelo potencial construtivo outorgado.

Por meio da TPC, parte desse valor residual acrescido no destino será capturado pela prefeitura para pagar a desapropriação, ou pago diretamente pelo incorporador “do destino” ao proprietário “da origem” mediante cessão da "servidão de recuo" à prefeitura – dependendo de como esteja regulada a operação.



A transferência de potencial entre lotes de valor diferente – implicando que os produtos imobiliários realizáveis no mercado têm curvas de retorno bruto (RB) de diferentes inclinações – significa que o valor de mercado da área a ser desapropriada será maior ou menor que o valor gerado pela concessão onerosa do potencial construtivo adicional no destino.

Dado que a legislação brasileira só “enxerga” a transferência de potencial do ponto de vista do interesse e da iniciativa do proprietário do lote afetado (ainda que para custear ações de interesse público), é obrigatório que se faça a compensação da diferença de valor do m2 dos lotes de origem e destino. Se, no entanto, a transferência fosse vista como prerrogativa exclusiva do poder público de manejo espaço-temporal dos potenciais construtivos definidos em lei, o maior valor do m2 do lote de destino resultaria em uma operação economicamente vantajosa para a coletividade e o menor valor resultaria em uma operação em princípio desvantajosa, mas que, se inevitável (uma desapropriação emergencial, por exemplo), poderia ser completada com recursos de outras fontes.

Evidentemente, o destino do potencial correspondente à servidão de recuo poderia ser o próprio lote de origem. Porém, o lote afetado pela servidão não necessariamente estará sendo objeto de uma incorporação no momento da obra pública. A vantagem da Transferência de Potencial Construtivo é poder aplicar esse potencial em quaisquer terrenos do perímetro que estejam sendo objeto de incorporação, liberando imediatamente o solo de origem para a obra pública. A TPC é, portanto, uma ferramenta pública de otimização espaço-temporal dos potenciais construtivos estabelecidos em lei.

TDC como “incentivo” à preservação
Parte considerável das dificuldades com a TDC decorrem do fato de que muitas ações de preservação de bens do patrimônio histórico e ambiental não exigem, e até não recomendam, a desapropriação do imóvel; donde a idéia de que programas de preservação necessitam de “incentivos” que tornem vantajoso ao proprietário do imóvel preservá-lo, e até restaurá-lo. No Rio de Janeiro, por exemplo, o já antigo programa de preservação do patrimônio edificado da área central tradicional (projeto Corredor Cultural) foi “incentivado” com isenções fiscais (IPTU).

A TDC aplicada a projetos de preservação do patrimônio arquitetônico e ambiental não é senão uma outra forma de “incentivo”.

Qualquer que seja, porém, o “incentivo”, a preservação tem um preço. [Parte do] preço do projeto Corredor Cultural para o município do Rio de Janeiro é o valor capitalizado total do IPTU anual não arrecadado durante os anos de vigência da lei que o instituiu. É de se supor que este valor corresponda, ao menos em tese, ao custos de manutenção dos imóveis isentados, durante o período especificado na lei. Qualquer que seja o padrão de controle, por parte da municipalidade, esse incentivo pode ser assimilado a um contrato de contraprestação de serviços de preservação do patrimônio histórico e arquitetônico da cidade por isenção do IPTU.

Da mesma forma, o preço do incentivo à preservação via TDC é o valor pago em títulos de potencial construtivo aplicáveis em zonas da cidade onde se admite a Outorga Onerosa do direito de Construir. E a que deve corresponder este “incentivo” pago em títulos de TDC? Ao valor da totalidade do potencial construtivo do terreno onde se situa o imóvel objeto da ação pública? Ao valor da diferença em m2 construídos entre a edificação (protegida) existente nesse terreno e o potencial construtivo previsto no zoneamento? Ou ao valor do projeto de restauro e manutenção do imóvel?

Ao dar ao particular a iniciativa de solicitar a transferência do “direito de construir” (o potencial construtivo vigente para o seu terreno), relacionando o montante a ser pago em títulos de TDC ao potencial construtivo vigente na zona mas não utilizável no terreno, e não ao valor da despesa resultante da ação pública (desapropriação, restauração e conservação do imóvel, manutenção da mata nativa etc.), a legislação brasileira cria três sérios problemas:

* deixa implícita a (falsa) idéia de que constitui um direito do proprietário a patrimonialização do potencial construtivo previsto no zoneamento, o que, no limite, altera em favor da propriedade a regra constitucional segundo a qual a desapropriação só se aplica no caso de esvaziamento do conteúdo econômico da propriedade imóvel;

* dá a (falsa) impressão de que as operações de Transferência do Direito de Construir NÃO constituem gasto de recursos públicos com a execução de ações (projetos) de interesse público e não precisam, portanto, se ater às regras da administração fazendária (preço justo);

* permite que recursos públicos sejam aplicados em projetos acima do seu preço. Este seria o caso, hipoteticamente, de uma operação de transferência de potencial construtivo de um imóvel protegido em uma zona valorizada, onde o potencial construtivo a ser transferido valha, digamos, 1 milhão de reais, ao passo que o projeto de restauro da edificação e sua conservação por um período de 20 anos custe, digamos, 500 mil – sem falar da renda de aluguel que o imóvel tombado e restaurado poderia gerar no mesmo período.

