quarta-feira, 6 de julho de 2011

O Porto Maravilha, o trem-bala e o trambolho


Passei muito tempo viajando por aí, numa época em que os aviões estavam fora do alcance do meu bolso ou não voavam para os lugares aonde eu ia. Foi assim que estabeleci com as estações rodoviárias do Brasil certa relação de intimidade e empatia. (Hoje, eu e a classe C – que não creio ser média, como se apregoa, mas mediana – vamos nas asas que já foram da Panair).

Longas horas de estrada podem ser mentalmente relaxantes, até mesmo criativas, para quem curte a paisagem da janela – vales, montanhas, casebres, igrejolas e povoados – com o espírito que governa a ruminação das vacas e dos cabritos. E não importa quão mixuruca, toda estação rodoviária é, para um estradeiro contumaz, “um porto entre dois caminhos” – como disse da própria cidade o urbanista criador do ensanche de Barcelona, Ildefonso Cerdà, num momento de enlevo progressista.

Essa prosa mambembe me veio à mente no dia 17 de junho, quando o Globo online informou que “A Rodoviária está fora da revitalização do Porto” porque sua área, “inserida no subsetor C3 na legislação, prevê gabarito de 150 metros e construção de até 50 pavimentos”. Um portento! 

Na liça ou à beira do urbanismo, não é de hoje nem de ontem, caro leitor, é de muitos anos que defendo a mudança da Rodoviária Novo Rio para algum lugar servido pela Linha 2 do metrô – de preferência Coelho Neto, que é contíguo à Av. Brasil – e por uma razão muito simples: uma corrida de táxi do Gasômetro a Bangu sai mais caro que uma passagem do Rio a Salvador! E não precisamos de estatísticas para saber que a imensa maioria dos usuários da Rodoviária está nas classes C e D e mora nos subúrbios – basta ir lá de vez em quando e observar.

Já há mais de 30 anos o Terminal do Tietê, localizado no entroncamento da Avenida Cruzeiro do Sul com a Marginal, permite que quem chega a São Paulo de ônibus siga viagem por metrô ao seu destino ou até bem perto dele. No Rio, nem é bom falar da “integração” que puseram a operar certa época: um microônibus que dava voltas e mais voltas para chegar à Estação do Estácio, mais ou menos o tempo que o passageiro levava para fazer passar sua carcaça por uma catraca concebida, com toda certeza, para impedir a passagem das malas que trazia consigo. Azar o dele, quem manda desembarcar cheio de malas na Estação Rodoviária? 

Embora garantisse que a rodoviária vai para Irajá, a matéria não nos dava vislumbre algum das vantagens dessa mudança e das características da futura estação. O terreno do DNIT na entrada da Rodovia Presidente Dutra é uma localização aparentemente óbvia, e uma proposta antiga, mas com um grave problema: lá não tem metrô nem avenidas urbanas. Será que vão fazer um ramal do metrô até lá dentro? Dá até para resolver de outra maneira, mas não é tão simples quanto dizer, vagamente, que tudo será resolvido “com a construção das vias Transoeste, Transcarioca e Transolímpica de corredores de ônibus expressos”. Como se o governo Paes-COI tivesse, de fato, algum plano para a cidade! 

De todo modo, é preciso exigir que a futura Rodoviária seja mais fácil e barata de acessar e de sair do que a que temos hoje, tendo em conta a geografia da cidade inteira e o lugar de residência da maioria dos usuários. No embalo, a Novo Rio poderia ser convertida em terminal de integração de ônibus metropolitanos e municipais, de acesso controlado, devolvendo o terreno ocupado pelo terminal (!) Pe. Henrique Otte, como praça pública, aos moradores do Santo Cristo e, em especial, aos frequentadores regulares e eventuais do Hospital de Oncologia. 

Adivinhe, porém, o leitor: por que razão a matéria nada dizia de relevante sobre o futuro da Estação Rodoviária? Ora, porque seu tema era o futuro do Porto! Que importância tem, afinal, a Estação Rodoviária para este novo endereço empresarial e olímpico? A julgar pela matéria, a resposta é: tirem esse trambolho do meu Porto Maravilha! (Deus do céu, quem escolheu esse nome ridículo?) Afinal, os transportes terrestres valorizam o parque imobiliário na razão direta da renda de quem os utiliza e na razão inversa de seu impacto, digamos, sócio-ambiental. 

E o mais especioso, a matéria tampouco mencionava o fato de a rodoviária estar sendo objeto de uma considerável reforma interior, com investimentos de sabe-se lá quantos milhares de reais que, direta ou indiretamente, são dinheiro público – ou alguém acha que concessionárias de serviços públicos investem o que ganham para prestá-los?

Não deu outra: no mesmo dia, a concessionária veio a público dizer que é contra a mudança porque tem feito muitos investimentos, até mesmo “não contratuais”, no terminal. Não nos iludamos, porém. A concessionária não está preocupada com seus investimentos pela simples razão de que eles, de uma forma ou de outra, não são seus, e o que havia para se ganhar com essas reformas já foi ganho. Acho mais provável que ela estivesse apenas avisando, para quem quer e sabe ouvir, que a liberação do equipamento que opera por concessão do Estado talvez custe um pouco caro. 

Ou seja, na melhor das hipóteses esqueceram de avisar à CODERTE, a companhia estadual responsável pelo terminal, que não seria boa política investir num equipamento público situado na linha de fogo do Porto Maravilha, um vez que o Porto, para ser Maravilha, não pode ter Rodoviária. Estações de metrô são bem-vindas, de trem-bala seria perfeito, mas, terminais de ônibus, em hipótese alguma! 

Pode ter certeza, leitor: no final, quem pagará a conta dessa lamentável confusão será você. Ou, pensando bem, não. O leitor típico de À beira do urbanismo não pagará a conta porque no bairro onde ele mora, como no meu, serviços de qualidade sempre chegarão, mal ou bem, a tempo e a hora. A conta será daqueles que só receberão daqui a pelo menos uma geração, se é que um dia, os equipamentos e serviços que poderiam ser custeados com o dinheiro que se esbanja nessas patuscadas olímpicas. 


2011-07-06