A sugestão aqui contida é que a aplicação da TDC em ações de preservação arquitetônica e ambiental seja paga (desde que o projeto seja relevante e economicamente viável) em títulos de valor equivalente ao preço do projeto, submetido a leilão público em que saia vencedora a proposta que demande a menor quantidade de CEPACs (Certificados de Potencial Construtivo Adicional.

Pancho y Paco , al fin del día, son todos Francisco
Pode-se argumentar que, em operações dessa natureza, o termo Transferência do Direito de Construir é supérfluo, pois já se trata de uma Operação Urbana Consorciada. E com justa razão. Penso que o termo Transferência de Potencial Construtivo (o “direito de construir” não pode ser transferido porque não existe como “bem” do proprietário) deva ser reservado para operações (especiais e correntes) de manejo espaço-temporal do potencial construtivo definido no zoneamento.

A grande utilidade da Transferência do Potencial Construtivo como ferramenta de otimização pública dos potenciais construtivos definidos no zoneamento, tornando-o flexível no marco da Lei e visando exclusivamente ao atendimento do interesse público, torna relevante o desenvolvimento do tema em face das justificadas desconfianças despertadas em todo o mundo devido, a meu ver, ao caráter acentuadamente patrimonialista das concepções de TDC vigentes no Brasil e em outros países.

No Estatuto da Cidade brasileiro, a introdução da TDC como recurso compensatório, ou de incentivo, à propriedade atingida por medida preservacionista, sem referência ao preço da ação pública, equivale a devolver com a mão direita o que a Outorga Onerosa conquistou, literalmente, com a esquerda.

A TDC não pode ser entendida como medida “compensatória” a uma atribuição desigual de edificabilidades entre proprietários privados. A única medida socialmente compensatória à atribuição desigual de direitos de construir a proprietários privados é a recuperação pública da totalidade da renda da terra, pela simples razão de que esta é 100% produto do investimento social. Mesmo um índice único igual a 1 para toda a cidade não revoga a desigualdade inerente ao valor relativo das localizações urbanas. Isso sem falar que igualdade entre proprietários de terrenos urbanos nada tem a ver com igualdade entre cidadãos.

Toda ação custeada com recursos da TDC, seja de desapropriação ou de preservação, compete com outros projetos de interesse público pelos recursos gerados pela concessão onerosa de potencial construtivo nas zonas mais valorizadas da cidade. Trata-se aqui, portanto, de um problema de gestão pública de um estoque de recursos (potencial construtivo adicional) limitado por natureza. Quanto mais projetos de preservação do patrimônio a municipalidade financiar com recursos "da TDC", menos projetos de urbanização social ela poderá financiar com recursos "da OODC" – pela simples razão de que a fonte desses recursos é a mesma!

Repartir os recursos da outorga onerosa de potencial construtivo entre diversos projetos, com suas respectivas modalidades de execução, é uma operação ao mesmo tempo técnica e política de planejamento urbanístico, similar à definição do orçamento municipal – e que, aliás, deveria fazer parte dele.

A Transferência de Potencial Construtivo definida como manejo público do estoque de potencial construtivo definido na Lei de Uso e Ocupação do Solo é uma técnica que até certo ponto se confundiria, no marco da legislação brasileira, com o instituto da Operação Urbana Consorciada. Mas isso não constitui surpresa. Afinal, a OUC também é uma modalidade de aplicação dos recursos da concessão onerosa de potencial construtivo.

Mas isso é assunto para outro artigo.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

O melhor do vôlei brasileiro não paga os gastos do Pan

Rexona jogando no Tijuca Tenis Clube
Em janeiro de 2008, as partidas mais importantes do calendário anual do voleibol feminino nacional no Rio de Janeiro, entre o Rexona/Rio de Janeiro e o Finasa/Osasco, com excelente transmissão pela TV a cabo, estavam sendo disputadas... no Ginásio do Maracanãzinho, recém-reformado para os Jogos Panamericanos de 2007? Na novíssima Arena Olímpica do Complexo Desportivo do autódromo, especialmente construída para os Jogos Panamericanos? Não, Rio de Janeiro e Osasco se enfrentavam... no ginásio do Tijuca Tênis Clube, que existe há mais de 30 anos!!!

Pergunta-se: por que o ginásio do Tijuca não serviu para os Jogos Panamericanos se ele é do tamanho do vôlei feminino profissional brasileiro? Dito de outra forma: por que os organizadores dos Jogos impõem às cidades e países construir equipamentos esportivos que não têm como sustentar? Que espécie de vantagens as cidades auferem com essa espécie de investimento? Quem ganha e quem perde com esse tipo de “negócio olímpico”?


2008-02-01